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Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro
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<p>Christine</p><p>Stephen King</p><p>Título original: Christine</p><p>Tradução de Louisa Ibañez</p><p>Editora Objetiva, 1998</p><p>Digitalizado por SusanaCap</p><p>ContraCapa</p><p>Arnie Cunnigham era um perdedor. Rosto coberto de espinhas,</p><p>desajeitado com as garotas, magro demais para esportes, passava os dias</p><p>como sombra pelos corredores da escola, tentando fugir das gozações</p><p>implacáveis dos jovens de sua idade.</p><p>Isso até Christine entrar em sua vida. Amor à primeira vista -- não há</p><p>melhor forma de explicar o que aconteceu a Arnie ao vê-la. A partir desse</p><p>dia, o mundo ganha novo sentido. Tudo o que ele quer é estar junto de</p><p>Christine e nada, ninguém conseguirá detê-lo. Uma velha história de amor,</p><p>mais um Romeu e Julieta do século XX? Não, quando a trama nasce da</p><p>mente insuperável de Stephen King. Christine é um carro. Um Plymouth</p><p>Fury 1958. Um feitiço sobre rodas que se apodera do jovem Arnie e faz</p><p>dele alguém diferente. Muito diferente. Christine é uma obsessão.</p><p>A vida de Arnie Cunnigham nunca mais será igual. Também não será</p><p>igual o pacato subúrbio de classe média em que mora. Nao quando</p><p>Christine está nas ruas. Não quando a velha e irascível Christine resolve</p><p>tirar de seu caminho quem quer que tente afastá-la de seu novo dono.</p><p>Orelhas</p><p>Cenário: subúrbio de classe média, em Pittsburg. Ano: 1978.</p><p>Personagens: Arnie Cunnigham, jovem estudioso e rejeitado pelos</p><p>colegas; Dennis Guilder, seu único amigo e protetor ocasional; Leigh</p><p>Cabot a aluna recém-chegada ao colégio que Arnie conquista e... Dennis</p><p>também deseja.</p><p>O mesmo e velho triângulo amoroso? Os ingredientes certos para</p><p>mais uma açucarada historinha de amor e ciúme? Não. Porque aqui,</p><p>velando nas sombras, está Christine. Um quarto personagem, uma dama</p><p>perversa que levará a trama por uma trilha de sangue e vingança. Por</p><p>caminhos onde um ódio implacável zela pela posse de Arnie. Não,</p><p>Christine não é uma rival comum. Lataria vermelha e branca, Christine é</p><p>um carro, um velho Plymouth 1958 que seduz Arnie com um poder</p><p>assombroso.</p><p>Quando Arnie se dedica febrilmente a restaurar Christine, Dennis e</p><p>Leigh começam a suspeitar que o preço dessa crescente obsessão pode ser</p><p>terrivelmente alto. Em pouco tempo, Arnie não é mais o mesmo. Em</p><p>pouco tempo, Christine também se transforma. E logo as calmas ruas de</p><p>subúrbio vão sendo banhadas de sangue. Há algo poderosamente maligno</p><p>solto pelas estradas de Libertyville. Uma força sobrenatural que vai</p><p>deixando seu rastro de vingança por onde passa. E Dennis é o primeiro a</p><p>descobrir a verdade aterradora — Christine está viva.</p><p>Nesta história de terror sobrenatural, Stephen King leva o leitor numa</p><p>viagem assustadora por um roteiro macabro. Se tiver coragem, embarque</p><p>em Christine e boa sorte... pode ser que, para você, esse passeio tenha</p><p>volta.</p><p>Nota do Autor</p><p>As letras das canções citadas neste livro foram atribuídas ao cantor</p><p>(ou cantora, ou grupos) mais comumente associados às mesmas. Isto</p><p>poderá ofender o purista, que considera a letra de uma canção como</p><p>pertencendo mais ao compositor do que ao cantor. O que você fez, poderia</p><p>argumentar o purista, foi algo semelhante a atribuir-se as obras de Mark</p><p>Twain a Hall Holbrook.</p><p>Discordo. No mundo da canção popular, é como dizem os Rolling</p><p>Stones: o cantor, não a canção.</p><p>Os nomes dos autores das letras estão aqui para os que quiserem</p><p>conhecê-los. Agradeço a todos eles — e mais particularmente a Chuck</p><p>Berry, Bruce Springsteen, Brian Wilson... e Jan Berry, de Jan and Dean.</p><p>Ele voltou da Curva do Homem morto.</p><p>É deveras trabalhoso conseguir-se as necessárias permissões legais</p><p>para o uso de letras de canções, de modo que eu gostaria de agradecer a</p><p>algumas das pessoas que me auxiliaram a recordar as canções e, depois, a</p><p>garantir a possibilidade de seu uso. Elas incluem: Dave Marsh, crítico e</p><p>historiador de rock; James Feury, conhecido como "Mighty John</p><p>Marshall", que transmite rocks em minha cidadezinha, pela WACZ; seu</p><p>irmão, Pat Feury, que divulga canções antigas em Portland; Debbie Geller;</p><p>Patrícia Dunning e Peter Batchelder. Obrigado a todos vocês, chapas, e que</p><p>seus discos antigos nunca empenem muito, a ponto de não poderem tocá-</p><p>los.</p><p>S.K.</p><p>Prólogo</p><p>Esta é a história de um triângulo amoroso — suponho que este seria o</p><p>nome — formado por Arnie Cunningham, Leigh Cabot e, naturalmente,</p><p>Christine. Quero que compreendam, no entanto, que Christine chegou</p><p>primeiro. Ela foi o primeiro amor de Arnie e, embora eu não tenha a</p><p>presunção de garantir (de qualquer modo, não após os altos níveis de</p><p>sabedoria que alcancei, em meus 22 anos), creio que ela foi seu único e</p><p>verdadeiro amor. Portanto, chamo de tragédia ao que aconteceu.</p><p>Eu e Arnie crescemos no mesmo quarteirão, freqüentamos juntos a</p><p>Escola Primária Owen Andrews e o Ginásio Darby. Também juntos, fomos</p><p>para o Ginásio de Libertyville. Penso que fui o principal motivo de Arnie</p><p>não haver sido devorado no ginásio. Eu era um cara importante — sei que</p><p>isso não quer dizer grande coisa; cinco anos após o diploma, não se</p><p>consegue nem mesmo uma cerveja grátis, por termos sido o capitão dos</p><p>times de futebol e beisebol, e um nadador da Associação de Escolas—,</p><p>mas, como fui tudo isso, pelo menos Arnie nunca foi liquidado. Abusaram</p><p>dele um bocado, mas nunca o destruíram.</p><p>Ele era um perdedor, compreendam. Todo ginásio tem dois, pelo</p><p>menos; é como uma lei nacional.</p><p>Um homem, uma mulher. Sacos-de-pancada de todos. Seu dia foi</p><p>ruim? Falhou em uma prova importante?</p><p>Discutiu com seus velhos e ficou o fim de semana a pé? Não há</p><p>problema. Encontre um daqueles pobres coitados que se esgueiram pelos</p><p>corredores como criminosos, antes do sinal para as aulas, e vá direto ao</p><p>infeliz. Sabiam que, algumas vezes, eles são abatidos em todos os</p><p>sentidos, exceto no físico; em outras, acham alguém a quem agarrar-se e</p><p>sobrevivem. Arnie tinha a mim. Depois teve Cristine. Leigh apareceu mais</p><p>tarde.</p><p>Eu só queria que vocês compreendessem isso.</p><p>Arnie era um deslocado natural. Estava fora do atletismo por ser</p><p>magricela — um e setenta e cinco, com cerca de setenta quilos, tragado</p><p>por todas as suas roupas, mais um par de botas Desert Drive. Estava por</p><p>fora também para os intelectuais do ginásio (eles próprios, um grupo</p><p>inteiramente "desajustado" em uma cidadezinha como Libertyville),</p><p>porque não tinha nenhuma especialização. Arnie era esperto, mas seus</p><p>miolos não se fixavam naturalmente em coisa alguma, a menos que fosse</p><p>mecânica automotora.</p><p>Era grande nisso. Em se tratando de carros, o garoto era uma espécie</p><p>de alucinado nato. Seus pais. no entanto (os dois lecionavam na</p><p>Universidade, em Horlicks), não podiam ver seu filho — que tinha</p><p>marcado o máximo de cinco por cento no teste de inteligência Stanford-</p><p>Binet — matricular-se nos cursos profissionalizantes. Andy teve muita</p><p>sorte, quando lhe permitiram cursar Mecânica de Motores I. II e III.</p><p>Precisou batalhar muito para conseguir a permissão. Estava ainda</p><p>deslocado com os que se drogavam, porque não era disso. E também não</p><p>se ligava com o grupo machão calças-jeans-e-Lucky-Strikes, porque não</p><p>era de beber e chorava, se atingido com força.</p><p>Oh, sim, era um desajustado também com as garotas. Seu mecanismo</p><p>glandular degringolara inteiramente. Quero dizer, Arnie era um tapete de</p><p>espinhas. Acho que lavava o rosto umas cinco vezes por dia, tomava umas</p><p>duas dúzias de duchas por semana e experimentava cada creme ou</p><p>panacéia conhecidos pela ciência moderna. Nada funcionava. O rosto de</p><p>Arnie parecia uma pizza e ele ia ficar com uma daquelas caras furadas e</p><p>marcadas para sempre.</p><p>Eu gostava dele assim mesmo. Arnie tinha um sutil senso de humor e</p><p>uma mente que não se cansava de fazer perguntas, inventar jogos e</p><p>pequenas, divertidas brincadeiras. Foi Arnie quem me mostrou como</p><p>construir uma fazenda de formigas quando eu tinha sete anos, e passamos</p><p>todo um verão espiando aqueles animaizinhos, fascinados por sua</p><p>diligência e total seriedade. Quando tínhamos dez anos, foi por sugestão</p><p>de Arnie que nos esgueiramos de casa certa noite e colocamos um monte</p><p>de bostaseca de cavalo, tirada dos Estábulos da Rota 17, debaixo do</p><p>enorme cavalo</p><p>aquele estofamento rasgado</p><p>parecia ter desaparecido. Agora estava inteiro, desprendendo um cheiro</p><p>agradável de vinil... ou talvez aquele cheiro fosse de couro verdadeiro. As</p><p>partes gastas da direção haviam sumido; o cromado piscava alegremente à</p><p>claridade noturna do verão, entrando pela porta da garagem.</p><p>Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão, Christine pareceu</p><p>sussurrar, em meio ao quente silêncio estivai da garagem de LeBay. Vamos</p><p>rodar por aí.</p><p>Então, só por um instante, pareceu que tudo mudara. Aquela</p><p>horrorosa confusão de rachaduras no pára-brisa sumira — ou era esta a</p><p>impressão. O pequeno trecho do gramado de LeBay, que eu podia ver dali,</p><p>não estava amarelado, ralo e maltratado, mas ficara de um verde</p><p>exuberante e farto, recentemente aparado. A calçada mais além estava</p><p>cimentada de fresco, sem uma fenda no piso à vista. Eu vi (pensei ou</p><p>sonhei ter visto) um motor de Cadillac 57 à minha frente. Aquele cavalo</p><p>empinado GM era de um verde-hortelã, não havia o menor salpico de</p><p>ferrugem na lataria, os pneus eram enormes, de banda branca, com calotas</p><p>refletindo mais que espelhos. Um Cadilac do tamanho de um iate, por que</p><p>não? A gasolina era quase tão barata como a água da torneira.</p><p>Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí.</p><p>Claro, por que não? Eu podia ligar o motor e rumar para o centro da</p><p>cidade, em direção ao antigo ginásio que ainda estava de pé — ele só se</p><p>incendiaria seis anos mais tarde, em 1964 — e eu poderia ligar o rádio,</p><p>para ouvir Chuck Berry cantando "Maybelline" ou os Everlys em " Wake</p><p>up little Susie". Talvez Robin Luke, gemendo "Susie Darling'. E então,</p><p>eu...</p><p>E então saí daquele carro, o mais depressa que pude. A porta se abriu</p><p>com um infernal rangido enferrujado e arranhei fundo o cotovelo, em uma</p><p>das paredes da garagem. Empurrei a porta para que se fechasse (falando</p><p>francamente, eu nem queria tocar nela) e então fiquei lá parado,</p><p>contemplando o Plymouth que, salvo algum milagre, logo pertenceria a</p><p>meu amigo Arnie. Esfreguei o osso arranhado do cotovelo. Meu coração</p><p>batia aceleradamente.</p><p>Nada. Não havia cromados novos nem novo estofamento. Ao</p><p>contrário, havia uma profusão de amassaduras e ferrugem, faltava um</p><p>farol dianteiro (detalhe que, na véspera, me passara despercebido) e a</p><p>antena do rádio se inclinava em um ângulo esquisito. Mais aquela poeira,</p><p>o cheiro sujo de velhice.</p><p>Naquele momento, decidi que não gostava do carro de meu amigo</p><p>Arnie.</p><p>Saí da garagem, olhando constantemente para trás por sobre o ombro</p><p>— sei lá por quê, mas não gostava daquilo às minhas costas. Sei que pode</p><p>parecer absurdo, mas era como me sentia. E lá estava o carro, com o</p><p>radiador amassado e enferrujado, sem nada de sinistro e nem mesmo</p><p>estranho, apenas um velho automóvel Plymouth, com uma etiqueta</p><p>adesiva de inspeção, que caducara em 1º de junho de 1976 muito tempo</p><p>atrás.</p><p>Arnie e LeBay saíam da casa. Arnie tinha na mão um pedaço de</p><p>papel, que deduzi ser seu recibo de compra. As mãos de LeBay estavam</p><p>vazias; ele já fizera o dinheiro desaparecer.</p><p>— Espero que desfrute bastante da máquina — dizia LeBay, fazendo-</p><p>me pensar em um gigolô muito idoso, engambelando um rapaz muito</p><p>novo. Senti uma onda de pura aversão por ele... ele com sua psoríase no</p><p>crânio e seu suado colete ortopédico. — Creio que a desfrutará. Com o</p><p>tempo.</p><p>Seus olhos ligeiramente remelosos encontraram os meus, fixaram-se</p><p>neles por um segundo e depois deslizaram de volta a Arnie.</p><p>— Com o tempo — repetiu.</p><p>— Sim, senhor, tenho certeza disso — respondeu Arnie, alheiamente.</p><p>Moveu-se para a garagem como um sonâmbulo e ficou parado, olhando</p><p>seu carro.</p><p>— As chaves estão nele — disse LeBay. — Terá que levá-lo daqui.</p><p>Compreende, não?</p><p>— E o motor dará partida?</p><p>— Deu partida ontem para mim, à noite — disse LeBay, mas seus</p><p>olhos se voltaram para o horizonte. Depois em um tom de quem lavou as</p><p>mãos em todo aquele negócio, acrescentou: — Seu amigo aqui deve ter</p><p>algum cabo no porta-mala.</p><p>Bem, para dizer a verdade, eu tinha o cabo no porta-mala, porém não</p><p>gostei muito de LeBay ter adivinhado isso. Não gostei que ele adivinhasse,</p><p>porque... Suspirei de leve. Porque não queria ser envolvido no futuro</p><p>relacionamento de Arnie com o calhambeque que havia comprado. No</p><p>entanto, estava me vendo ser arrastado para aquilo, passo a passo.</p><p>Arnie cessara inteiramente a conversa. Caminhou para a garagem e</p><p>entrou no carro. O sol do fim da tarde agora batia em cheio sobre o carro e</p><p>vi a pequena nuvem de poeira que subiu quando Arnie se sentou, e sacudi</p><p>automaticamente os meus fundilhos. Por um instante, ele ficou apenas</p><p>parado diante do volante, as mãos segurando-o frouxamente, e senti que</p><p>minha inquietação voltava. De certa forma, era como se o Plymouth o</p><p>tivesse engolido. Disse a mim mesmo para parar com aquilo, que não</p><p>havia nenhuma maldita razão para que continuasse agindo como uma</p><p>menininha imbecil da sétima série.</p><p>Então, Arnie inclinou-se ligeiramente. O motor começou a dar</p><p>partida, depois morreu. Virando-me, atirei um olhar irritado e acusador</p><p>para LeBay, porém ele voltara a estudar o céu, como que em busca de</p><p>chuva.</p><p>Aquele motor não ia pegar, não ia pegar de maneira alguma. Meu</p><p>Duster estava em ótimo estado, mas os dois carros que eu tivera antes</p><p>eram calhambeques (calhambeques recauchutados e nenhum deles</p><p>pertencendo à mesma categoria de Christine), portanto, ficara bem</p><p>familiarizado com aquele som nas manhãs frias de inverno, aquele lento e</p><p>cansado ruído desconjuntado, indicando que a bateria arranhava o fundo</p><p>do barril.</p><p>Rurr-rurr-rurr... rurr... rurr... rurr... rurr...</p><p>— Não se preocupe, Arnie — falei. — Não vai pegar nunca.</p><p>Ele nem mesmo ergueu a cabeça. Desligou e tornou a girar a chave</p><p>na ignição. O motor resmungou, com dolorosa e difícil lentidão.</p><p>Encaminhei-me para LeBay.</p><p>— Não podia tê-lo deixado trabalhar o tempo suficiente para carregar</p><p>um pouco a bateria, pelo menos? — perguntei.</p><p>LeBay me fitou com seus olhos remelentos e amarelados, sem nada</p><p>dizer. Depois começou a perscrutar novamente o céu, pesquisando chuva.</p><p>— O mais provável é que nem tenha chegado a trabalhar. Talvez você</p><p>tenha arranjado uns dois amigos que o ajudaram a empurrá-lo até a</p><p>garagem. Se é que um velho imbecil como você tem amigos.</p><p>Ele baixou os olhos para mim.</p><p>— Você não sabe tudo, filho — disse. — Ainda nem aprendeu a</p><p>enxugar atrás das orelhas. Quando tiver passado por duas guerras, como</p><p>eu...</p><p>— Suas duas guerras que se fodam! — repliquei deliberadamente.</p><p>Caminhei para a garagem, onde Arnie continuava tentando ligar o</p><p>motor de seu carro. Pensei que seria mais fácil secar o Atlântico com um</p><p>canudinho de palha ou ir até Marte em um balão de ar quente.</p><p>Rurr... rurr... rurr...</p><p>Logo o último ohm, o último erg, seriam sugados daquela velha</p><p>bateria da Sears, não restando senão o mais desanimador de todos os sons</p><p>automotrizes, ouvidos tão comumente em estradas secundárias</p><p>encharcadas de chuva e auto-estradas desertas: o clique estéril e monótono</p><p>do solenóide, seguido por um terrível som semelhante a um chocalho.</p><p>Abri a porta do lado do motorista.</p><p>— Vou apanhar meus cabos — falei. Ele ergueu os olhos.</p><p>— Acho que ele vai pegar para mim — respondeu.</p><p>Senti meus lábios se distenderem em um largo sorriso de dúvida.</p><p>— De qualquer modo, vou buscar os cabos.</p><p>— Está bem, já que você quer — Arnie respondeu com ar ausente.</p><p>Então, em uma voz quase inaudível, acrescentou: — Vamos, Christine! O</p><p>que me diz?</p><p>No mesmo instante, aquela voz despertou em minha cabeça e tornou</p><p>a falar: Vamos sair daqui e dar uma volta, garotão... Vamos rodar por aí...</p><p>e estremeci.</p><p>Ele tornou a girar a chave. Esperei o clique seco do solenóide e o</p><p>chocalhar que logo engasgaria. No entanto, o que ouvi foi o lento</p><p>estertorar do motor, de repente ganhando velocidade. O motor pegou,</p><p>ficou assim um instante, depois morreu. Arnie girou a chave novamente. O</p><p>motor trabalhou mais depressa. O arranque soava tão alto como uma</p><p>bomba usada, mas em bom estado, naquele confinado espaço da garagem.</p><p>Sobressaltei-me. Arnie continuou quieto, perdido em seu próprio mundo.</p><p>A essa altura,</p><p>eu já teria praguejado umas duas vezes, apenas para dar</p><p>força, para ajudar a máquina: Vamos, filha da puta, sempre é uma boa</p><p>pedida; Pegue, porra! também tem seus méritos e, às vezes, apenas um</p><p>bom e saudável merda-PEGUE! realiza o milagre. A maioria dos caras que</p><p>conheço faria o mesmo; penso que isto é apenas uma das coisas que</p><p>aprendemos com nosso pai.</p><p>O que nos fica da mãe, em geral, são conselhos práticos e insistentes:</p><p>se cortar as unhas dos pés duas vezes por mês, não ficará com tantos</p><p>buracos nas meias; largue uma coisa no chão, e não vai saber onde ela</p><p>está; coma sua cenoura, porque faz bem — mas é com o pai que</p><p>aprendemos as palavras mágicas, os talismãs do poder. Se o carro não</p><p>pega, xingue-o... e certifique-se de que o xingamento seja no feminino. Se</p><p>recuássemos sete gerações, provavelmente veríamos um de nossos</p><p>tataravós xingando a maldita cadela daquele burro que parou na metade da</p><p>ponte em que se pagava pedágio, em algum lugar do Sussex ou de Praga.</p><p>Arnie, entretanto, não xingou em absoluto. Murmurou baixinho:</p><p>— Vamos, boneca, o que me diz?</p><p>Girou a chave. A máquina estremeceu duas vezes, o arranque tornou</p><p>a soar e então pegou. Era um som horrível, como se quatro dos oito</p><p>êmbolos houvessem tirado folga naquele dia, mas o motor continuou</p><p>funcionando. Eu mal podia acreditar, porém não pretendia ficar por ali e</p><p>discutir o caso com Arnie. A garagem se enchia rapidamente de fumaça</p><p>azul e vapores. Fui para fora.</p><p>— Afinal, o motor pegou direitinho, não foi? — disse LeBay. — E</p><p>você não precisará arriscar sua preciosa bateria.</p><p>Ele deu uma cusparada. Não pude pensar em algo como resposta.</p><p>Para ser franco, fiquei um pouco constrangido.</p><p>O carro saiu lentamente da garagem, parecendo tão absurdamente</p><p>comprido que dava vontade de rir, chorar, fazer qualquer coisa. Era difícil</p><p>acreditar que pudesse ser tão grande. Parecia uma ilusão de ótica. E Arnie</p><p>ficara ainda menor, atrás do volante.</p><p>Ele arriou o vidro da janela e acenou para mim. Tínhamos que gritar,</p><p>para que nossas vozes fossem ouvidas — era outro detalhe sobre Christine,</p><p>a garota de Arnie: tinha uma voz extremamente alta e rouca, que exigiria</p><p>um pronto controle. O que sobrara do sistema exaustor, ao qual se poderia</p><p>adaptar um silencioso, não passava de um monte de rendilhado</p><p>ferruginoso. Desde que Arnie tomara posição ao volante, a pequena caixa</p><p>registradora na seção de automóveis de meu cérebro já totalizara as</p><p>despesas em cerca de seiscentos dólares — nisto não incluído o pára-brisa</p><p>estilhaçado. Só Deus sabia quanto poderia custar aquela reposição.</p><p>— Vou levá-lo para a Darnell's! — gritou Arnie. — Seu anúncio no</p><p>jornal diz que posso estacioná-lo nos boxes traseiros por vinte dólares a</p><p>semana!</p><p>— Arnie, vinte dólares por semana em um daqueles boxes dos fundos</p><p>é demais! — gritei em resposta.</p><p>Aí vinha mais roubalheira contra os jovens e inocentes. A Garagem</p><p>de Darnell fica contígua a um terreno baldio de quatro acres, ocupado por</p><p>automóveis usados, sob o falsamente animador nome de Darnell's Used</p><p>Auto Parts — Peças Usadas de Carro do Darnell. Eu estivera lá algumas</p><p>vezes, uma delas a fim de comprar um acionador de arranque para o meu</p><p>Duster, outra em busca de um carburador recondicionado para o Mercury</p><p>que havia sido meu primeiro carro. Will Darnell era um sujeito grande e</p><p>gordo como um porco, que bebia um bocado e fumava compridos</p><p>charutos, um atrás do outro, embora se dissesse que sua condição de</p><p>asmático não era das melhores. Ele declarava odiar quase todo adolescente</p><p>dono de carro em Libertyville... embora isso não o privasse de fazer</p><p>negócios com eles e enrolá-los.</p><p>— Eu sei — berrou Arnie, acima do barulhento motor —, mas será</p><p>apenas por uma semana ou duas, até eu encontrar um lugar mais barato.</p><p>Não posso levá-lo para casa do jeito como está, Dennis. Papai e mamãe</p><p>iam armar uma discussão dos diabos!</p><p>Sem a menor dúvida, ele tinha razão. Abri a boca para dizer qualquer</p><p>coisa mais — talvez pedir-lhe para acabar com aquela loucura, antes que</p><p>fosse tarde. Então, tornei a fechá-la. O negócio estava feito. Por outro</p><p>lado, eu não queria mais competir com aquele barulhento cano de descarga</p><p>e muito menos ficar ali, enviando para os pulmões um bocado da</p><p>empesteada fumaceira de carbono que o carro cuspia para fora.</p><p>— Está bem — falei. — Irei atrás de você.</p><p>— Boa idéia — disse ele, sorridente. — Vou por Walnut Street e</p><p>Basin Drive. Prefiro ficar fora das ruas principais.</p><p>— Certo.</p><p>— Obrigado, Dennis.</p><p>Ele baixou novamente a transmissão hidramática e o Plymouth saltou</p><p>um metro para diante, quase se desconjuntando. Arnie desacelerou um</p><p>pouco e Christine soprou vento e terra para os lados. O Plymouth desceu a</p><p>entrada para carros de LeBay, até a rua. Quando Arnie puxou o freio,</p><p>somente uma lanterna traseira se acendeu. Minha calculadora automotiva</p><p>mental somou impiedosamente mais cinco dólares.</p><p>Ele girou o volante para a esquerda e manobrou para a rua. Os</p><p>remanescentes do silencioso arranharam ferruginosamente o ponto mais</p><p>baixo da calçada. Arnie deu mais combustível e o carro rugiu como um</p><p>refugiado de uma convenção Democrata em Philly Plains. Do outro lado</p><p>da rua, as pessoas se debruçavam na entrada das casas ou chegavam à</p><p>porta, para verem o que estava acontecendo.</p><p>Resfolegando e grunhindo, Christine rodou pela rua, a uns quinze</p><p>quilômetros horários, expelindo espessas e fedorentas nuvens de azulado</p><p>óleo queimado, que ficavam suspensas no ar e então se diluíam</p><p>lentamente, ao suave anoitecer de agosto.</p><p>No sinal, uns quarenta metros adiante, o motor afogou. Um garoto</p><p>passou pelo calhambeque em seu Raleigh e, até meus ouvidos, chegou seu</p><p>grito insolente, debochado:</p><p>— Leve pro ferro-velho, mister!</p><p>O punho fechado de Arnie assomou fora da janela. Seu dedo médio</p><p>ergueu-se no ar, quando fez o gesto obsceno para o guri. Mais uma</p><p>primeira vez. Eu nunca tinha visto Arnie fazer aquilo para ninguém, em</p><p>toda a minha vida.</p><p>O arranque uivou, o motor tossiu e pegou. Desta feita, houve toda</p><p>uma série de sons chocalhantes. Era como se alguém começasse a disparar</p><p>uma metralhadora em Laurel Drive, Libertyville, EUA.</p><p>Alguém logo chamaria os tiras, denunciando desordem na via pública</p><p>e eles enquadrariam Arnie, por dirigir um veículo não-registrado e não-</p><p>vistoriado — bem como, talvez, pela provocação em público também. Em</p><p>casa, a situação não iria ficar exatamente uma beleza.</p><p>Houve o eco de um tiro final — que reverberou pela rua abaixo como</p><p>a explosão de um morteiro — e então o Plymouth virou à esquerda, para</p><p>Martin Street, o que o levaria à Walnut, uns dois quilômetros acima. O sol</p><p>que se punha transformou ligeiramente em ouro a vetusta lataria vermelha,</p><p>quando o carro desapareceu de vista. Vi que Arnie tinha o cotovelo</p><p>dobrado sobre a janela.</p><p>Virei-me para LeBay, revoltado novamente, disposto a dizer-lhe mais</p><p>algumas palavras ásperas. Confesso que estava fervendo por dentro. No</p><p>entanto, o que vi me tirou prontamente aquela idéia da cabeça.</p><p>Roland D. LeBay estava chorando.</p><p>Era horrível e grotesco, lamentável acima de tudo. Quando estava</p><p>com nove anos, tínhamos um gato chamado Capitão Beefheart, que foi</p><p>atropelado por um caminhão da Limpeza Urbana. Nós o levamos ao</p><p>veterinário — mamãe precisou dirigir devagar, porque chorava e não</p><p>conseguia ver direito, enquanto eu estava no banco traseiro, com o Capitão</p><p>Beefheart. Ele estava em uma caixa e eu lhe dizia que o veterinário ia</p><p>salvá-lo, que tudo ia ficar bem, mas mesmo um garotinho cabeça oca de</p><p>nove anos como eu podia ver que nunca mais tudo ia ficar novamente</p><p>certo para o Capitão Beefheart, porque algumas de suas tripas estavam</p><p>para fora, havia sangue saindo de seu ânus, fezes na caixa e em seu pêlo, e</p><p>ele estava morrendo. Tentei afagá-lo e ele me mordeu a mão, bem nas</p><p>peles sensíveis entre o polegar e o indicador. Foi uma dor forte e aumentou</p><p>aquela sensação de pena. Eu nunca mais sentira nada igual, desde então.</p><p>Não que eu me queixasse, compreendam; não creio que as pessoas sintam</p><p>isso muitas vezes. Se alguém experimentar muitas dessas sensações, é</p><p>levado para fazer cestas no hospício.</p><p>LeBay estava de pé em seu relvado careca; não muito distante do</p><p>lugar em que aquela enorme mancha de óleo havia desfolhado tudo.</p><p>Puxara um lenço enorme e, de cabeça baixa, enxugava os olhos com ele.</p><p>As lágrimas brilhavam gordurosas em suas faces, mais como suor, do que</p><p>lágrimas verdadeiras. Seu pomo-de-adão subia e descia.</p><p>Virei a cabeça, para não ter de vê-lo chorando e, por acaso, meus</p><p>olhos se fixaram em sua garagem para um carro. Antes ela parecera</p><p>entulhada — com os apetrechos ao longo da parede, claro, porém</p><p>principalmente por causa daquele imenso carro velho, com seus faróis</p><p>dianteiros duplos, o pára-brisa panorâmico e o capô de um acre. Agora, as</p><p>coisas encostadas à parede serviam apenas para acentuar o vazio essencial</p><p>da garagem, boquiaberto como uma boca desdentada.</p><p>Aquilo era quase tão horrível quanto LeBay. No entanto, quando olhei</p><p>de novo, o velho filho da puta já se controlara — bem, quase. Parara de</p><p>enxugar os olhos e enfiara o lenço no bolso traseiro de suas práticas calças</p><p>de velho. O rosto, contudo, continuava desolado. Muito desolado.</p><p>— Bem, aí está — comentou, em voz roufenha. — Fiquei sem a</p><p>minha máquina, filho.</p><p>— Eu só queria que meu amigo pudesse dizer a mesma coisa —</p><p>repliquei. — Se soubesse o problema que ele vai ter com seus velhos, por</p><p>causa daquela lata enferrujada...</p><p>— Saia daqui! — ordenou o velho. — Você parece um maldito</p><p>carneiro! É só béé, béé, béé, que ouço saindo de sua goela! Acho que</p><p>aquele seu amigo sabe muito mais do que você. Vá ver se ele precisa de</p><p>ajuda!</p><p>Desci o gramado até meu carro. Não queria ficar por ali, perto de</p><p>LeBay, nem mais um segundo.</p><p>— É só béé, béé, béé! — gritou ele as minhas costas,</p><p>rabugentamente, fazendo-me pensar naquela antiga canção dos</p><p>Youngbloods: Sou um cara de uma só nota, nela toco tudo o que posso. —</p><p>Você não sabe metade do que pensa que sabe!</p><p>Entrei em meu carro e afastei-me dali. Ao dobrar para a Martin</p><p>Street, olhei para trás ainda uma vez e o vi de pé em seu terreno, com o sol</p><p>brilhando em sua calva.</p><p>Da maneira como aconteceram as coisas, LeBay estava certo. Eu não</p><p>sabia metade do que imaginava saber.</p><p>Como Chegamos à Darnell's</p><p>Tenho um calhambeque 34</p><p>E o chamamos de biruta,</p><p>Compreendam, não tem nada de jovem,</p><p>Até já é bem velho, mas ainda muito bom...</p><p>— Jan and Dean</p><p>Desci pela Martin até Walnut e dobrei para a direita, em direção a</p><p>Basin Drive. Não demorei muito a emparelhar com Arnie. Ele havia</p><p>parado junto ao meio-fio e a tampa do capô de Christine estava erguida.</p><p>Um macaco de automóvel, tão velho que quase parecia ter sido usado</p><p>outrora para trocar rodas dos carroções Conestoga, jazia contra o</p><p>empenado pára-choque traseiro. O pneu traseiro da direita estava murcho.</p><p>Freei atrás dele, e mal tinha saído do carro quando uma mulher nova</p><p>saiu de sua casa em nossa direção, esgueirando-se por entre uma boa</p><p>coleção de objetos de plástico fincados em sua grama (dois flamingos cor-</p><p>de-rosa, quatro ou cinco patinhos enfileirados atrás da grande mãe pata e</p><p>um poço dos desejos bastante apresentável, com flores de plástico</p><p>brotando do balde de plástico). A mulher precisava urgentemente de</p><p>orientação dos Vigilantes de Peso.</p><p>— Não podem deixar esse lixo aqui! — avisou, mascando boa</p><p>quantidade de chicletes. — Não podem deixar esse lixo parado diante da</p><p>nossa casa, espero que saibam disso.</p><p>— Foi apenas um pneu vazio, madame — disse Arnie. — Vou tirar o</p><p>carro daqui, assim que...</p><p>— Não pode deixá-lo aí e espero que saiba disso! — insistiu ela,</p><p>como que em louca circularidade. — Meu marido logo estará chegando e</p><p>não quer nenhuma lata velha diante da casa.</p><p>— Não é uma lata velha! — exclamou Arnie, e algo em seu tom a fez</p><p>recuar um passo.</p><p>— Não fale comigo nesse tom de voz, filho — disse insolentemente</p><p>aquela obesa rainha do be-bop. — Não é preciso muita coisa para meu</p><p>marido ficar furioso!</p><p>— Escute aqui — começou Arnie.</p><p>Era a mesma voz inexpressiva e perigosa que usara quando Michael e</p><p>Regina tinham começado a discutir com ele. Agarrei-lhe o ombro com</p><p>força. Não havia necessidade de mais confusão.</p><p>— Obrigado, madame — falei. — Tiraremos o carro daqui em um</p><p>instante. Vamos dar um jeito nele tão depressa, que nem vai acreditar.</p><p>— Acho melhor — disse ela, e então apontou um polegar para o meu</p><p>Duster. — E o seu carro está parado diante da entrada da minha garagem.</p><p>Fiz meu carro recuar. Ela espiou a manobra e depois também recuou</p><p>sacolejando para a casa, onde um garotinho e uma garotinha se espremiam</p><p>na porta. Também eram gorduchos. Cada um deles comia um belo e</p><p>nutritivo sanduíche.</p><p>— O que foi, mãe? — perguntou o garotinho. — O que foi com o</p><p>carro daquele homem, mãe? O que foi?</p><p>— Cale a boca! — ordenou a rainha do be-bop, empurrando as duas</p><p>crianças para dentro. Sempre gostei de ver pais esclarecidos como aquela</p><p>mulher; isso me enche de esperanças no futuro. Virei-me para Arnie.</p><p>— Muito bem — falei, dizendo a única coisa inteligente em que pude</p><p>pensar —, no fundo, foi apenas um pneu furado, Arnie. Certo?</p><p>Ele sorriu aereamente.</p><p>— Estou com um probleminha, Dennis — disse.</p><p>Eu sabia qual era o seu problema: não tinha sobressalente. Arnie</p><p>tornou a puxar a carteira — dava pena vê-lo fazendo aquilo — e olhou em</p><p>seu interior.</p><p>— Preciso de um pneu novo — continuou.</p><p>— Claro, acho que precisa. Um recauchutado...</p><p>— Nada de recauchutados. Não é assim que quero começar.</p><p>Fiquei calado, mas olhei para meu Duster. Tinha dois recauchutados</p><p>nele e decidi que eram ótimos.</p><p>— Quanto acha que custariam um Goodyear ou Firestone novos,</p><p>Dennis?</p><p>Dei de ombros e consultei a pequena calculadora automotiva. Ela</p><p>concluiu que Arnie talvez conseguisse um pneu simples, sem banda</p><p>branca, por uns trinta e cinco dólares. Ele puxou duas notas de vinte da</p><p>carteira e as estendeu para mim.</p><p>— Se for mais, com o imposto e tudo, pagarei a diferença. — Olhei</p><p>para ele com tristeza.</p><p>— Quanto sobrou de seu pagamento da semana, Arnie? Seus olhos</p><p>estreitaram-se, desviando-se dos meus.</p><p>— O bastante — respondeu.</p><p>Decidi tentar mais uma vez — lembrem-se de que eu tinha apenas</p><p>dezessete anos, ainda acreditando que devemos mostrar aos outros como</p><p>agir melhor.</p><p>— Você não conseguiria tomar parte em um jogo de pôquer de um</p><p>níquel — falei. — Enfiou neste carro o que ganhou em toda a semana.</p><p>Esvaziar a carteira vai ser um gesto muito familiar para você, Arnie. Por</p><p>favor, cara. Reflita bem!</p><p>Seus olhos eram pétreos. Eu nunca lhe vira antes aquela expressão e,</p><p>embora talvez me considerem o mais ingênuo adolescente da América,</p><p>não me lembrava de tê-la visto em qualquer outro rosto. Estava surpreso e</p><p>desalentado — era como se, de repente, descobrisse que procurava ter uma</p><p>conversa racional com um indivíduo simplesmente lunático. Mais tarde,</p><p>tornei a ver tal expressão e imagino que o mesmo lhes tenha sucedido.</p><p>Hermetismo absoluto. É a expressão facial do sujeito ao qual dizemos que</p><p>a mulher a quem ama o anda corneando pelas costas.</p><p>— Pare com isto, Dennis — disse ele. Levantei as mãos, exasperado.</p><p>— Está bem! Está bem!</p><p>— E também não precisa ir ver o maldito pneu, se não quiser. —</p><p>Ainda aquela expressão pétrea, obstinada em seu rosto, e estupidamente</p><p>inflexível, posso jurar. — Eu dou um jeito!</p><p>Eu ia responder, e bem poderia ter dito algo bem desaforado, mas</p><p>aconteceu que olhei para a esquerda. As duas criancinhas roliças estavam</p><p>lá, nos limites de seu gramado. Montadas em dois velocípedes idênticos,</p><p>gêmeos, com os dedos manchados de chocolate. Olhavam para nós,</p><p>solenes.</p><p>— Não precisa se exaltar, cara — falei. — Vou arranjar o pneu.</p><p>— Só vá se quiser mesmo ir, Dennis — disse ele. — Sei que já está</p><p>ficando tarde.</p><p>— Está esfriando — respondi.</p><p>— Moço? — chamou o garotinho, lambendo o chocolate dos dedos.</p><p>— Mamãe disse que esse carro é um cocô.</p><p>— Isso mesmo — ecoou a garotinha. — Cocô-bosta.</p><p>— Cocô-bosta — disse Arnie. — Ora, isto é muito inteligente, não é,</p><p>crianças? Sua mãe é filósofa?</p><p>— Não — respondeu o garotinho. — Ela é Capricórnio. Eu sou Libra.</p><p>Minha irmã é...</p><p>— Volto o mais depressa que puder — falei, desajeitadamente.</p><p>— Certo.</p><p>—</p><p>Fique calmo.</p><p>— Não se preocupe. Não vou agredir ninguém.</p><p>Corri para meu carro. Enquanto deslizava para trás do volante, ouvi a</p><p>garotinha perguntar a Arnie, bem alto:</p><p>— Por que a sua cara é tão suja, moço?</p><p>Dirigi uns dois quilômetros até JFK Drive que — segundo minha</p><p>mãe, criada em Libertyville — havia sido o centro de uma das zonas mais</p><p>apreciadas da cidade, na época em que Kennedy fora assassinado, em</p><p>Dallas. Talvez tivesse dado azar, rebatizar Barnswallow Drive em</p><p>homenagem ao Presidente morto, porque desde os primeiros anos da</p><p>década de 60 a área nos arredores da rua degenerara para uma faixa ex-</p><p>urbana. Havia um cinema drive-in, um McDonald's, um Burger King, um</p><p>Arby's e o Big Twenty Lanes. Havia ainda uns oito ou dez postos de</p><p>gasolina, uma vez que a JFK Drive leva à Pennsylvania Turnpike, auto-</p><p>estrada com pedágio.</p><p>Conseguir o pneu de Arnie devia ser coisa de minutos, mas os dois</p><p>primeiros postos onde parei eram daqueles de auto-serviço, que nem ao</p><p>menos vendem óleo, mas apenas gasolina; tinham uma garota com ar de</p><p>retardada atrás de uma cabine de vidro à prova de bala, dessas que ficam</p><p>sentadas diante de um console de computador, lendo um National</p><p>Enquirer e mascando um punhado de goma, suficientemente grande para</p><p>asfixiar uma mula do Missouri.</p><p>O terceiro era um posto Texaco, com uma liquidação de pneus. Pude</p><p>comprar para Arnie um pneu comum que se encaixaria em seu Plymouth</p><p>(eu não conseguia chamar o carro de Christine e nem pensar nele — nela?</p><p>— por aquele nome), por apenas vinte e oito e cinqüenta, mais o imposto,</p><p>porém só havia um sujeito trabalhando lá — e tinha que colocar o pneu</p><p>novo no aro de roda de Arnie, ao mesmo tempo em que bombeava</p><p>gasolina. A operação durou mais de quarenta e cinco minutos. Ofereci-me</p><p>para bombear a gasolina em seu lugar, enquanto ele ajeitava o pneu, mas o</p><p>sujeito disse que o patrão o mataria, se soubesse disso.</p><p>Quando finalmente pude colocar o pneu montado em meu porta-</p><p>mala, pagando duas pratas ao cara pelo serviço, as primeiras luzes do</p><p>crepúsculo se tinham transformado nas primeiras sombras de um purpúreo</p><p>anoitecer. Cada arbusto lançava sombras alongadas e aveludadas e, ao</p><p>rodar devagar subindo a rua, vi as últimas luzes do dia espalhando-se</p><p>quase horizontalmente, através do espaço entulhado de lixo entre o Arby's</p><p>e o boliche. Aquela claridade, tanto ouro flutuante no céu, chegava a ser</p><p>terrível, em sua estranha e inesperada beleza.</p><p>Fiquei surpreso pelo sufocante pânico que me subiu da garganta</p><p>como fogo seco. Era a primeira vez que experimentava tal sensação</p><p>naquele ano — aquele longo e estranho ano —, porém não seria a última.</p><p>Entretanto, é difícil explicar, inclusive, defini-la. Tinha algo a ver com a</p><p>certeza de ser 11 de agosto de 1978, de que no mês seguinte eu passaria</p><p>para meu último período letivo no ginásio e que, quando as aulas</p><p>recomeçassem, aquilo significaria o final de uma longa e tranqüila fase de</p><p>minha vida. Eu me preparava para ser adulto, e via isso de algum modo —</p><p>tinha certeza de vê-lo, pela primeira vez, naquela maravilhosa, mas de</p><p>certa forma antiga exibição de luminosidade dourada, flutuando além da</p><p>passagem entre o campo de futebol e um restaurante de segunda.</p><p>Compreendi que o que realmente assusta a gente sobre crescer: é que</p><p>paramos de experimentar a máscara da vida, começando a experimentar</p><p>uma outra. Se ser criança quer dizer aprender a como viver, então, ser</p><p>adulto significa aprender a como morrer.</p><p>A sensação passou, mas em sua esteira eu me senti estremecido e</p><p>melancólico. Nenhuma das duas sensações fazia parte do meu eu habitual.</p><p>Quando retornei a Basin Drive, via-me repentinamente alheio aos</p><p>problemas de Arnie e procurando enfrentar os meus — idéias sobre tornar-</p><p>me adulto, que tinham desembocado naturalmente em idéias como</p><p>universidade, viver fora de casa e tentar entrar para o time de futebol na</p><p>State, disputando minha posição com mais sessenta pessoas qualificadas,</p><p>em vez de apenas dez ou doze. Então, talvez a gente diga: 'Grande droga,</p><p>Dennis, tenho algumas novidades para você: um bilhão de chineses</p><p>vermelhos pouco estão se lixando se você entrar para o primeiro time,</p><p>como calouro universitário.' Muito justo. Estou apenas querendo dizer que</p><p>tais coisas pareciam francamente reais pela primeira vez... e francamente</p><p>aterradoras. Por vezes, a mente nos leva em viagens como essa, mesmo</p><p>que não queiramos.</p><p>Ver que o marido da rainha do be-bop já chegara em casa e que ele e</p><p>Arnie estavam quase frente a frente, parecendo dispostos a desgraçar tudo</p><p>a qualquer segundo, não contribuiu em nada para modificar meu ânimo.</p><p>Os dois garotinhos continuavam escarranchados solenemente em</p><p>seus velocípedes, os olhos viajando de modo alternado de Arnie para Papai</p><p>e de novo para Arnie, como espectadores de alguma apocalíptica partida</p><p>de tênis, em que o juiz abate alegremente o derrotado com um tiro.</p><p>Pareciam esperar o momento de combustão, quando Papai achataria meu</p><p>esquelético amigo e transformaria seu corpo quebrado em gelatina.</p><p>Freei rapidamente e saí do carro, quase correndo para eles.</p><p>— É o que lhe estou dizendo! — rugiu Papai. — Estou lhe dizendo</p><p>que quero isso fora daqui e agora mesmo!</p><p>O homem tinha um enorme nariz achatado, repleto de veias</p><p>arrebentadas. As bochechas afogueadas eram cor de tijolo novo e, acima</p><p>da camisa de trabalho em sarja cinzenta, veias encordoadas sobressaíam</p><p>no pescoço.</p><p>— Não vou dirigir em cima do aro — disse Arnie. — Já lhe falei</p><p>isso. O senhor não dirigiria, se o carro fosse seu.</p><p>— Dirigirei você sobre o aro, Cara de pizza! — exclamou Papai, sem</p><p>dúvida querendo mostrar a seus filhos como a gente grande resolve seus</p><p>problemas, no Mundo Real. — Não vai estacionar seu horroroso</p><p>calhambeque envenenado em frente da minha casa. Não me provoque,</p><p>garoto, ou vai sair machucado!</p><p>— Ninguém vai sair machucado — falei. — Vamos, senhor. Dê-nos</p><p>algum tempo.</p><p>Os olhos de Arnie se voltaram agradecidos para mim e percebi o</p><p>quanto estivera amedrontado — quão amedrontado ainda estava. Sempre</p><p>um pária, ele sabia que existia algo em si mesmo — só Deus sabia o quê</p><p>— que fazia certo tipo de indivíduo querer acabar com ele. Devia estar</p><p>certo de que isso ia acontecer novamente — mas agora ele enfrentava o</p><p>perigo.</p><p>Os olhos do homem pousaram em mim.</p><p>— Mais um — disse, como que admirado por existirem tantos</p><p>imbecis no mundo. — Querem que acabe com os dois? É o que querem?</p><p>Pois acreditem, eu posso fazer isso.</p><p>Sim, eu conhecia o tipo. Dez anos antes, teria sido um dos caras no</p><p>colégio que achavam muito divertido arrancar os livros dos braços de</p><p>Arnie, quando ele seguia para sua sala de aulas, ou atirá-lo no chuveiro</p><p>com todas as roupas no corpo, depois da educação física. Nunca mudavam,</p><p>aqueles caras. Apenas ficavam mais velhos e ganhavam um câncer</p><p>pulmonar, ao fumarem tantos Luckies, quando não eram vítimas de uma</p><p>embolia cerebral aos cinqüenta e três ou coisa assim.</p><p>— Ninguém está querendo provocá-lo — falei. — Ele está com um</p><p>pneu arriado, pelo amor de Deus! Nunca teve um pneu arriado?</p><p>— Quero esses dois fora daqui, Ralph!</p><p>A mulher com focinho de porco estava de pé na entrada. Sua voz era</p><p>aguda e excitada. Aquilo era ainda melhor que o Phil Donahue Show.</p><p>Outros vizinhos tinham-se aproximado para ver os acontecimentos e tornei</p><p>a pensar, com grande angústia, que se já não tivessem chamado os tiras,</p><p>alguém logo os chamaria.</p><p>— Nunca tive um pneu arriado e nem deixei um calhambeque em</p><p>pedaços diante da casa de alguém, durante três horas — disse Ralph, bem</p><p>alto.</p><p>Seus lábios estavam repuxados para trás e pude ver a saliva brilhando</p><p>em seus dentes, à claridade do sol que se punha.</p><p>— Foi uma hora — repliquei, tranqüilo —, se tanto.</p><p>— Não me venha com suas gracinhas, garoto — disse Ralph. Não</p><p>estou interessado. E não gosto de vocês. Trabalho para viver. Volto para</p><p>casa cansado e não tenho tempo para discussões. Quero que tirem isso</p><p>daqui e agora!</p><p>— Tenho um sobressalente em meu porta-mala — falei. — Se, ao</p><p>menos, pudéssemos colocá-lo...</p><p>— E se o senhor tivesse um pouco de compostura — começou Arnie,</p><p>irritado.</p><p>Aquilo quase fez efeito. Se havia alguma coisa que o nosso chapa</p><p>Ralph não ia admitir diante dos filhos, era ser chamado de sem</p><p>compostura. Avançou para Arnie. Não sei como a coisa terminaria — com</p><p>Arnie na cadeia, talvez, seu precioso carro apreendido — mas de algum</p><p>modo fui capaz de erguer a mão e agarrar a de Ralph pelo pulso. O</p><p>encontro das duas provocou um nítido som de tapa, dentro do crepúsculo.</p><p>A garotinha com focinho de porco debulhou-se em lamurientas</p><p>lágrimas.</p><p>O garotinho com focinho de porco ficou montado em seu velocípede,</p><p>com o queixo quase batendo no peito.</p><p>Arnie, que sempre se esgueirava como um fantasma pela área de</p><p>fumar da escola, nem ao menos se encolheu. Em verdade, parecia querer</p><p>que aquilo acontecesse.</p><p>Ralph se voltou contra mim, os olhos esbugalhados de fúria.</p><p>— Muito bem, merdinha — disse. — Você primeiro! Sustive sua</p><p>mão, pressionando-a.</p><p>— Vamos com calma, cara — falei, em voz baixa. — O pneu está em</p><p>meu porta-mala. Dê-nos cinco minutos para mudá-lo e sair de sua vista.</p><p>Por favor.</p><p>Pouco a pouco, foi diminuindo a pressão para suster-lhe a mão. Ele</p><p>olhou para os filhos, a garotinha choramingando, o garotinho de olhos</p><p>arregalados, e isso pareceu decidi-lo.</p><p>— Cinco minutos — assentiu. Olhou para Arnie. — Teve muita sorte</p><p>por eu não chamar a polícia. Essa coisa não foi vistoriada e também está</p><p>sem a placa de licença.</p><p>Esperei que Arnie dissesse algo também inflamado e acabasse de vez</p><p>com a trégua, mas talvez ele não houvesse esquecido tudo quanto sabia</p><p>sobre prudência.</p><p>— Obrigado — disse. — Sinto muito ter-me exaltado.</p><p>Ralph grunhiu e enfiou a camisa de volta nas calças, em pequenos</p><p>gestos bruscos. Tornou a olhar para os filhos.</p><p>— Vão para casa! — vociferou. — O que estão fazendo aqui?</p><p>Querem que lhes dê um chuta-bunda? Céus, que família criativa, pensei.</p><p>Pelo amor de Deus, não dê um chuta-bunda neles, Papai — os dois podem</p><p>fazer cocô-bosta nas calças.</p><p>As crianças voaram para junto da mãe, abandonando os velocípedes.</p><p>— Cinco minutos — repetiu Ralph, encarando-nos malignamente.</p><p>Mais tarde, nessa noite, quando estivesse batendo um papo com os</p><p>rapazes, poderia contar-lhes como fizera o seu papel, mantendo os limites</p><p>entre a geração das drogas e do sexo. Sim, senhor, rapazes, eu disse a eles</p><p>para tirarem a droga daquele lixo da frente da minha casa, antes que eu</p><p>lhes desse um chuta-bunda. E, podem acreditar, eles voaram como se</p><p>tivessem os pés em fogo e os traseiros doloridos. Então, ele acenderia um</p><p>Lucky. Ou um Camel.</p><p>Pusemos o macaco de Arnie debaixo do pára-choque. Arnie mal</p><p>movera a alavanca umas três vezes quando o macaco se partiu em dois.</p><p>Fez um som poeirento quando se dividiu e a ferrugem esvoaçou em torno.</p><p>Arnie me fitou, seus olhos humildes e doridos ao mesmo tempo.</p><p>— Não se incomode — falei. — Usaremos o meu.</p><p>Já começava a escurecer. Meu coração ainda batia acelerado e a boca</p><p>estava amarga, pela confrontação com o Grande Chefão de Basin Drive,</p><p>119.</p><p>— Sinto muito, Dennis — disse Arnie, em voz baixa. — Não tornarei</p><p>a envolvê-lo nisto.</p><p>— Esqueça. Vamos logo colocar esse pneu.</p><p>Usamos o meu macaco para levantar o Plymouth (por vários e</p><p>terríveis segundos pensei que o pára-choque traseiro fosse desconjuntar-</p><p>se, em um rangido de metal podre, e retiramos o pneu avariado.</p><p>Colocamos o novo, apertamos as porcas mais ou menos e então arriamos o</p><p>carro. Foi um alívio imenso vê-lo novamente equilibrado sobre a rua; a</p><p>maneira como o pára-choque empenado se inclinara debaixo do macaco</p><p>chegara a assustar-me.</p><p>— Pronto — disse Arnie, encaixando a antiga e amassada calota</p><p>sobre as porcas.</p><p>Fiquei olhando para o Plymouth e, de repente, voltou a sensação que</p><p>eu experimentara na garagem de LeBay. Senti isso quando observei o novo</p><p>Firestone na traseira direita. A banda negra ainda conservava um dos</p><p>adesivos do fabricante e as vivas marcas de giz amarelo, da apressada</p><p>calibragem no posto de gasolina.</p><p>Estremeci ligeiramente — mas era impossível transmitir a fantástica</p><p>sensação que me dominava. Era como se eu tivesse visto uma serpente</p><p>quase pronta a livrar-se da pele antiga, uma serpente que já se desfizera de</p><p>parte dessa pele, revelando o que havia de novo e cintilante por baixo...</p><p>Ralph estava de pé à entrada de sua casa, espiando para nós. Em uma</p><p>das mãos segurava um gotejante hambúrguer com Pão Maravilha. A outra</p><p>mão enrolava-se em torno de uma lata de cerveja.</p><p>— Simpático, ele, não? — murmurei para Arnie, quando joguei seu</p><p>macaco espatifado no porta-mala do Plymouth.</p><p>— Um grande sujeito — murmurou Arnie, em resposta.</p><p>Bastou isso e começamos a rir contidamente, da maneira que ríamos,</p><p>ao superar uma situação tensa. Arnie jogou o pneu velho dentro do porta-</p><p>malas, em cima do macaco, depois ficou rindo alto, com as mãos sobre a</p><p>boca. Ele parecia um garoto, apanhado em flagrante, na investida contra o</p><p>pote da geléia. Só em pensar nisso, comecei a rir com vontade agora.</p><p>— De que estão rindo, seus vadios? — rugiu Ralph. Ele desceu os</p><p>degraus da entrada. — Hein? Querem rir com a cara virada do avesso por</p><p>um instante? Posso mostrar como se faz, acreditem!</p><p>— Saia daqui depressa — falei para Arnie.</p><p>Corri de volta a meu Duster. Nada conseguia conter nosso riso agora,</p><p>as gargalhadas saíam naturalmente. Joguei-me no banco da frente e liguei</p><p>a chave, me torcendo de rir. À minha frente, o Plymouth de Arnie entrou</p><p>em movimento com um rugido e uma espessa, fedorenta nuvem de</p><p>descarga azul. Mesmo acima da barulheira, eu conseguia ouvir suas</p><p>risadas incontidas, um som que beirava a histeria.</p><p>Ralph investiu através do gramado, ainda segurando o hambúrguer</p><p>gotejante e a lata de cerveja.</p><p>— De que estão rindo, seus vadios? Hein?</p><p>— Seu, seu careta! Quadradão!— gritou Arnie, triunfante, partindo</p><p>entre uma chocalhante fuzilaria de estouros.</p><p>Pisei no acelerador e tive que manobrar bruscamente, para evitar</p><p>Ralph que, agora, aparentemente, partia para o homicídio. Eu continuava</p><p>rindo, porém não era mais um riso satisfeito, se é que chegara a sê-lo —</p><p>era um som agudo e arquejante, quase como um grito.</p><p>— Eu mato você, vagabundo!— rugiu Ralph.</p><p>Tornei a pisar no acelerador e, desta feita, quase engatei na traseira</p><p>de Arnie. Fiz a Ralph o mesmo gesto obsceno que Arnie fizera aquela</p><p>tarde, depois gritei:</p><p>— Enfie!</p><p>Então, ele começou a correr atrás de nós. Tentou emparelhar e, por</p><p>alguns segundos, seus pés ressoaram na calçada. Depois parou, respirando</p><p>com dificuldade e grunhindo.</p><p>— Que dia mais louco! — exclamei em voz alta, algo amedrontado</p><p>pela trêmula e lacrimosa qualidade de minha voz. O gosto amargo me</p><p>voltara à boca. — Que dia mais infernalmente louco!</p><p>Em Hampton Street, a Garagem de Darnell era uma construção</p><p>alongada, com as laterais em folhas de zinco corrugado e um teto</p><p>enferrujado, também de zinco corrugado. Na fachada havia uma tabuleta</p><p>com letras ensebadas onde se lia: POUPE SEU DINHEIRO! SEU KNOW-</p><p>HOW, NOSSAS FERRAMENTAS! Mais abaixo, em letras menores, lia-se:</p><p>Vaga na Garagem, Alugada por Semana, Mês ou Ano.</p><p>O depósito de automóveis velhos ficava atrás da Darnell's. Era uma</p><p>área com o comprimento de um quarteirão, encerrada entre muros</p><p>formados por lâminas do mesmo zinco corrugado, com metro e meio de</p><p>altura, o indiferente assentimento de Will Darnell aos regulamentos do</p><p>Conselho de Zoneamento da Cidade. Não que houvesse alguma forma de o</p><p>Conselho fazer Will Darnell andar na linha, nem porque dois dos três</p><p>membros do Conselho de Zoneamento eram seus amigos. Em Libertyville,</p><p>Will Darnell conhecia todos que lhe interessavam. Era um daqueles tipos</p><p>encontrados em qualquer cidade, grande ou pequena, que se movimentam</p><p>silenciosamente por trás de qualquer número de cenários.</p><p>Eu ouvira dizer que ele estava envolvido no ativo tráfico de drogas</p><p>entre os alunos do Ginásio de Libertyville e do Ginásio Darby. Também</p><p>ouvira dizer que era bem conhecido entre os escroques importantes de</p><p>Pittsburgh e Filadélfia. Eu não acreditava nessa história — pelo menos,</p><p>penso que não acreditava —, mas sabia que quem quisesse fogos de</p><p>artifício, bombas de segunda mão ou foguetes de qualidade</p><p>inferior para o</p><p>Quatro de Julho, Will Darnell tinha para vender. Por meu pai, também</p><p>ficara sabendo que Will fora acusado doze anos antes, quando eu era</p><p>apenas um guri de cinco anos, de ser um dos chefes de uma quadrilha de</p><p>carros roubados, que se estendia daquela nossa parte do mundo para leste,</p><p>até a Cidade de Nova Iorque e em toda a longitude para cima, até Bangor,</p><p>no Maine. Finalmente, as acusações foram retiradas. No entanto, meu pai</p><p>dizia ter certeza de que Will Darnell devia estar atolado até as orelhas em</p><p>outras bandalheiras, o que quer que fosse, desde roubo da carga de</p><p>caminhões, a falsificação de antigüidades.</p><p>Fique longe daquele lugar, Dennis, dissera meu pai. Isto fora um ano</p><p>antes, não muito depois de eu ter adquirido meu primeiro calhambeque e</p><p>investido vinte dólares no aluguel de um dos boxes da Garagem Faça-</p><p>você-mesmo, de Darnell, para tentar trocar o carburador, em uma</p><p>experiência que terminara em total fracasso.</p><p>Eu devia ficar longe daquele lugar — mas lá estava, penetrando pela</p><p>entrada principal, atrás de meu amigo Arnie, depois do escurecer, nada</p><p>restando do dia senão uma mancha avermelhada de fornalha no horizonte.</p><p>Os faróis dianteiros iluminaram um número suficiente de peças de carro</p><p>rejeitadas, destroços inaproveitáveis e sucata por toda parte, o que me</p><p>deixou mais deprimido e cansado do que nunca. Lembrei que não havia</p><p>telefonado para casa e que meus pais certamente estariam se perguntando</p><p>em que diabo de lugar eu estaria.</p><p>Arnie rodou até uma imensa porta de garagem, com um cartaz ao</p><p>lado, dizendo BUZINE PARA ENTRAR. Uma claridade esmaecida brotava</p><p>de uma janela coberta de sujeira, ao lado da porta — havia alguém em</p><p>casa — e mal contive um impulso de debruçar-me para fora do carro e</p><p>dizer a Arnie para levar o Plymouth até minha casa, por aquela noite. Tive</p><p>uma visão de nós dois dando com Will Darnell e seus companheiros</p><p>inventariando televisões coloridas contrabandeadas ou repintando</p><p>Cadillacs roubados. Os garotos detetives chegam a Libertyville.</p><p>Arnie ficou quieto, sem buzinar ou fazer coisa alguma. Eu já me</p><p>dispunha a sair e perguntar-lhe o que havia, quando ele caminhou até onde</p><p>eu estacionara. Mesmo àquela débil claridade do lusco-fusco, ele parecia</p><p>profundamente constrangido.</p><p>— Quer buzinar para mim, Dennis? — pediu, com humildade. —</p><p>Parece que a buzina de Christine não funciona.</p><p>— Claro.</p><p>— Obrigado.</p><p>Buzinei duas vezes e, após uma pausa, a enorme porta da garagem se</p><p>ergueu, com um ruído chocalhante. O próprio Will Darnell estava parado</p><p>lá, com a pança sobrando acima do cinto. Acenou impacientemente para</p><p>que Arnie entrasse.</p><p>Manobrei meu carro, colocando-o de frente para a saída e entrei</p><p>também.</p><p>O interior era imenso, abobadado e terrivelmente silencioso no fim</p><p>do dia. Havia pelo menos uns sessenta compartimentos para carros, cada</p><p>um equipado com sua própria caixa de ferramentas, aparafusada por baixo,</p><p>a fim de que os amadores com carros avariados, mas sem ferramentas,</p><p>fizessem eles mesmos os consertos. O teto era alto, cruzado por vigas nuas</p><p>e parecendo oscilantes.</p><p>Havia avisos pregados por toda parte: TODAS AS FERRAMENTAS</p><p>DEVEM SER INSPECIONADAS ANTES DE SUA PARTIDA e MARQUE</p><p>ANTECIPADAMENTE SUA HORA PARA O ELEVADOR e SOLICITE</p><p>UM MANUAL DE MOTORES e NÃO ADMITIMOS LINGUAGEM</p><p>IMPRÓPRIA E PALAVRÕES. Vi dúzias de outros — para cada canto que</p><p>me virasse, um aviso parecia saltar em minha direção. Um enorme</p><p>homem-aviso era Will Darnell.</p><p>— Boxe vinte! Boxe vinte! — gritou Darnell para Arnie, em sua voz</p><p>irritante e resfolegante. — Ponha o carro lá e desligue o motor, antes que</p><p>fiquemos todos asfixiados!</p><p>"Todos" parecia ser um grupo de homens em uma enorme mesa de</p><p>jogo, no canto mais distante. Fichas de pôquer, cartas de baralho e garrafas</p><p>de cerveja espalhavam-se por sobre a mesa. Eles observavam a nova</p><p>aquisição de Arnie, com expressões que variavam da aversão ao</p><p>divertimento.</p><p>Arnie dirigiu o Plymouth para o boxe vinte, estacionou-o e desligou o</p><p>motor. Uma fumaceira azulada foi expelida para o imenso e cavernoso</p><p>recinto.</p><p>Darnell se virou para mim. Usava uma camisa branca semelhante a</p><p>um velame e calças cáqui marrons. Enormes rolos de gordura destacavam-</p><p>se em seu pescoço e caíam em babados, abaixo do queixo.</p><p>— Garoto — disse ele, naquela mesma voz resfolegante —, se</p><p>vendeu para ele aquele pedaço de merda, devia ter vergonha do que fez.</p><p>— Não fui eu que vendi. — Por alguma absurda razão, senti que</p><p>devia justificar-me com aquela baleia, de uma forma como jamais fizera</p><p>com meu pai. — Até procurei convencê-lo a cair fora do negócio.</p><p>— Devia ter sido mais insistente.</p><p>Ele caminhou até Arnie, que então saía do carro. Arnie bateu a porta;</p><p>a ferrugem caiu em flocos, do painel oscilante daquele lado, em um fino</p><p>chuveiro vermelho.</p><p>Com ou sem asma, Darnell caminhava com os movimentos graciosos</p><p>e quase femininos do homem que é gordo há muito tempo e vê um longo</p><p>futuro de obesidade pela frente. E gritava para Arnie, antes mesmo que</p><p>meu amigo se virasse de frente, com ou sem asma. Penso que se poderia</p><p>dizer ser ele um homem que não se deixava abater pela doença.</p><p>Como os caras na área de fumantes da escola, como Ralph, da Basin</p><p>Drive, ou como Buddy Repperton (penso que logo estaremos falando a seu</p><p>respeito), ele logo sentia uma aversão por Arnie — era um caso de</p><p>antipatia à primeira vista.</p><p>— Muito bem, esta foi a última vez que ligou essa merda mecânica</p><p>aqui dentro, sem o cano de descarga! — berrou ele. — Se o pegar fazendo</p><p>isso, será posto na rua, entendido?</p><p>— Está bem. — Arnie parecia pequenino, cansado e exaurido. Fosse</p><p>qual fosse a selvagem energia que o impelira até então, agora havia</p><p>desaparecido. Senti pena, uma pena ligeira, ao vê-lo daquele jeito. Eu...</p><p>Darnell não o deixou ir em frente.</p><p>— Você quer um cano de descarga, que custa dois e cinqüenta a hora,</p><p>se fizer uma reserva antecipada. E vou lhe dizer uma coisa, neste exato</p><p>momento, que vai ter que decorar, meu amiguinho. Não sou obrigado a</p><p>ficar com merda nenhuma de vocês, garotos. Não sou. Este lugar é para</p><p>caras trabalhadores, que precisam manter os carros andando e botar pão na</p><p>mesa, não para garotos ricos de universidade, que querem sair apostando</p><p>corridas no Orange Belt. É proibido fumar aqui dentro. Se quiser uma</p><p>tragada, tem que ir lá para trás, no depósito.</p><p>— Eu não fum...</p><p>— Não me interrompa, garoto. Não me interrompa e nem venha</p><p>bancar o espertinho — disse Darnell.</p><p>Estava agora em pé diante de Arnie. Sendo mais alto e mais largo,</p><p>encobria meu amigo inteiramente.</p><p>Comecei a ficar irritado de novo. Na verdade, podia sentir meu corpo</p><p>gemer de protesto contra o barbante de ioiô em que minhas emoções</p><p>haviam estado, desde nossa chegada à casa de LeBay, quando vimos que o</p><p>maldito carro não estava mais sobre o gramado.</p><p>Adolescentes são uma classe tiranizada; após alguns anos,</p><p>aprendemos a nossa própria versão de uma rotina de Pai Tomás quanto a</p><p>inimigos da gente, como Will Darnell. Sim, senhor; não senhor; está bem;</p><p>fique certo.</p><p>Agarrei repentinamente o braço de Darnell.</p><p>— Senhor?</p><p>Ele girou para mim. Descobri que, quanto maior a minha antipatia</p><p>por adultos, mais apto me sinto a tratá-los por Senhor.</p><p>— O que é?</p><p>— Aqueles homens lá estão fumando. Seria melhor dizer a eles que</p><p>parem.</p><p>Apontei para os sujeitos à mesa de pôquer. Eles haviam distribuído</p><p>cartas para uma nova mão. A fumaça pairava acima da mesa, em um halo</p><p>azulado. Darnell fitou os companheiros, depois olhou para mim. Seu rosto</p><p>era muito solene.</p><p>— Está querendo ajudar seu amigo a ser mandado embora daqui,</p><p>Júnior?</p><p>— Não — respondi. — Não, senhor.</p><p>— Então, feche sua matraca!</p><p>Voltando-se para Arnie, ele pousou as mãos carnudas sobre os</p><p>quadris avantajados e bem acolchoados.</p><p>— Conheço um cara desagradável assim que o vejo — disse ele —, e</p><p>acho que estou vendo um, neste exato momento. Estou de olho em você,</p><p>garoto. Banque o engraçadinho comigo, uma só vez, e eu o farei cair</p><p>sentado sobre o traseiro, pouco importando quanto tenha pago adiantado!</p><p>Uma fúria cega subiu de meu estômago para a cabeça, fazendo-a</p><p>latejar. Por dentro,</p><p>suplicava a Arnie para dizer àquele gordo imbecil que</p><p>não chateasse, queria que ele o agredisse e depois corresse com seu</p><p>calhambeque para fora dali, o mais depressa possível. Claro que os</p><p>companheiros de pôquer de Darnell se meteriam e nós provavelmente</p><p>terminaríamos aquela maravilhosa noite no pronto-socorro do Hospital</p><p>Comunitário de Libertyville, enquanto nos costurariam a cabeça... mas</p><p>aquilo quase que valia a pena.</p><p>Arnie, pedi mentalmente, diga a ele que se foda e vamos dar o fora</p><p>daqui. Revide, Arnie! Não deixe que ele pise em você! Não seja um</p><p>perdedor, Arnie — se enfrentou sua mãe, pode enfrentar também esse filho</p><p>da puta. Faça isso apenas esta vez, não seja um perdedor!</p><p>Arnie ficou calado por muito tempo, cabisbaixo, para então dizer:</p><p>— Sim, senhor.</p><p>Foi tão baixo, que era quase inaudível. Como se ele estivesse</p><p>sufocado.</p><p>— Como disse?</p><p>Arnie ergueu a cabeça. Tinha o rosto lívido. Os olhos estavam</p><p>marejados de lágrimas. Não agüentei olhar para aquilo. Doía demais.</p><p>Virei-me. Os jogadores de pôquer tinham parado de jogar e observavam os</p><p>acontecimentos que se desenrolavam no boxe vinte.</p><p>— Eu disse "sim, senhor" — repetiu Arnie, com voz trêmula.</p><p>Era como se tivesse assinado alguma terrível confissão. Tornei a</p><p>olhar para o carro, o Plymouth 58, estacionado ali, quando deveria estar no</p><p>depósito de ferro-velho dos fundos, com o restante dos destroços inúteis e</p><p>enferrujados de Darnell — e o odiei novamente, pelo que estava causando</p><p>a Arnie.</p><p>— Muito bem, caiam fora — disse Darnell. — Já fechamos.</p><p>Arnie caminhou cegamente, aos tropeções. Teria avançado em linha</p><p>reta para uma pilha de velhos pneus carecas, se eu não o agarrasse pelo</p><p>braço e o guiasse. Darnell seguiu em direção contrária, rumando para a</p><p>mesa de pôquer. Quando chegou lá, disse algo aos outros, em sua voz</p><p>chiada. Todos riram grosseiramente.</p><p>— Estou bem, Dennis — falou Arnie, como se eu lhe tivesse</p><p>perguntado. Os dentes estavam cerrados e o peito se movia em rápidas,</p><p>fundas inspirações. — Estou bem, me solte. Está tudo certo comigo.</p><p>Larguei seu braço. Cruzamos a porta e Darnell berrou para nós:</p><p>— E não me traga seus amigos vagabundos para cá ou o ponho para</p><p>fora daqui! Um dos outros acrescentou, em concordância:</p><p>— E deixe sua droga em casa!</p><p>Arnie encolheu-se. Era meu amigo, porém eu o odiava quando se</p><p>encolhia daquele jeito. Escapamos para a fria escuridão do exterior. A</p><p>porta chocalhou, quando foi arriada às nossas costas. Foi assim que</p><p>levamos Christine para a Garagem de Darnell. Um bocado divertido, não?</p><p>No Lado de Fora</p><p>Estou com um carro e alguma gasolina,</p><p>Diga a todos que podem puxar meu saco...</p><p>— Glenn Frey</p><p>Entramos em meu carro e rodei para fora do pátio da garagem. Não</p><p>sei como, mas estava passando de nove da noite. Como o tempo voa,</p><p>quando a gente está se divertindo! Uma meia-lua já pairava no céu. Isso e</p><p>as luzes alaranjadas, no parque de estacionamento do Monroeville Mall,</p><p>bastavam para eclipsar quaisquer possíveis estrelas cadentes a que se</p><p>pudesse fazer um pedido.</p><p>Rodamos os dois ou três primeiros quarteirões em silêncio total.</p><p>Então, de repente, Arnie desatou em um pranto furioso. Eu achava que ele</p><p>iria chorar, mas a força de seu choro assustou-me. Tentei intervir.</p><p>— Arnie...</p><p>Desisti na hora. Ele ia chorar, até a vontade passar. As lágrimas e</p><p>soluços brotaram em um jato estridente e amargo, descontroladamente —</p><p>Arnie já esgotara sua quota de controle para o dia. A princípio, pareceu-me</p><p>ser apenas uma reação; eu sentia mais ou menos a mesma coisa, só que</p><p>minha raiva subira para a cabeça, fazendo-a latejar como um dente</p><p>cariado, e para o estômago, que se enovelava doentiamente.</p><p>Sim, de início pensei que fosse tão-somente uma espécie de reação,</p><p>uma liberação espontânea e, no começo, talvez assim acontecesse. No</p><p>entanto, após um ou dois minutos, percebi que era muito mais do que isso,</p><p>que a coisa ia muito mais fundo. Então, comecei a decifrar palavras, entre</p><p>os sons que ele emitia. Poucas a princípio, depois séries delas.</p><p>— Eles me pagam! — gritou ele, engroladamente, entre os soluços.</p><p>— Vou mostrar àqueles fodidos filhos da puta que vão me pagar, Dennis,</p><p>farei com que se arrependam, os cretinos vão engolir... ENGOLIR...</p><p>ENGOLIR!</p><p>— Pare com isso — falei, assustado. — Esqueça, Arnie.</p><p>Arnie não queria esquecer. Começou a dar com os punhos no painel</p><p>de instrumentos acolchoado de meu Duster, com força bastante para</p><p>marcá-lo.</p><p>— Eles me pagam, você vai ver!</p><p>À claridade pálida da lua e de uma lâmpada em um poste próximo,</p><p>seu rosto parecia devastado e feroz. Naquele momento, Arnie era como um</p><p>estranho para mim. Estava longe, caminhando por algum dos frios lugares</p><p>do universo, que um Deus amante de gracejos reserva para pessoas como</p><p>ele. Eu não o conhecia mais. Não queria conhecê-lo. Limitei-me a ficar ali,</p><p>sentado, impotente e esperando pela volta do Arnie que eu conhecia. Após</p><p>um momento, ele voltou.</p><p>As palavras histéricas confundiram-se novamente com soluços. O</p><p>ódio se fora e ele apenas chorava. Era um som alto, penetrante e</p><p>desnorteado.</p><p>Fiquei parado ao volante do carro, não muito certo sobre o que</p><p>deveria fazer, mas desejando estar em outro lugar, qualquer lugar,</p><p>experimentando sapatos na Thom McAn's, preenchendo uma solicitação</p><p>de crédito em uma loja que vendesse com desconto, parado diante de um</p><p>cubículo de banheiro pago, com diarréia e sem um centavo no bolso.</p><p>Qualquer lugar, cara. Não precisava ser Monte Cario. Acima de tudo,</p><p>fiquei ali desejando ser mais velho. Desejando que ambos fôssemos mais</p><p>velhos.</p><p>Isto, no entanto, era fugir aos acontecimentos. Eu sabia o que fazer.</p><p>Relutantemente, contra a vontade, deslizei no assento, passei os braços em</p><p>torno dele e o abracei. Podia sentir seu rosto, quente e febril, esmagado</p><p>contra meu peito. Ficamos assim por talvez uns cinco minutos. Depois o</p><p>levei de carro para casa. Então, fui para casa também. Nenhum de nós dois</p><p>comentou o assunto mais tarde, aquilo de abraçá-lo daquele jeito.</p><p>Ninguém passou pela calçada e nos viu estacionados junto ao meio-fio. Se</p><p>aparecesse alguém, sem dúvida pensaria que éramos um casal de gays.</p><p>Dentro do carro, eu o abraçara e tentara demonstrar minha estima mais</p><p>que podia, perguntando-me como era possível eu ser o único amigo de</p><p>Arnie Cunningham. Porque naquele momento, acreditem, eu não queria</p><p>ser seu amigo.</p><p>Não obstante, havia algo — percebi naquele momento, embora de</p><p>maneira muito vaga — talvez Christine se tornasse amigo — amiga? —</p><p>dele. Não estava bem certo se gostava disso, embora naquele longo e</p><p>alucinado dia houvéssemos passado os mesmos maus pedaços por causa</p><p>do Plymouth.</p><p>Quando paramos junto à calçada fronteira à sua casa, perguntei:</p><p>— Tudo bem com você, cara? Ele forçou um sorriso.</p><p>— Sim, está tudo bem. — Fitou-me com tristeza. — Sabe de uma</p><p>coisa? Você deveria procurar outro tipo de caridade para fazer. Fundo</p><p>Cardíaco. Sociedade do Câncer. Qualquer coisa.</p><p>— Ora, vá caindo fora!</p><p>— Você sabe o que estou dizendo.</p><p>— Se quer dizer que é um chorão, qual a novidade?</p><p>A luz da entrada foi acesa. Michael e Regina dispararam para fora,</p><p>sem dúvida querendo verificar se éramos nós ou a Polícia Estadual, vindo</p><p>comunicar-lhes que seu filho único fora atropelado na auto-estrada.</p><p>— Arnold? — chamou Regina, em voz estridente.</p><p>— É melhor dar o fora, Dennis — disse Arnie, sorrindo agora com</p><p>mais honestidade. — Você não precisa desta merda. — Saiu do carro e</p><p>disse obedientemente: — Olá, mamãe. Olá, papai.</p><p>— Onde foi que esteve? — perguntou Michael. — Deixou sua mãe</p><p>terrivelmente preocupada, rapazinho!</p><p>Arnie tinha razão. Eu podia dispensar a cena. Olhei para trás, pelo</p><p>espelho retrovisor, apenas de relance, e o vi parado na calçada, parecendo</p><p>solitário e vulnerável — e então os dois o abraçaram e o guiaram de volta</p><p>ao ninho de 60.000 dólares. Na certa, lançavam sobre ele toda a influência</p><p>de sua última jornada paterna — o Treinamento para Eficiência Paterna, e</p><p>sabe-se lá o que mais. Michael e Regina eram absolutamente racionais</p><p>nesse sentido, aí estava a coisa. Haviam desempenhado papel fundamental</p><p>para</p><p>que Arnie se tornasse como era, mas eram racionais demais para</p><p>perceber isso.</p><p>Liguei o rádio na FM-104, onde continuava o Block Party Weekend e</p><p>peguei Bob Seger e a Silver Builet Band cantando 'Still the Same'. Aquilo</p><p>estava horrendamente perfeito demais e passei para o jogo dos Phillies.</p><p>Os Phillies perdiam. Ainda bem. Combinava com o resto.</p><p>Pesadelos</p><p>Sou um corredor de estrada, meu bem,</p><p>E você não pode me alcançar.</p><p>Sim, sou um corredor de estrada, meu bem,</p><p>E você não consegue emparelhar comigo.</p><p>Venha para cá e corra,</p><p>Querida, querida, você verá.</p><p>Chegue mais perto, meu bem! Pare atrás!</p><p>Vou jogar poeira nos seus olhos!</p><p>— Bo Diddley</p><p>Quando cheguei em casa, papai e minha irmã estavam sentados na</p><p>cozinha, comendo sanduíches de açúcar mascavo. Comecei imediatamente</p><p>a sentir fome e recordei que nem ao menos jantara.</p><p>— Por onde andou, chefe? — perguntou Elaine.</p><p>Nem levantou os olhos da revista que lia — 16, Creem ou Tiger Beat,</p><p>não sei qual era. Começara a chamar-me de chefe desde que eu descobrira</p><p>Bruce Springsteen, um ano antes, e ficara fanático. Evidentemente, aquele</p><p>tratamento era com a finalidade de irritar-me.</p><p>Aos quatorze anos, Elaine deixava a meninice para trás e se</p><p>transformava em uma futura beldade americana — alta, cabelos escuros e</p><p>olhos azuis. Entretanto, no final daquele verão de 1978, era uma</p><p>adolescente agressiva, como uma multidão de tantos outros. Começara</p><p>com Donny e Marie Osmond aos nove anos, apaixonando-se por John</p><p>Travolta aos onze (cometi o erro de chamá-lo de John Revolta certo dia, e</p><p>ela me arranhou tanto que quase precisei levar um ponto no rosto —</p><p>afinal, acho que eu merecia). Aos doze, ela gamou por Shaun. Depois foi</p><p>Andy Gibb. Só ultimamente vinha demonstrando gostos mais sinistros:</p><p>roqueiros da barulhenta música eletrônica, como Deep Purple e Styx, um</p><p>grupo novo.</p><p>— Estive ajudando Arnie a levar o carro dele — falei, tanto para meu</p><p>pai, como para ela. Era mais do que isso, de fato.</p><p>— Aquele asqueroso — suspirou Ellie, virando uma página de sua</p><p>revista.</p><p>De repente, senti um súbito e espantoso ímpeto de arrancar a revista</p><p>de suas mãos, rasgá-la em duas e jogar-lhe os pedaços na cara. Isso me</p><p>deixou perceber, exatamente, como a tensão daquele dia fora mais forte do</p><p>que tudo o mais. Na verdade, Elaine não achava Arnie asqueroso; ela</p><p>apenas aproveitava qualquer oportunidade para irritar-me. Enfim, talvez</p><p>eu tivesse ouvido Arnie ser chamado de asqueroso vezes demais, nas</p><p>últimas horas. As lágrimas dele ainda secavam no peito de minha camisa e</p><p>é possível que também me sentisse um pouco asqueroso.</p><p>— O que "Beijinho" esteve fazendo estes dias, queridinha? —</p><p>perguntei-lhe docemente. — Escrevendo algumas cartas de amor para Erik</p><p>Estrada? "Oh, Erik, eu morro por você, meu coração dispara como louco, a</p><p>cada vez que penso em seus lábios grossos e melosos esmagando os</p><p>meus..."</p><p>— Você é um animal — disse ela, friamente. — Um animal, é isso</p><p>que você é!</p><p>— E não conheço ninguém melhor.</p><p>— Está legal.</p><p>Ela pegou o sanduíche de açúcar mascavo, a revista, e disparou</p><p>bruscamente para a sala de estar.</p><p>— Não deixe essa coisa cair no chão, Ellie — avisou papai,</p><p>prejudicando um pouco sua retirada. Fui até a geladeira, mas rejeitei um</p><p>salsichão e um tomate, que não me agradaram muito. Havia</p><p>também meia embalagem de queijo pasteurizado, mas eu exagerara</p><p>tanto naquela porcaria quando na escola primária que, aparentemente, esse</p><p>exagero eliminara meu desejo por ele. Preferi meio litro de leite para</p><p>acompanhar meu sanduíche e abri uma lata de sopa Campbell com carne</p><p>picada.</p><p>— Ele conseguiu? — perguntou papai.</p><p>Meu pai é assessor tributário para a H & R Block. Como autônomo,</p><p>faz outros trabalhos sobre impostos. Antigamente era contador em tempo</p><p>integral para a maior firma de arquitetura de Pittsburgh, mas sofreu um</p><p>ataque cardíaco e deixou o cargo. É um excelente sujeito.</p><p>— Sim, conseguiu.</p><p>— E você achou tão ruim como antes?</p><p>— Pior ainda. Onde está mamãe?</p><p>— Estudando — disse ele.</p><p>Seus olhos encontraram os meus e quase começamos a rir</p><p>sufocadamente. Olhamos, para outras direções logo em seguida,</p><p>envergonhados — embora o fato de nos envergonharmos não ajudasse</p><p>muito. Minha mãe está com quarenta e três anos e trabalha como</p><p>higienista dentária. Durante muito tempo não trabalhou em sua</p><p>especialidade, mas voltou a ela quando papai teve o ataque cardíaco.</p><p>Quatro anos antes, ela concluíra ser uma escritora latente e começou</p><p>a compor poemas sobre flores e a escrever contos sobre doces velhinhos</p><p>no outono de suas vidas. De vez em quando ficava francamente realista e</p><p>escrevia uma história sobre uma jovem tentada a "arriscar-se", mas então</p><p>decidia ser muito melhor que ela continuasse Pura para o Leito Nupcial.</p><p>Naquele verão, matriculara-se em um curso rápido para escritores, em</p><p>Horlicks — onde Michael e Regina lecionavam, lembrem-se — e</p><p>colecionava todos os seus temas e contos em um livro a que dera o nome</p><p>de Rascunhos de Amor e Beleza.</p><p>Vocês podem estar pensando (e parabéns, se pensaram) que nada há</p><p>de engraçado sobre uma mulher que consegue manter um emprego, cuidar</p><p>da família e, ao mesmo tempo, desejar algo novo, querer expandir um</p><p>pouco seus horizontes. Claro que estão certos nisso. Também poderão</p><p>pensar que eu e meu pai tínhamos todos os motivos para envergonhar-nos,</p><p>que não passávamos de uma dupla de porcos discriminadores grunhindo</p><p>em nossa cozinha e, mais uma vez, têm toda razão. Não quero discutir este</p><p>ponto, embora diga que, se tivessem sido obrigados a ouvir constantes</p><p>leituras extraídas de Rascunhos de Amor e Beleza, como eu e papai — e</p><p>também Elaine — poderiam compreender um pouco melhor a origem de</p><p>nossas risadinhas sufocadas.</p><p>Bem, ela foi e é uma excelente mãe. Creio que também tem sido uma</p><p>grande esposa para meu pai — pelo menos, nunca o ouvi queixar-se e ele</p><p>tampouco já passou toda a noite fora de casa, bebendo —, de maneira que</p><p>tudo quanto posso alegar em nossa defesa é que nunca rimos diante dela,</p><p>nenhum de nós dois. É uma desculpa esfarrapada, bem sei, porém melhor</p><p>do que nada. Nós não a magoaríamos, por nada do mundo.</p><p>Apertei a mão contra a boca, tentando estancar o riso. Papai pareceu</p><p>subitamente engasgado com seu pão e o açúcar mascavo. Ignoro o que ele</p><p>pensava, mas o que eu tinha em mente era um artigo mais ou menos</p><p>recente, intitulado "Jesus Tinha um Cão?".</p><p>Somando-se ao que já acontecera naquele dia, isso era quase demais.</p><p>Fui até os armários em cima da pia e peguei um copo para o leite.</p><p>Quando olhei para trás, papai já se controlara e isso me ajudou a controlar-</p><p>me também.</p><p>— Você parecia meio aborrecido quando entrou — disse ele. — Está</p><p>tudo bem com Arnie, Dennis?</p><p>— Tranqüilo — respondi, despejando a sopa em uma frigideira, que</p><p>coloquei sobre o fogo. — Ele acabou de comprar um carro, uma boa droga,</p><p>mas está legal.</p><p>Claro que Arnie não estava legal, mas há certas coisas que não nos</p><p>dispomos a contar a nossos pais, pouco importando o quanto eles tenham</p><p>tido êxito na grande tarefa americana da paternidade.</p><p>— Certas pessoas só enxergam as coisas quando as vêem com os</p><p>próprios olhos — disse ele.</p><p>— Bem, espero que ele enxergue logo — falei. — Deixou o carro na</p><p>Darnell's, a vinte por semana, porque seus pais não deixaram que o</p><p>estacionasse em casa.</p><p>— Vinte por semana? Apenas por um boxe? Ou um boxe e</p><p>ferramentas?</p><p>— Só o boxe.</p><p>— Isto é um assalto!</p><p>— Exato — respondi, percebendo que meu pai não entendera o</p><p>comentário como uma oferta para que Arnie estacionasse o carro em nossa</p><p>casa.</p><p>— Quer jogar uma rodada de cribbage? 1</p><p>— Acho que sim — respondi.</p><p>— Anime-se, Dennis! Não pode cometer erros por outras pessoas.</p><p>— Sim, acho que tem razão.</p><p>Jogamos três ou quatro rodadas de cribbage, todas ganhas por ele —</p><p>meu pai geralmente ganha, a menos que esteja muito cansado ou tenha</p><p>bebido uns dois drinques. De qualquer modo, não me incomodo. As vezes</p><p>que o derroto ficam valendo mais. Jogamos cribbage e mamãe apareceu</p><p>pouco depois, alegre, com os olhos brilhantes, parecendo jovem demais</p><p>para ser minha mãe, com o livro de contos e rascunhos apertado</p><p>contra o</p><p>busto. Beijou meu pai — não o beijo leve costumeiro, mas um beijo de</p><p>verdade que, de repente, me fez perceber que eu devia estar em outro</p><p>lugar.</p><p>Ela fez as mesmas perguntas sobre Arnie e seu carro, algo que</p><p>rapidamente começava a tornar-se o ponto alto das conversas naquela</p><p>casa, desde que Sid, irmão de mamãe, ficara arruinado e pedira um</p><p>empréstimo a papai. Repeti a mesma lengalenga. Depois subi para meu</p><p>quarto. Eu me movia vagarosamente, com a impressão de que papai e</p><p>mamãe tinham assuntos pessoais para cuidar... embora essa fosse uma</p><p>questão em que nunca me concentrara muito, como certamente vocês</p><p>compreenderão.</p><p>Elaine estava em seu quarto, ouvindo sua nova coleção de sucessos.</p><p>Pedi que baixasse um pouco o volume, porque queria dormir. Ela me</p><p>espichou a língua. Eu não ia admitir aquilo, em absoluto. Entrei e fiz-lhe</p><p>cócegas, até ela dizer que ia vomitar. Falei, vá em frente, vomite, a cama é</p><p>sua — e fiz mais cócegas ainda. Ela então assumiu sua expressão de "por</p><p>favor, Dennis, não ria de mim, porque isto é terrivelmente importante", e</p><p>ficando muito solene perguntou se era mesmo verdade que se podia atear</p><p>fogo a peidos. Carolyn Shambliss, uma de suas amigas, dissera ser</p><p>possível, mas Carolyn mentia sobre quase tudo.</p><p>Respondi-lhe que perguntasse a Milton Dodd, seu namoradinho com</p><p>cara de pênis. Foi quando Elaine ficou furiosa e tentou agredir-me,</p><p>perguntando por que você sempre tem que ser tão nojento. Dennis? Então</p><p>eu disse sim, era verdade que se podia atear fogo a peidos, mas aconselhei-</p><p>a a não tentar. Fiz-lhe um ligeiro afago (o que se tornara bastante raro em</p><p>mim — aquilo sempre me deixava sem jeito, depois que ela ficara com</p><p>seios, de modo que preferia as cócegas) e depois fui para meu quarto.</p><p>Enquanto me despia, pensei: afinal, o dia não terminou tão ruim. Por</p><p>aqui há gente que me considera um ser humano, e também a Arnie. Vou</p><p>chamá-lo para vir amanhã ou no domingo. Ficaremos por aí, talvez</p><p>vejamos os Phillies jogando pela TV, podemos ainda nos divertir com um</p><p>jogo de damas idiota ou outra coisa qualquer, até mesmo o infalível jogo</p><p>de siga-a-pista, e nos livramos dessa sensação esquisita. Voltaremos a nos</p><p>sentir decentes outra vez.</p><p>Fui para a cama com tudo decidido na cabeça e devia ter pegado no</p><p>sono em seguida, mas não foi assim. Eu não estava legal e sabia disso. As</p><p>coisas começaram a acontecer e, às vezes, não sabemos que droga elas são.</p><p>Motores. Eis aí algo mais, sobre a gente ser um adolescente. Há todas</p><p>aquelas máquinas e, de algum modo, terminamos com as chaves de</p><p>ignição para uma delas, damos partida, mas ignoramos que merda poderão</p><p>ser ou o que se supõe que façam. Existem apenas pistas, mais nada. O</p><p>negócio da droga é assim, da mesma forma que o negócio da bebida e o</p><p>negócio do sexo, por vezes outros negócios também — um emprego de</p><p>verão que gera um novo interesse, uma viagem, um curso no colégio.</p><p>Máquinas. Eles nos dão as chaves, algumas pistas e dizem: dê partida, veja</p><p>o que acontece, e, às vezes, isso pode levar-nos para uma vida boa e</p><p>satisfatória, mas em outras nos coloca direitinho na auto-estrada para o</p><p>inferno, deixando-nos triturados e sangrando pela pista afora.</p><p>Máquinas.</p><p>Enormes. Como os motores 382, que eles costumavam colocar</p><p>naqueles carros antigos. Como Christine.</p><p>Fiquei acordado no escuro, virando-me de um lado para outro, até o</p><p>lençol desprender-se, ficar amarfanhado e embolado, enquanto eu pensava</p><p>em LeBay dizendo: O nome da máquina é Christine. De alguma forma,</p><p>Arnie captara o sentido da coisa. Quando éramos crianças, havíamos tido</p><p>patinetes e depois bicicletas. Dei um nome para a minha, porém Arnie</p><p>nunca batizou a sua — dizia que nomes eram para gatos, cachorros e</p><p>peixes. Só que isso fora antes, não agora. Agora ele chamava aquele</p><p>Plymouth de Christine e, pior ainda, tratava-a sempre no feminino.</p><p>Eu não gostava daquilo, embora sem saber por quê.</p><p>Até meu pai falara no caso como se, em vez de comprar um</p><p>estropiado calhambeque, Arnie tivesse casado. Não era bem assim. De</p><p>modo algum. Seria?</p><p>Pare o carro, Dennis. Volte... Quero olhar para ela outra vez.</p><p>Tão simples assim.</p><p>Sem nenhuma ponderação, e isso era incomum em Arnie, que em</p><p>geral costumava ponderar tudo cuidadosamente — sua vida o tinha</p><p>tornado dolorosamente cônscio do que acontecia a caras como ele, quando</p><p>ficavam um pouco tocados e faziam algo (poxa!) no impulso do momento.</p><p>Desta vez, no entanto, ele agira como o homem que conhece uma corista,</p><p>envolve-se em um namoro tempestuoso, para terminar de ressaca e esposa</p><p>nova, na manhã de segunda-feira.</p><p>Aquilo tinha sido... bem... como amor à primeira vista.</p><p>Não importa, pensei. Começaremos tudo outra vez. Começaremos</p><p>amanhã. Então, obteremos alguma perspectiva sobre isto.</p><p>Por fim, peguei no sono. E sonhei.</p><p>A uivante rotação de um motor de arranque na escuridão.</p><p>Silêncio.</p><p>O motor de arranque uivando novamente.</p><p>O motor em funcionamento, morrendo, depois pegando.</p><p>A máquina correndo na escuridão.</p><p>Então, os faróis acesos, faróis enormes, faróis duplos e antigos,</p><p>varando-me como uma lanterna de mão contra o vidro.</p><p>Eu estava parado aporta da garagem de LeBay e Christine lá dentro</p><p>— uma nova Christine, sem nenhum amassado ou salpico de ferrugem. O</p><p>pára-brisa incólume, sombreado para um azul polarizado no alto. Do</p><p>rádio brotavam os sons rítmicos de Dale Hawkins em "Susie-Q " — uma</p><p>voz de uma época morta, impregnada de aterrorizante vitalidade.</p><p>O motor murmurando palavras de potência, através de silenciosos</p><p>duplos, em envoltórios de vidro. Não sei como, eu sabia haver uma caixa</p><p>de mudança Hurst no interior e caixas de ligação Feully: o óleo Quaker</p><p>State acabara de ser trocado— era agora de clara cor ambarina, o sangue</p><p>vital automotivo.</p><p>Os limpadores de pára-brisa se ergueram de repente, uma coisa</p><p>estranha, porque não há ninguém atrás do volante, o carro está vazio.</p><p>— Vamos garotão. Vamos dar uma volta. Vamos rodar.</p><p>Sacudo a cabeça. Não quero entrar lá. Tenho medo de entrar lá. Não</p><p>quero dar uma volta. De repente, o motor começa a acelerar e morrer,</p><p>acelerar e morrer; é um som faminto, aterrador, como um cão feroz em</p><p>uma correia fraca... e eu quero andar... porém meus pés parecem pregados</p><p>ao pavimento gretado da calçada.</p><p>— É a última chance, garotão.</p><p>E antes que eu possa responder — ou mesmo pensar em uma resposta</p><p>— há o guincho terrível da borracha desligando-se do concreto e</p><p>Christine investe contra mim, seu radiador escancarado como uma boca</p><p>aberta, cheio de dentes cromados, os faróis ofuscantes...</p><p>Grito e acordo na escuridão morta das duas da madrugada, assustado</p><p>com o som de minha voz, o ruído apressado de pés descalços correndo</p><p>pelo corredor assustando-me ainda mais. Minhas mãos aferravam</p><p>punhados do lençol. Puxei-o, estava todo embolado no meio da cama. Um</p><p>suor escorregadio envolvia meu corpo.</p><p>No fundo do corredor, Ellie gritou: "O que foi isso?", em seu próprio</p><p>terror.</p><p>A luz de meu quarto iluminou tudo e lá estava mamãe, em uma curta</p><p>camisola que revelava mais do que ela permitiria, exceto na mais extrema</p><p>emergência. Logo atrás dela, papai amarrava o cinto do roupão, fechado</p><p>sobre absolutamente nada.</p><p>— O que foi, meu bem? — perguntou mamãe.</p><p>Tinha os olhos arregalados e assustados. Eu não recordava a última</p><p>vez em que me chamara "meu bem" daquele jeito — aos quatorze anos?</p><p>Doze? Talvez dez? Não sei dizer.</p><p>— Dennis? — chamou papai.</p><p>Então, surgiu Elaine mais atrás, depois entre eles, tremendo.</p><p>— Voltem para a cama — falei. — Foi apenas um sonho. Nada mais.</p><p>— Nossa! — disse Elaine, chocada pelo respeito à hora e à ocasião.</p><p>— Deve ter sido um verdadeiro filme de horror. Não foi, Dennis?</p><p>— Sonhei que você tinha casado com Milton Dodd e veio morar</p><p>comigo — respondi.</p><p>— Não aborreça sua irmã — disse mamãe. — O que foi, Dennis?</p><p>— Não me lembro.</p><p>De repente, percebi que o lençol era uma confusão, que havia um tufo</p><p>de pêlos púbicos aparecendo. Ajeitei tudo depressa, entre culpados</p><p>pensamentos de masturbação, polução noturna e sabe-se mais lá o que,</p><p>martelando minha cabeça. Um deslocamento total. Nos primeiros</p><p>dois ou</p><p>três vertiginosos momentos, eu nem mesmo tinha certeza se era grande ou</p><p>pequeno — havia apenas aquela imagem terrível, sombria e onipotente do</p><p>carro investindo para diante, um pouquinho a cada vez que o motor</p><p>funcionava, recuando, avançando de novo, o capô vibrando acima do</p><p>motor, o radiador semelhante a dentes de aço...</p><p>É a última chance garotão.</p><p>Em seguida, a mão fria e seca de mamãe estava em minha testa, em</p><p>busca de febre.</p><p>— Está tudo bem, mamãe — falei. — Não foi nada. Apenas um</p><p>pesadelo.</p><p>— E você não se lembra...</p><p>— Não. Esqueci tudo agora.</p><p>— Fiquei assustada — disse ela, depois dando uma risadinha</p><p>trêmula. — Você só saberá o quanto a gente se assusta, quando um de seus</p><p>filhos gritar no escuro.</p><p>— Hum, nem me fale nisso — disse Elaine.</p><p>— Vá para a cama, garotinha — disse papai, dando um tapinha leve</p><p>em sua nádega.</p><p>Ela obedeceu, não parecendo muito satisfeita. Talvez, superado o</p><p>medo inicial, esperasse que eu tivesse um acesso de histeria. Isso lhe daria</p><p>um bom motivo de comentários, enfiada em seu sutiã de treinamento, no</p><p>programa matinal de discussões sobre o fato.</p><p>— Você está bem mesmo? — perguntou mamãe. — Está, benzinho?</p><p>Aquela palavra novamente, trazendo antigas lembranças de joelhos</p><p>esfolados, ao cair de meu carrinho vermelho; seu rosto inclinado para</p><p>minha cama era o mesmo que eu vira nos febris acessos de todas aquelas</p><p>doenças infantis — caxumba, catapora, um ataque de escarlatina. Dando-</p><p>me uma vontade absurda de chorar. Eu tinha nove anos e trinta e cinco</p><p>quilos em seu colo.</p><p>— Claro que estou — respondi.</p><p>— Muito bem — disse ela. — Deixe a luz acesa. Ajuda um pouco.</p><p>Com um último e hesitante olhar para meu pai, ela se foi. Eu tinha</p><p>algo para me deixar confuso — a idéia de que minha mãe jamais tivera um</p><p>pesadelo. Deve ser uma daquelas coisas que nunca nos ocorrem. E</p><p>quaisquer que fossem seus pesadelos, nenhum deles se transmitiria para os</p><p>Rascunhos de Amor e Beleza.</p><p>Papai se sentou na beira da cama.</p><p>— Não se lembra mesmo do que foi? Meneei a cabeça.</p><p>— Deve ter sido horrível, para fazê-lo gritar daquele jeito, Dennis.</p><p>Seus olhos se fixavam nos meus, perguntando gravemente se haveria</p><p>alguma coisa que ele devesse saber. Quase lhe contei — o carro, era o</p><p>maldito carro de Arnie, Christine, a Rainha da Ferrugem, com vinte anos</p><p>de idade, aquela velharia fodida. Quase contei. Entretanto, sei lá como,</p><p>aquilo ficou engasgado em minha garganta, quase como se, falando, eu</p><p>traísse meu amigo. O bom e velho Arnie, a quem um Deus amante de</p><p>gracejos decidira espancar com umas boas varadas.</p><p>— Tudo bem — disse ele, e beijou meu rosto.</p><p>Pude sentir sua barba, diminutas cerdas espetando e que só brotam à</p><p>noite. Senti também seu cheiro de suor e seu amor. Fiz-lhe um afago</p><p>brusco e ele me afagou de volta.</p><p>Quando me vi sozinho, fiquei com o abajur da cabeceira aceso,</p><p>temendo voltar a dormir. Deitado de costas, peguei um livro, sabendo que</p><p>meus velhos estavam acordados em seu quarto, perguntando-se se eu</p><p>estaria envolvido em alguma espécie de confusão ou se envolvera alguém</p><p>mais — talvez a chefe de torcida com corpo espetacular — em qualquer</p><p>tipo de problema.</p><p>Decidi que dormir era uma impossibilidade. Ficaria lendo até o dia</p><p>clarear e tiraria um cochilo na tarde do dia seguinte, de preferência na</p><p>parte mais monótona do futebol. E, assim pensando, adormeci e acordei na</p><p>manhã seguinte, com o livro fechado e caído no chão, ao lado da cama.</p><p>Primeiras Mudanças</p><p>Eu lhe direi o que faria se tivesse dinheiro,</p><p>Eu iria à cidade e compraria um ou dois Mercurys,</p><p>Compraria um Mercury para mim</p><p>E cruzaria esta estrada para cima e para baixo.</p><p>— The Steve Miller Band</p><p>Pensando que Arnie fosse aparecer naquele sábado, fiquei</p><p>perambulando pela casa — aparei a grama, limpei a garagem, até mesmo</p><p>lavei todos os três carros. Mamãe observou com algum espanto toda</p><p>aquela diligência e, à hora do almoço de cachorro-quente com salada de</p><p>verduras, comentou que talvez eu devesse ter pesadelos com mais</p><p>regularidade.</p><p>Eu não queria telefonar para a casa de Arnie, depois de todo aquele</p><p>desagradável ambiente que havia presenciado, mas quando chegaram as</p><p>preliminares do jogo e ele não apareceu, ganhei coragem e liguei. Regina</p><p>atendeu e, embora estivesse fazendo uma boa imitação do nada-mudou,</p><p>imaginei detectar uma recente frieza em sua voz. Aquilo me entristeceu.</p><p>Seu único filho fora seduzido por uma velha e pelancuda prostituta</p><p>chamada Christine e seu cúmplice devia ter sido o velho chapa Dennis.</p><p>Talvez ele tivesse, inclusive, alcovitado o negócio. Arnie não estava em</p><p>casa, disse Regina. Estava na garagem de Darnell. Fora para lá desde nove</p><p>da manhã.</p><p>— Oh! — murmurei, sem jeito. — Oh, poxa, eu não sabia disso. —</p><p>Minha voz soava mentirosa e, pior ainda, eu a sentia mentir.</p><p>— Não mesmo? — replicou Regina, em sua nova voz fria. — Adeus,</p><p>Dennis.</p><p>O fone emudeceu em minha mão. Fiquei olhando para ele durante um</p><p>instante, depois o coloquei no gancho.</p><p>Papai se aboletara diante da TV, com sua frouxa bermuda púrpura,</p><p>calçando sapatos de lona e com seis latas de cerveja na geladeira portátil a</p><p>seu lado. Os Phillies estavam tendo um dia ótimo, encurralando Atlanta</p><p>inteiramente. Mamãe saíra para visitar uma colega (acho que uma lia seus</p><p>rascunhos e poemas para a outra, exaltando-se juntas). Elaine fora para a</p><p>casa de sua amiga Delia. Estava tudo quieto; lá fora, o sol brincava de</p><p>pique com algumas nuvens brancas. Papai me passou uma cerveja, o que</p><p>só faz quando se sente extraordinariamente bem-humorado.</p><p>Não obstante, o sábado ainda parecia desinteressante. Fiquei</p><p>pensando em Arnie, que não estava vendo o jogo ou aproveitando os raios</p><p>do sol, nem ao menos aparando a grama em sua casa e ficando com os pés</p><p>esverdeados. Arnie, nas sombras oleosas da Garagem Faça-Você-Mesmo</p><p>de Will Darnell, às voltas com aquela silenciosa banheira enferrujada,</p><p>enquanto homens gritavam e ferramentas caíam no cimento com</p><p>penetrante som metálico, a broca de ar comprimido afrouxando velhos</p><p>parafusos, a voz resfolegante e a tosse asmática de Will Darnell...</p><p>Que merda, eu estaria enciumado? O que significava aquilo?</p><p>No sétimo turno do jogo, levantei-me e caminhei para a saída.</p><p>— Aonde vai? — perguntou meu pai.</p><p>Isso mesmo, para onde eu ia? Para lá? Ficar espiando Arnie, grudado</p><p>a ele, ouvindo as implicâncias de Will Darnell? Procurando mais uma dose</p><p>de sofrimento? Droga! Arnie já era um cara crescidinho.</p><p>— A lugar nenhum — respondi.</p><p>Achei uma embalagem de biscoito na caixa do pão, cuidadosamente</p><p>empurrada para o fundo. Apanhei-a com certo prazer lúgubre, sabendo o</p><p>quanto Elaine ficaria enfurecida, ao vir procurá-la durante um dos</p><p>comerciais de Animada Noite de Sábado e nada mais encontrar ali.</p><p>Voltei para a sala de estar. Sentei-me, filei outra cerveja de papai e</p><p>comi o biscoito de Elaine, inclusive rasgando a embalagem de papelão.</p><p>Ficamos vendo os Phillies acabarem com Atlanta. ("Deram uma surra</p><p>neles, Denny", eu podia ouvir meu avô, falecido cinco anos antes, dizendo</p><p>com sua voz esganiçada de velho, "uma surra pra valer!") e não pensei</p><p>mais em Arnie Cunningham.</p><p>Não muito.</p><p>Na tarde seguinte, ele apareceu em sua velha e desconjuntada</p><p>bicicleta de três velocidades, quando eu e Elaine jogávamos croqué no</p><p>gramado dos fundos. Ela insistia em acusar-me de estar roubando o jogo.</p><p>Vestia um short, cortado de calças velhas. Sempre o usava quando "estava</p><p>tendo suas regras mensais". Minha irmã sentia grande orgulho daquelas</p><p>regras, que vinha tendo regularmente nos últimos quatorze meses.</p><p>— Olá — disse Arnie, surgindo por uma esquina da casa. — Vocês</p><p>devem ser o Monstro da Lagoa Negra e a Noiva do Frankenstein, ou</p><p>Dennis e Ellie.</p><p>— O que você acha, cara? — falei. — Pegue um taco.</p><p>— Não estou mais jogando — disse Elaine, deixando cair o seu taco</p><p>de jogar croqué. — Ele rouba ainda mais do que você. Homens!</p><p>Depois que ela se foi, Arnie disse, em voz trêmula e afetada:</p><p>— É a primeira vez que ela me chama de homem, Dennis.</p><p>Caiu de joelhos, com uma expressão de exaltada adoração no rosto.</p><p>Comecei a rir, Arnie sabia ser divertido,</p><p>de plástico sobre o gramado do Libertyville Motel, do</p><p>outro lado da linha do trem, em Monroeville. Arnie aprendeu xadrez</p><p>primeiro.</p><p>Aprendeu pôquer primeiro. Ensinou-me a aumentar meu escore em</p><p>Scrabble. Nos dias chuvosos, bem até a época em que me apaixonei (ora,</p><p>foi mais ou menos isso — ela era chefe de torcida, com um corpo</p><p>espetacular; achei que me apaixonara pelo corpo, embora, quando Amie</p><p>avisou que a mente da garota tinha toda a profundidade e ressonância de</p><p>um Chaun Cassidy 45, eu não pudesse responder que ele estava mentindo,</p><p>porque não estava mesmo), era nele que eu pensava primeiro, porque</p><p>Arnie sabia como engrandecer os dias de chuva, da mesma forma como</p><p>sabia aumentar os escores no Scrabble. Talvez seja esta uma das maneiras</p><p>de identificarmos as pessoas realmente solitárias... elas sempre podem</p><p>imaginar algo legal para se fazer em um dia de chuva. A gente sempre</p><p>pode contar com ela. Estão sempre em casa. Sempre na pior.</p><p>De minha parte, ensinei Arnie a nadar. Chateei-o até convencê-lo a</p><p>comer verduras, para que pudesse melhorar um pouco a sua magreza.</p><p>Consegui trabalho para ele em uma estrada, um ano antes de nosso último</p><p>ano no Ginásio de Libertyville — e para isso nos empenhamos a fundo</p><p>com os pais dele, que se viam como grandes amigos dos trabalhadores nas</p><p>fazendas da Califórnia e dos metalúrgicos daquela cidadezinha cretina,</p><p>mas que ficavam horrorizados à idéia de seu talentoso filho (com um</p><p>máximo de cinco por cento em seu teste Stanford-Binet, lembrem-se)</p><p>ficando com os pulsos sujos de terra e o pescoço vermelho.</p><p>Então, perto do fim daquelas férias de verão, Arnie viu Christine pela</p><p>primeira vez e se apaixonou por ela. Eu estava com ele nesse dia — íamos</p><p>para casa, voltando do trabalho — e testemunharia a respeito diante do</p><p>Trono de Deus Todo-Poderoso, se para isso me convocassem.</p><p>Irmão, ele gamou e gamou de fato. Até que podia ter sido gozado, se</p><p>não fosse tão triste, se aquilo não ficasse assustador tão depressa como</p><p>ficou. Podia ter sido divertido, se não houvesse sido tão ruim.</p><p>Ruim — a que ponto?</p><p>Foi ruim desde o começo. E se tornou rapidamente pior.</p><p>Dennis - Canções adolescentes sobre carros</p><p>PRIMEIROS PROJETOS</p><p>Ei, olhe lá!</p><p>Do outro lado da rua!</p><p>Um carro feito na medida para mim,</p><p>Seria um luxo ter aquele carro...</p><p>Aquele carro é um barato, cara,</p><p>É algo fora de série.</p><p>— Eddie Cochran</p><p>— Deus do céu! — gritou de repente meu amigo Arnie Cunningham.</p><p>— O que foi? — perguntei.</p><p>Seus olhos saltavam por trás dos óculos de aros de aço, ele espalmara</p><p>a mão sobre o rosto, de maneira que a palma cobria a boca parcialmente e</p><p>o pescoço parecia girar sobre rolamentos, no modo como Arnie se virava</p><p>para trás, por sobre o ombro.</p><p>— Pare o carro, Dennis! Volte!</p><p>— O que você está...</p><p>— Volte, quero olhar para ela outra vez! Entendi na mesma hora.</p><p>— Oh, cara, esqueça — falei. — Se está se referindo àquela... coisa</p><p>que acabamos de deixar para trás...</p><p>— Volte! — ele quase berrou.</p><p>Voltei, imaginando que talvez fosse uma daquelas sutis piadinhas de</p><p>Arnie. Só que não era. Ele gamara mesmo. Arnie se apaixonara.</p><p>Ela era uma piada imbecil e jamais saberei o que Arnie viu nela,</p><p>nesse dia. Na máquina, quero dizer, no carro. O lado direito do pára-brisa</p><p>era uma confusa teia de aranha em rachaduras. A traseira direita do teto</p><p>estava afundada e um ninho horrendo de ferrugem se espraiara pelo vale</p><p>de pintura descascada. O pára-choque traseiro descambava para um lado e</p><p>o tampo do porta-mala estava entreaberto. O estofamento sangrava para</p><p>fora, através de compridos rasgões na cobertura dos assentos, da frente e</p><p>traseiro. Era como se alguém tivesse brincado ali com uma faca. Um pneu</p><p>estava arriado. Os outros, tão carecas, que dava para se ver o</p><p>encordoamento interno. O pior de tudo era a mancha escura de óleo,</p><p>debaixo do motor.</p><p>Arnie se apaixonara por um Plymouth Fury 1958, um daqueles</p><p>compridões, com enormes aletas no radiador. Havia um velho anúncio de</p><p>À VENDA, já desbotado pelo sol, escorado contra o lado direito do pára-</p><p>brisa — o lado que não estava rachado.</p><p>— Veja que linhas ele tem, Dennis! — sussurrou Arnie.</p><p>Corria em torno do carro, como um possesso. Seu cabelo suado subia</p><p>e descia na cabeça. Experimentou a porta traseira, no lado do passageiro, e</p><p>ela se abriu com um rangido.</p><p>— Você está me gozando, Arnie, não está? — perguntei. — É</p><p>insolação, certo? Me diz que é insolação. Vou levar você para casa, ligar o</p><p>ar-condicionado e esquecemos tudo isto, está bem?</p><p>De qualquer modo, falei isso sem muita esperança. Ele sabia fazer</p><p>uma piada, mas então não havia nada que lembrasse uma piada em sua</p><p>cara. Pelo contrário, era uma espécie de loucura imbecil, que não me</p><p>agradou nem um pouco.</p><p>Ele nem mesmo se deu ao trabalho de responder. Um bafo quente e</p><p>espesso de ar, cheirando a velhice, óleo e adiantada decomposição brotou</p><p>da porta aberta do carro. Arnie também pareceu nem perceber. Entrou e</p><p>sentou-se no desbotado banco traseiro dilacerado. Um dia, vinte anos</p><p>antes, aquilo tinha sido vermelho. Agora, era um rosa lavado e desbotado.</p><p>Estiquei o braço e arranquei um pouco do recheio, olhei para ele e o</p><p>soprei ao vento.</p><p>— É como se o exército russo tivesse pisado sobre isso, ao avançar</p><p>para Berlim — comentei. Ele finalmente notou que eu ainda estava ali.</p><p>— Certo... certo, mas poderia ser consertado. Essa máquina... ela</p><p>ficaria um barato. Uma unidade móvel, Dennis. Uma beleza. Uma</p><p>verdadeira...</p><p>— Ei, ei! O que estão fazendo aí, garotos?</p><p>Era um velhote que parecia estar curtindo — mais ou menos — seu</p><p>septuagésimo verão. Talvez menos. Aquele sujeito me deu a impressão de</p><p>ser dos que não curtem muito as coisas. O pouco que restava do cabelo era</p><p>comprido e ralo. Tinha um bom caso de psoríase em andamento, na parte</p><p>careca do crânio.</p><p>Usava calças verdes de velho e tênis de basquete de cano baixo.</p><p>Estava sem camisa; em vez disso, tinha algo apertado em torno da cintura,</p><p>parecendo uma cinta de mulher. Quando chegou mais perto, vi que era um</p><p>colete ortopédico para as costas. De saída, só em olhar para aquilo, eu</p><p>podia dizer que o homem o tinha trocado, pela última vez, mais ou menos</p><p>na época em que Lyndon Johnson morrera.</p><p>— O que estão querendo, garotos? — gritou, em voz aguda e</p><p>estridente.</p><p>— Este carro é seu, senhor? — perguntou Arnie.</p><p>Uma pergunta quase desnecessária. O Plymouth estava estacionado</p><p>no terreno da casa pós-guerra, de onde o velho brotara. O gramado era</p><p>horrível, mas ficava um barato com aquele Plymouth nos fundos.</p><p>— E daí, se for? — perguntou o velho.</p><p>— Eu... — Arnie engoliu em seco. — Eu quero comprá-lo.</p><p>Os olhos do velhote cintilaram. A expressão irritada do rosto foi</p><p>substituída por um brilho furtivo no olho e um certo sarcasmo faminto em</p><p>torno dos lábios. Então surgiu um falso, resplendente e largo sorriso. Foi</p><p>naquele momento, creio — bem, justo naquele momento — que senti algo</p><p>frio e depressivo dentro de mim. Houve um instante — só então — que</p><p>senti vontade de puxar Arnie e arrancá-lo dali. Alguma coisa transpareceu</p><p>dentro dos olhos do velho. Não foi só o brilho; era algo por trás do brilho.</p><p>— Bem, devia ter dito logo — falou o velhote. Estendeu a mão, que</p><p>Arnie apertou. — LeBay. Roland D. LeBay. Reformado do Exército.</p><p>— Arnie Cunningham.</p><p>O velho pareceu puxar a mão e fez uma espécie de aceno para mim.</p><p>Eu estava fora da jogada; ele já tinha seu otário. Arnie podia perfeitamente</p><p>entregar sua carteira a LeBay.</p><p>— Quanto? — perguntou Arnie. Depois insistiu: — Seja o que for</p><p>que quer pela máquina, ainda é pouco.</p><p>Grunhi intimamente, em vez de suspirar. O talão de cheques de Arnie</p><p>estava dentro de sua carteira.</p><p>Por um momento, o sorriso de LeBay falhou um pouco e ele apertou</p><p>os olhos desconfiadamente. Devia estar avaliando a possibilidade que</p><p>tinha pela frente. Estudou o rosto franco e ansioso de Arnie, à procura de</p><p>algum sinal de malícia, para então disparar a pergunta homicidamente</p><p>perfeita:</p><p>— Já teve algum carro antes, filho?</p><p>— Ele tem um Mustang Mach II — respondi rapidamente. — Seus</p><p>pais compraram para ele. Tem uma mudança Hurst, uma superbateria</p><p>quando queria. Aquele era um dos</p><p>motivos de apreciá-lo tanto. Uma espécie de segredo, compreenda. Acho</p><p>que ninguém mais percebia aquilo, além de mim. Certa vez, ouvi falar de</p><p>um milionário que roubara um Rembrandt e o guardara em seu porão,</p><p>onde ninguém mais podia vê-lo, além dele. Eu podia entender esse sujeito.</p><p>Não digo que Arnie fosse um Rembrandt ou algum campeão de</p><p>inteligência, mas compreendia a atração de saber sobre algo bom... algo</p><p>que era bom, mas permanecendo em segredo.</p><p>Divertimo-nos com o croqué por alguns momentos, não jogando para</p><p>valer, mas tirando o máximo proveito de nossas boladas. Finalmente, uma</p><p>bola atravessou a cerca viva até o quintal dos Blackfords e, após eu ter</p><p>rastejado até lá para recuperá-la, desistimos de jogar. Ficamos sentados</p><p>nas cadeiras do quintal. Dentro em pouco, Jay Hawkins Miador, nosso gato</p><p>substituto do Capitão Beefheart, deslizou furtivamente da porta, sem</p><p>dúvida esperando encontrar algum bom esquilinho, que assassinaria lenta</p><p>e malevolamente. Seus olhos verde-âmbar cintilaram à luz da tarde, agora</p><p>nublada e quieta.</p><p>— Pensei que você viesse ver o jogo ontem — falei. — Foi uma boa</p><p>partida.</p><p>— Estive na Darnell's — disse ele. — De qualquer modo, ouvi o jogo</p><p>pelo rádio. — Sua voz elevou-se três oitavas e fez uma boa imitação de</p><p>meu avô: — "Deram uma surra neles! Uma surra pra valer, Denny!".</p><p>Ri e assenti. Naquele dia, havia algo nele parecendo diferente talvez</p><p>fosse apenas por causa da claridade, bastante forte, mas ainda assim</p><p>sombria e crepuscular. Em primeiro lugar, Arnie parecia cansado, estava</p><p>com olheiras — mas, ao mesmo tempo, a pele estava um pouco melhor do</p><p>que ultimamente. Andara bebendo um bocado de Cocas no trabalho,</p><p>mesmo sabendo que não devia, é claro, mas incapaz de resistir à tentação,</p><p>de vez em quando. Seus problemas de pele tendiam a surgir em ciclos,</p><p>como na maioria dos adolescentes, dependendo do estado de ânimo. No</p><p>caso de Arnie, contudo, os ciclos geralmente iam de ruim para pior, e</p><p>retornavam ao ruim.</p><p>Talvez fosse apenas a claridade.</p><p>— O que fez no carro? — perguntei.</p><p>— Não muita coisa. Troquei o óleo. Dei uma espiada no bloco do</p><p>motor. Enfim, não está rachado, Dennis. LeBay ou alguém mais deixou o</p><p>bujão de drenagem em algum lugar ao longo da linha, eis tudo. Um bocado</p><p>do óleo velho tinha vazado para fora. Tive sorte em não soltar um pistão,</p><p>dirigindo na tarde de sexta-feira.</p><p>— Como conseguiu hora com o elevador? Pensei que era preciso uma</p><p>reserva antecipada. Seus olhos desviaram-se dos meus.</p><p>— Não houve problema — disse, mas havia desapontamento em sua</p><p>voz. — Fiz uns dois favores para o Sr. Darnell.</p><p>Abri a boca para perguntar que tipo de favores, mas decidi que não</p><p>queria saber. Provavelmente, os "dois favores" se reduziriam apenas a uma</p><p>ida à Schirmer's Lanchonete, na primeira esquina, a fim de trazer café</p><p>puro para os habitués da garagem, ou então juntar várias partes de carros</p><p>usados, para venda posterior. O que não me interessava era envolver-me na</p><p>extremidade Christine da vida de Arnie — e isso incluía saber como ele</p><p>estava se saindo (ou não saindo) na garagem de Darnell.</p><p>Havia ainda algo mais — uma sensação de perda. Eu não conseguia</p><p>definir muito bem tal sensação, ou não queria defini-la. Hoje, posso</p><p>afirmar que se tratava da maneira como nos sentimos quando um amigo</p><p>nosso se apaixona por uma vagabunda experiente e metida a sebo. A gente</p><p>não gosta da vagabunda e, em noventa e nove por cento dos casos, ela</p><p>também não vai com a nossa cara, de maneira que nos limitamos a fechar</p><p>a porta para aquele compartimento da antiga amizade. Feita a coisa, tanto</p><p>podemos esquecer o assunto... como descobrir que o amigo nos esqueceu,</p><p>em geral com entusiástica aprovação da vagabunda.</p><p>— Vamos ao cinema — disse Arnie, inquieto.</p><p>— O que está passando?</p><p>— Bem, há um daqueles violentos filmes Kung-fu, no State Twin, o</p><p>que acha disso? Hiii-iah!— Ele fingiu dar um selvagem chute de caratê</p><p>em Jay Hawkins Miador, e o gato saltou para longe como uma flecha.</p><p>— Parece bom. Bruce Lee?</p><p>— Não. Outro cara.</p><p>— Como é o nome dele?</p><p>— Não sei. Punhos Perigosos. Mãos Voadoras Mortais. Talvez seja</p><p>Genitais Furiosos, sei lá. O que me diz? Quando voltarmos, podemos</p><p>contar as partes mais violentas para Ellie e fazê-la vomitar.</p><p>— Está bem — falei. — Isto, se ainda pudermos entrar, pagando uma</p><p>prata cada um.</p><p>— Claro. Podemos entrar até as três.</p><p>— Vamos embora.</p><p>Fomos. Afinal, era um filme de Chuck Norris, não ruim de todo.</p><p>Na segunda-feira, continuamos a construção do alongamento da</p><p>Interestadual. Esqueci meu sonho. Aos poucos, percebi que não</p><p>continuaria vendo Arnie tanto tempo como antes; de novo, era como nos</p><p>sentimos se vamos perdendo contato com um cara recém-casado. Por</p><p>outro lado, meu negócio com a chefe de torcida começou a esquentar.</p><p>Havia também outra coisa que esquentava como o diabo — por várias</p><p>noites, levei-a das corridas de submarinos no drive-in para casa, sentindo</p><p>os colhões latejarem de tal modo, que mal podia caminhar.</p><p>Nesse ínterim, Arnie passava na Darnell's a maioria do tempo livre,</p><p>depois que saía do trabalho.</p><p>BUDDY REPPERTON</p><p>E eu sei, pouco importa quanto custe,</p><p>Oooooh, aquele duplo exaustor</p><p>Faz o meu motor berrar,</p><p>E o meu carro então terá</p><p>Uma descarga Cadillac.</p><p>— Moon Martin</p><p>Nossa última semana de trabalho corrido, antes do início das aulas,</p><p>foi a que precedeu o Dia do Trabalho. Quando passei pela casa de Arnie</p><p>para apanhá-lo aquela manhã, ele apareceu com uma enorme mancha</p><p>negro-azulada em torno de um olho e um feio corte na parte superior da</p><p>face.</p><p>— O que houve com você?</p><p>— Não quero falar sobre isso — respondeu ele, carrancudo. — Já</p><p>tive que explicar tanto a meus pais, que quase fiquei maluco.</p><p>Atirou sua maleta do lanche no assento traseiro e mergulhou em um</p><p>sombrio silêncio, que durou todo o trajeto até o trabalho. Alguns</p><p>companheiros o interrogaram sobre o corte, mas Arnie apenas deu de</p><p>ombros.</p><p>Nada comentei ao voltarmos para casa; apenas liguei o rádio e fiquei</p><p>entregue a mim mesmo. E talvez ficasse sem jamais ouvir a história, se</p><p>não houvesse sido "atacado" por aquele seboso ítalo-irlandês chamado</p><p>Gino, pouco antes de deixarmos a Main Street para trás.</p><p>Naquela época, Gino estava sempre me atocaiando — ele podia</p><p>esgueirar-se através do vidro fechado de um carro e realizar a façanha. O</p><p>estabelecimento Gino's Fine Italian Pizza (Deliciosa Pizza Italiana do</p><p>Gino) fica na esquina da Main com Basin Drive, e sempre que eu via o</p><p>anúncio com a pizza elevando-se no ar, com todos aqueles ii pontilhados</p><p>por copos de bebida (aquilo piscava noite adentro, como é que se pode</p><p>fugir?), sentia a cilada funcionando novamente. Aquela noite, minha mãe</p><p>estaria em aula, isto significando que teríamos um jantar de sobras em</p><p>casa. A perspectiva não me deixava nem um pouco alegre. Eu e meu pai</p><p>não éramos muito chegados a cozinhar e, quanto a Ellie, seria capaz até de</p><p>queimar água pura.</p><p>— Vamos comer uma pizza — falei, manobrando para o pátio de</p><p>estacionamento do Gino's. — O que me diz? Uma bem grande e gordurosa,</p><p>cheirando como sovacos.</p><p>— Que violência, Dennis!</p><p>— Sovacos limpos— emendei. — Vamos.</p><p>— Negativo. Estou de caixa baixa — disse Arnie, em um murmúrio.</p><p>— Eu pago. Pode até ficar com aquelas horríveis e fodidas enchovas</p><p>em sua metade. E então, vamos?</p><p>— Dennis, acho que eu não...</p><p>— Com uma Pepsi — acrescentei.</p><p>— Pepsi me acaba com a pele, você sabe disso.</p><p>— Sim, eu sei. Um copo grande de Pepsi, Arnie.</p><p>Seus olhos cinzentos iluminaram-se pela primeira vez no dia.</p><p>— Um copo grande — repetiu. — Olha só! Você é mesmo pão-duro,</p><p>Dennis.</p><p>— Dois, se preferir — falei.</p><p>Era uma grande pedida, francamente — como oferecer barras de</p><p>chocolate à mulher gorda do circo.</p><p>— Dois — ele disse, apertando meu ombro. — Dois copões de Pepsi,</p><p>Dennis! — Arnie começou a estirar-se no assento, com as duas mãos em</p><p>torno da garganta e gritando: — Dois! Depressa! Dois! Depressa!</p><p>Eu ria tanto que quase embiquei com o carro para cima da parede</p><p>cinzenta de concreto. Quando saímos de meu Duster, pensei, por que ele</p><p>não beberia duas sodas?</p><p>Sem dúvida, andou afastado delas ultimamente. A</p><p>pequena melhora que eu percebera em seu rosto, naquele domingo nublado</p><p>de duas semanas atrás, agora era definitiva. Ele continuava exibindo uma</p><p>profusão de caroços e crateras, mas nem tantos estavam — perdoem-me,</p><p>mas preciso dizer — gotejando. Arnie parecia melhor, também em outros</p><p>sentidos. Um verão inteiro trabalhando na estrada o tinha bronzeado</p><p>profundamente e o deixara na melhor forma física que já estivera na vida.</p><p>Assim, pensei que ele merecia sua Pepsi. Ao vencedor os despojos.</p><p>O Gino's é dirigido por um cara italiano formidável, chamado Pat</p><p>Donahue. Em sua caixa registradora, ele tem um adesivo dizendo MÁFIA</p><p>IRLANDESA, serve cerveja verde no Dia de São Patrício (em 17 de março</p><p>a gente nem pode chegar perto do Gino's, e uma das pedidas na vitrola</p><p>automática é Rosemary Clooney cantando "Quando os Olhos Irlandeses</p><p>Sorriem") e impressiona com um chapéu-coco reto que, em geral, usa</p><p>empurrado bem para trás.</p><p>A vitrola automática é um antigo modelo Wurlitzer, com a parte</p><p>frontal em forma de bolha, um remanescente dos finais dos anos 40, e</p><p>todos os discos — não apenas Rosemary Clooney — têm etiquetas pré-</p><p>históricas. Talvez seja a última vitrola automática do país em que se</p><p>consegue três músicas por uma moeda de 25 centavos. Nas raras ocasiões</p><p>em que fumo um baseado, é sobre o Gino's que fantasio — vejo-me</p><p>entrando lá, pedindo três pizzas caprichadas, uma garrafa de Pepsi e seis</p><p>ou sete daqueles doces de chocolate feitos em casa, especialidade de Pat</p><p>Donahue. Entào, imagino-me apenas sentado ali e devorando tudo,</p><p>enquanto daquela vitrola sai uma firme torrente de Beach Boys e Rolling</p><p>Stones.</p><p>Entramos, fiz o pedido e ficamos sentados, vendo os três cozinheiros</p><p>de pizza jogando a massa no ar e tornando a pegá-la. Estavam trocando</p><p>amenidades em espirituoso estilo italiano, como: "Vi você a noite passada</p><p>na pista de dança do Shriners's, Howie, quem era aquela coisa desajeitada</p><p>que estava com seu irmão?". "Oh, ela? Era sua irmã."</p><p>Quero dizer, parecia algo como Velho Mundo, como se pode</p><p>agüentar?</p><p>As pessoas entravam e saíam, muitas delas estudantes de meu</p><p>colégio. Dentro em breve tornaria a vê-las pelos corredores e senti uma</p><p>repetição daquela forte nostalgia antecipada, aquela sensação de medo. Em</p><p>minha cabeça, ouvia o sinal de ir para casa, porém de algum modo aquele</p><p>prolongado uivo soava como um alarma. Lá vamos nós de novo, Dennis,</p><p>esta é a última vez, porque depois deste ano terá que aprender a ser</p><p>adulto. Eu podia ouvir as portas de armários batendo com força no</p><p>vestiário, ouvia o firme ka-chonk, ka-chonk, ka-chonk dos atacantes, cujas</p><p>bastonadas perturbavam os adversários mais fracos, e também ouvia</p><p>Marty Bellerman gritar rigorosamente: "Vamos em frente. Pedersen! Não</p><p>esqueça disso! Vamos em frente! É melhor dizer a esses cretinos dos</p><p>gêmeos Bobbsey que se separem!". O cheiro seco da poeira de giz na sala</p><p>de aula, na Ala de Matemática. O som das máquinas de escrever, nas</p><p>grandes salas de aulas de secretariado, no segundo andar. O Sr. Meecham,</p><p>o diretor, fazendo os comunicados do fim do dia, em sua voz monótona e</p><p>exigente. O almoço ao ar livre, nas arquibancadas do campo de esportes,</p><p>quando o tempo era bom. Uma nova safra de calouros, parecendo</p><p>desajeitados e perdidos. E, tudo encerrado, a gente caminha corredor</p><p>abaixo, vestindo aquele enorme roupão de banho púrpura — e pronto.</p><p>Terminou o ginásio. Liberam-nos para um mundo inimaginável.</p><p>— Você conhece Buddy Repperton, Dennis? — perguntou Arnie,</p><p>despertando-me de meu sonho. Nossa pizza já chegara.</p><p>— Buddy o quê?</p><p>— Repperton.</p><p>O nome era familiar. Trabalhei no meu lado da pizza e me forcei a</p><p>recordar, enquanto isso. Lembrei, após um momento. Eu havia tido uma</p><p>discussão com ele, quando era ainda um dos desajeitados e pequenos</p><p>calouros. Acontecera em um baile de confraternização. A banda tirava</p><p>uma folga e eu esperava na fila de bebidas, para conseguir uma soda.</p><p>Repperton empurrou-me, dizendo que calouros tinham que esperar, até que</p><p>todos os mais adiantados tivessem suas bebidas. Ele era então um</p><p>segundanista do ginásio, grande e corpulento, um significativo</p><p>segundanista. Tinha um queixo em forma de lanterna, cabelos negros,</p><p>espessos e gordurosos, e olhos pequeninos, muito juntos. Entretanto,</p><p>aqueles olhos não eram totalmente estúpidos, deixando entrever um</p><p>desagradável brilho de inteligência. Repperton era um daqueles tipos que</p><p>passam a maior parte do tempo no ginásio na área de fumar.</p><p>Eu ousara emitir a herética opinião de que, na fila de bebidas, nada</p><p>significava ser veterano. Repperton convidou-me a ir lá fora com ele. A</p><p>esta altura, a fila se desfizera, tornando a organizar-se em um daqueles</p><p>cautelosos porém ansiosos pequenos círculos, que geralmente prenunciam</p><p>uma briga.</p><p>Uma recepcionista apareceu então, pondo um final naquilo.</p><p>Repperton prometeu que me pegaria, mas nunca o fez. Aquele havia sido</p><p>meu único contato com ele, exceto quando via seu nome de vez em quando</p><p>na lista de detidos no final do dia, convocando-os para uma ida à secretaria</p><p>do colégio. Parecia-me que ele fora suspenso umas duas vezes, além disso</p><p>— e quando tal acontece, em geral é um bom sinal de que o sujeito não</p><p>fazia parte da Liga de Jovens Cristãos.</p><p>Contei a Arnie meu único contato com Repperton e ele assentiu</p><p>abatido. Tocou a equimose em torno do olho, que agora adquiria uma</p><p>horrível tonalidade esverdeada.</p><p>— Foi ele.</p><p>— Foi Repperton quem fez isso em seu rosto?</p><p>— Hum-hum.</p><p>Arnie contou que conhecia Repperton dos cursos de Mecânica de</p><p>Motores. Uma das ironias da perseguida e evidentemente infeliz vida</p><p>escolar de Arnie era o fato de seus interesses e aptidões o encaminharem</p><p>precisamente para um contato direto com o tipo de gente que sentia ser seu</p><p>obrigatório dever chutar para fora o recheio dos Arnie Cunningham deste</p><p>mundo.</p><p>Quando estava no segundo ano secundário, fazendo um curso</p><p>chamado Motores Fundamentais (que nada mais era senão o simples e</p><p>velho Mecânica de Motores 1, antes que a escola conseguisse do governo</p><p>federal um bom dinheiro para treinamento vocacional), um garoto</p><p>chamado Roger Gilman fizera Arnie pôr para fora toda a merda que tinha</p><p>no corpo. Sei que isso é francamente vulgar, porém não existe forma mais</p><p>delicada e elegante de expor o fato. Gilman o fez espirrar o recheio. Foi</p><p>uma surra tão contundente — que Arnie precisou faltar dois dias à escola,</p><p>enquanto Gilman tirava uma semana de férias — cortesia da direção.</p><p>Atualmente, Gilman estava preso, acusado de roubo de automóvel. Buddy</p><p>Repperton fizera parte do círculo de amigos de Roger Gilman e, de certa</p><p>forma, herdara a liderança de seu grupo.</p><p>Para Arnie, ir à aula na Classe de Motores, era como visitar uma zona</p><p>despoliciada. Então, se conseguia sobreviver, corria todo o trajeto até a</p><p>outra extremidade da escola, com seu tabuleiro de xadrez debaixo do</p><p>braço, para uma reunião ou jogo no clube de xadrez.</p><p>Recordo a vez em que fui a um torneio de xadrez da cidade, em</p><p>Squirrel Hill, certo dia do ano anterior, e então vi algo que, para mim,</p><p>simbolizava a esquizofrênica vida escolar de meu amigo. Lá estava ele,</p><p>inclinado gravemente sobre seu tabuleiro, em meio àquele profundo e</p><p>palpável silêncio que é, principalmente, o que se ouve em tais ocasiões.</p><p>Após uma longa e meditativa pausa, ele moveu a pedra, com a mão tão</p><p>profundamente impregnada de graxa e óleo que nem mesmo uma lixa</p><p>conseguiria limpar.</p><p>Claro está, que nem todos os colegas de curso eram contra ele; havia</p><p>muitos rapazes que não se metiam, porém muitos deles permaneciam em</p><p>seus próprios e firmes círculos de amigos ou permanentemente</p><p>indiferentes. Os que se reuniam em grupos fechados, em geral provinham</p><p>da zona mais pobre de Libertyville (e não me venham dizer que estudantes</p><p>secundários não se portam de acordo com a zona da cidade de onde se</p><p>originam; eles se portam), sendo tão sérios e calados, que se poderia</p><p>cometer o engano de classificá-los como imbecis. Em sua maioria,</p><p>pareciam remanescentes de 1968, com cabelos compridos amarrados em</p><p>rabos-de-cavalo, seus jeans e camisetas</p><p>tingidos, mas, em 1978, nenhum</p><p>desses caras queria derrubar o governo; eles queriam crescer e tornar-se</p><p>Mr. Goodwrench 2.</p><p>E as salas de aulas profissionalizantes ainda são o destino final de</p><p>alunos desajustados e durões, que não só freqüentavam a escola — ela lhes</p><p>servia como prisão. Então, agora que Arnie mencionava o nome de</p><p>Repperton, pude pensar em vários caras que circulavam em torno dele,</p><p>como um sistema planetário. Em sua maioria, andavam pelos vinte anos e</p><p>continuavam lutando para terminar os estudos. Don Vandenberg, Sandy</p><p>Galton, "Penetra" Welch. O verdadeiro nome de "Penetra" era Peter, mas</p><p>os outros o chamavam assim, porque era visto farejando os concertos de</p><p>rock em Pittsburgh, à espera de conseguir entrar.</p><p>Buddy Repperton se tornara dono de um Camaro azul, com dois anos</p><p>de fabricação, que havia capôtado umas duas vezes para fora da Rota 46,</p><p>perto do Parque Estadual das Squantic Hills — segundo Arnie, ele o</p><p>adquirira de um dos companheiros de pôquer de Darnell. A máquina</p><p>estava legal, porém a carroceria mostrava amplamente os tristes efeitos da</p><p>capotagem. Repperton o levara para a garagem de Darnell, uma semana</p><p>após Arnie ter levado Christine, embora Buddy costumasse rondar por lá</p><p>ainda antes disso.</p><p>Nos primeiros dois dias, Repperton parecera não ter dado por Arnie</p><p>em absoluto. E Arnie, naturalmente, ficava muito feliz em não ser</p><p>percebido. Entretanto, Repperton mantinha-se em boas relações com</p><p>Darnell, parecendo não haver qualquer problema para conseguir</p><p>ferramentas muito requisitadas que, em geral, só eram acessíveis em</p><p>termos de reserva.</p><p>Então, Repperton começara a envolver-se com Arnie. Quando voltava</p><p>da vendedora automática de Coca ou do banheiro, derrubava e espalhava</p><p>por todo o piso do boxe de Arnie uma caixa cheia de acessórios, chave</p><p>inglesa e juntas esféricas que ele estava usando. Ou então, se Arnie tinha</p><p>um café em sua prateleira, Repperton dava um jeito de atingi-lo com o</p><p>cotovelo e derramá-lo. Depois soltava um "Bem... me descuuuulpe...!",</p><p>como Steve Martin, com seu largo sorriso perverso no rosto. Darnell, em</p><p>seguida, berrava para Arnie recolher todos aqueles acessórios, antes que</p><p>algum deles sumisse por um ralo no chão ou coisa assim.</p><p>Em breve, Repperton se desviava de seu caminho para dar um</p><p>vigoroso tapa nas costas de Arnie, acompanhado por um estrondoso:</p><p>"Como está se saindo, Cara de Cona?".</p><p>Arnie suportou aqueles ataques com o estoicismo do sujeito que já</p><p>viu algo igual antes, que já passou por tudo aquilo. Provavelmente,</p><p>esperava que Buddy Repperton se cansasse de amolá-lo ou que encontrasse</p><p>alguma outra vítima para substituí-lo. Havia ainda uma terceira</p><p>possibilidade, quase boa demais para acontecer — sempre havia a</p><p>esperança de que Buddy fosse justamente afetado por alguma coisa e</p><p>desaparecesse do cenário, como seu velho companheiro Roger Gilman.</p><p>Então, a coisa chegara às vias de fato, na tarde do último sábado.</p><p>Arnie estava lubrificando o carro, principalmente porque ainda não</p><p>acumulara fundos suficientes para as centenas de outros reparos que o</p><p>Plymouth exigia. Repperton aproximou-se, assobiando alegremente, com</p><p>uma Coca e um saco de amendoins em uma das mãos, um macaco de mão</p><p>na outra. Ao passar pelo boxe vinte, moveu brusca e vigorosamente o</p><p>macaco à altura da cintura e quebrou um dos faróis dianteiros de Christine.</p><p>— Arrebentou-o em pedacinhos — contou-me Arnie, sobre nossa</p><p>pizza.</p><p>Então, mostrando no rosto uma exagerada expressão de tragédia,</p><p>Buddy Repperton dissera: "Oh, poxa, veja só o que fiz! Bem... me</p><p>descuuuulpe...".</p><p>Aquilo, entretanto, era o máximo que Arnie podia suportar. O ataque</p><p>a Christine desencadeou as ações que ele ainda não fora capaz de liberar</p><p>— impeliu-o à retaliação. Deu a volta ao Plymouth, com os punhos</p><p>fechados, e atacou às cegas. Em um livro ou filme, talvez ele houvesse</p><p>esmurrado Repperton certeiramente, derrubando-o ao chão para uma</p><p>contagem de nocaute. Uma contagem até dez.</p><p>Não obstante, isso raramente acontece na vida real. Arnie nem</p><p>mesmo conseguiu chegar perto do queixo de Repperton. Atingiu-lhe</p><p>apenas a mão, derrubando ao chão o saco de amendoins e despejando a</p><p>Coca-Cola inteiramente no rosto e camisa de Repperton.</p><p>— Muito bem, seu filho da puta! — bradou Repperton. Parecia quase</p><p>comicamente surpreso. — Vou virar seu traseiro pelo avesso!</p><p>Avançou para Arnie empunhando o macaco. Vários dos outros</p><p>homens se aproximaram às carreiras e um deles disse a Repperton que</p><p>largasse o macaco e brigasse sem vantagens. Repperton atirou o macaco</p><p>para um lado e avançou.</p><p>— Darnell não tentou pôr um fim à briga? — perguntei a Arnie.</p><p>— Ele não estava lá, Dennis. Desapareceu uns quinze minutos ou</p><p>meia hora antes de tudo começar. Como se soubesse o que ia acontecer.</p><p>Arnie contou que Repperton havia feito a maior parte do estrago logo</p><p>de saída. Primeiro o olho preto; o corte no rosto (feito pelo anel do</p><p>colégio, adquirido por Repperton durante um de seus vários últimos anos</p><p>como veterano) aconteceu logo em seguida.</p><p>— Além de várias outras coisas mais — acrescentou Arnie.</p><p>— Que outras coisas?</p><p>Estávamos sentados em uma das cabinas do fundo. Arnie olhou em</p><p>torno, para certificar-se de que ninguém olhava para nós, e então ergueu a</p><p>camiseta. Respirei de maneira sibilante, quando vi aquilo. Era um terrível</p><p>pôr-do-sol em equimoses — amarelas, vermelhas, purpúreas, marrons —</p><p>cobrindo seu peito e estômago. Estavam apenas começando a esmaecer.</p><p>Não consegui entender como ele pudera ir trabalhar, massacrado daquele</p><p>jeito.</p><p>— Tem certeza de que ele não lhe quebrou alguma costela, cara? —</p><p>perguntei.</p><p>Eu estava francamente horrorizado. O olho preto e o corte do rosto</p><p>eram café pequeno, perto de toda aquela coisa. Já vira o resultado de</p><p>brigas no colégio, estivera metido em algumas, porém agora contemplava</p><p>as conseqüências de uma surra em regra, pela primeira vez na vida.</p><p>— Certeza absoluta — disse Arnie, com calma. — Tive sorte.</p><p>— Se teve!</p><p>Arnie não contou muito mais, porém um garoto que eu conhecia,</p><p>chamado Randy Turner, estava lá e me contou o sucedido com mais</p><p>detalhes, quando as aulas começaram. Segundo ele, Arnie podia ter</p><p>apanhado muito mais, porém avançara para Buddy com muito mais</p><p>empenho e muito mais furioso do que ele esperara.</p><p>De fato, disse Randy, Arnie saltara para Buddy Repperton como se o</p><p>diabo lhe tivesse jogado um punhado de pimenta no traseiro. Seus braços</p><p>se moviam como pás de moinho, os punhos estavam em todos os lados.</p><p>Ele gritava, praguejava e babava. Tentei imaginar o quadro e não pude —</p><p>em vez disso, via apenas Arnie socando meu painel de instrumentos, com</p><p>força apenas para deixar marcas, gritando que eles pagariam.</p><p>Arnie fizera Repperton recuar até o meio da garagem, com o nariz</p><p>sangrando (mais por puro acaso, do que por boa pontaria), tendo-lhe</p><p>esmurrado o peito com tal violência que ele começou a tossir, engasgando-</p><p>se e terminando por perder o interesse em liquidar meu amigo.</p><p>Buddy se virara, segurando a garganta e tentando vomitar. Arnie</p><p>assestara um pontapé nos fundilhos de Repperton, com sua bota de</p><p>trabalho de biqueira de aço, derrubando-o espalhafatosamente sobre a</p><p>barriga e os braços. Repperton ainda arquejava e segurava a garganta com</p><p>uma das mãos, o nariz jorrava sangue aos borbotões e (novamente,</p><p>segundo Randy Turner) Arnie parecia disposto a chutar o filho da puta até</p><p>acabar com ele quando Will Darnell magicamente reapareceu, gritando em</p><p>sua voz resfolegante que parassem com aquela merda, parassem aquela</p><p>merda, aquela merda.</p><p>— Arnie pensava que a briga estava para acontecer — falei a Randy.</p><p>— Pensou que fosse coisa combinada.</p><p>Randy deu de ombros.</p><p>— Talvez fosse. Podia ser. Engraçado foi a maneira como Darnell</p><p>apareceu, quando Repperton começou realmente a perder.</p><p>Uns sete sujeitos agarraram Arnie e o afastaram. A princípio, ele</p><p>lutou como um demônio para libertar-se, gritando que o soltassem,</p><p>gritando que se Repperton não pagasse o farol quebrado, ele o mataria.</p><p>Depois se deixou subjugar, espantado e sem consciência de como podia ter</p><p>acontecido aquilo: Repperton caído e ele ainda de pé.</p><p>Repperton finalmente levantou-se, a camiseta branca suja de poeira e</p><p>graxa, o nariz ainda borbulhando sangue. Mergulhou na direção de Arnie.</p><p>Randy contou que mais parecia um ensaio de mergulho, quase por amor às</p><p>aparências. Outros sujeitos o contiveram e o afastaram dali. Darnell</p><p>aproximou-se de Arnie, dizendo que lhe entregasse a chave de sua caixa de</p><p>ferramentas e desse o fora.</p><p>— Céus, Arnie! Por que não me telefonou na tarde de sábado? Ele</p><p>suspirou.</p><p>— Estava deprimido demais.</p><p>Terminamos nossa pizza e comprei uma terceira Pepsi para ele. Esse</p><p>tipo de refrigerante é um veneno para a pele, mas um alívio para a</p><p>depressão.</p><p>— Não sei se ele me mandou dar o fora por aquele sábado ou para</p><p>sempre — comentou Arnie, quando voltávamos para casa. — O que você</p><p>acha, Dennis? Será que ele me chutou de lá definitivamente?</p><p>— Você disse que ele lhe pediu a chave da caixa de ferramentas.</p><p>— Exato, exato, foi o que ele fez. Nunca fui chutado de nenhum lugar</p><p>antes. Arnie dava a impressão de que ia chorar.</p><p>— Seja como for, aquele lugar é uma droga. E Will Darnell é um</p><p>filho da puta.</p><p>— Acho que seria estupidez tentar continuar lá — disse ele. — E</p><p>mesmo que Darnell me deixe voltar, Repperton continua lá. Eu acabaria</p><p>brigando com ele outra vez e...</p><p>Comecei a cantarolar baixinho o tema de Rocky.</p><p>— Vá para o inferno, você e o garanhão que monta, Cavaleiro da</p><p>Montanha — disse ele, sorrindo ligeiramente. — Eu lutaria realmente com</p><p>ele. Só que Repperton pode atacá-la novamente com aquele macaco,</p><p>quando eu não estiver lá. E, se fizesse isso, não creio que Darnell o</p><p>impedisse.</p><p>Como não respondi, talvez Arnie pensasse que eu era de sua mesma</p><p>opinião. Entretanto, não me entrava na cabeça que seu velho calhambeque</p><p>enferrujado, aquele Plymouth Fury, fosse o alvo principal. E, se Repperton</p><p>não pudesse completar sozinho a demolição do alvo principal, bastaria</p><p>pedir ajuda a seus amigos — Don Vandenberg, "Penetra" Welch, etc.</p><p>Calcem suas botas ferradas, rapazes, vamos ter uma boa diversão esta</p><p>noite.</p><p>Ocorreu-me que eles poderiam acabar com ele. Não apenas arrasá-lo,</p><p>mas matá-lo mesmo. Sujeitos como eles às vezes fazem isso. As coisas</p><p>apenas passam de um certo limite e algum garoto termina morto. Volta e</p><p>meia, a gente lê isso nos jornais.</p><p>—... deixá-la?</p><p>— Como?</p><p>Eu não seguira o fio de sua conversa. Mais acima, a casa de Arnie</p><p>estava à vista.</p><p>— Perguntei se você tinha alguma idéia sobre onde eu poderia deixá-</p><p>la.</p><p>O carro, o carro, o carro, era tudo sobre o que ele falava. Arnie</p><p>começava a soar como um disco rachado. E, pior ainda, era sempre ela,</p><p>ela, ela. Era inteligente o bastante para sentir sua crescente obsessão por</p><p>ela — ele, maldição, ele —, mas não dava pela coisa. Nem se mancava.</p><p>— Arnie — falei. — Escute aqui, cara. Você tem coisas mais</p><p>importantes com que se preocupar, em vez de espremer os miolos</p><p>imaginando onde vai deixar o carro. Onde o guardará. Quero saber onde</p><p>você vai se guardar.</p><p>— Como? De que está falando?</p><p>— Pergunto o que fará, se Buddy e seus capangas decidirem que vão</p><p>fazer você dançar.</p><p>Seu rosto subitamente adquiriu uma expressão consciente — tão</p><p>subitamente que dava medo ver. Consciente, impotente e sofrido. Era um</p><p>rosto que eu podia reconhecer, pois o vira nos noticiários, quando tinha</p><p>apenas oito ou nove anos — o rosto de todos aqueles soldados de pijamas</p><p>negros que tinham feito o diabo com o mais bem equipado e aguerido</p><p>exército do mundo.</p><p>— Farei o que puder, Dennis — disse ele.</p><p>LeBay Morre</p><p>Não tenho carro e isso me corta o coração,</p><p>Mas tenho um motorista e já é um começo...</p><p>— Lennon e McCartney</p><p>Tinham começado a passar o filme Nos Tempos da Brilhantina e</p><p>levei a chefe de torcida para vê-lo, aquela noite. Achei uma chatura, mas</p><p>ela adorou. Fiquei lá, vendo aqueles adolescentes completamente irreais,</p><p>dançando e cantando (se eu quisesse adolescentes realistas — bem, mais</p><p>ou menos — veria O Balanço das Horas, em alguma reapresentação), de</p><p>modo que minha mente se desligou do filme. De repente, fui acometido</p><p>por uma súbita idéia, como às vezes costuma acontecer quando não</p><p>estamos concentrados em nada particular.</p><p>Desculpei-me e fui até o saguão, para usar o telefone público. Liguei</p><p>para a casa de Arnie, com rapidez e segurança. Decorara o número dele</p><p>desde que andava pelos oito anos, ou coisa assim. Podia ter esperado até o</p><p>filme terminar, mas aquela idéia me pareceu diabolicamente boa, para</p><p>esperar tanto tempo. O próprio Arnie atendeu.</p><p>— Alô?</p><p>— Aqui é Dennis, Arnie.</p><p>— Oh, Dennis!</p><p>Sua voz era tão inexpressiva e alheia que fiquei um pouco assustado.</p><p>— Você está bem, Arnie?</p><p>— Como? Oh, claro que estou. Pensei que você tivesse levado</p><p>Roseanne ao cinema.</p><p>— É do cinema que estou ligando.</p><p>— Então, o filme não deve ser tão legal assim — disse Arnie, com</p><p>aquela voz ainda monótona, monótona e terrível.</p><p>— Roseanne está achando um barato.</p><p>Pensei que aquilo arrancasse o riso de Arnie, mas houve apenas</p><p>aquele silêncio paciente, aguardando.</p><p>— Escute — falei —, encontrei a resposta.</p><p>— Que resposta?</p><p>— LeBay — respondi. — LeBay é a resposta.</p><p>— Le... — disse ele, em voz estranha e aguda... para então silenciar</p><p>novamente. Aquilo começava a ser mais do que um susto para mim. Eu</p><p>nunca o vira desse jeito.</p><p>— Exatamente — insisti. — LeBay. LeBay tem uma garagem e me</p><p>veio a idéia de que ele comeria um sanduíche de rato morto se a margem</p><p>de lucro fosse suficientemente alta. Se você o procurar oferecendo uma</p><p>base, digamos, de dezesseis ou dezessete pratas por semana...</p><p>— Muito engraçado, Dennis.</p><p>A voz de Arnie era gélida e odiosa.</p><p>— Arnie, o que... Ele desligou.</p><p>Fiquei parado, contemplando o fone e me perguntando que diabo</p><p>estava acontecendo. Alguma nova investida de seus pais? Teria ele voltado</p><p>à garagem e descoberto um novo dano em seu carro? Ou...</p><p>Uma súbita intuição — quase uma certeza — me colheu de súbito.</p><p>Recoloquei o fone no gancho e caminhei para o balcão onde vendiam</p><p>doces e pipocas e perguntei se tinham o jornal daquele dia. A garota que</p><p>atendia finalmente o pescou e voltou a estourar sua goma de mascar,</p><p>enquanto eu folheava a parte final do jornal, onde publicam os obituários.</p><p>A garota me vigiava, talvez querendo ter certeza de que eu não usaria o</p><p>jornal para alguma estranha perversão ou possivelmente o comesse.</p><p>Nada encontrei — ou foi o que imaginei a princípio. Então, virando a</p><p>página, vi o cabeçalho. VETERANO DE LIBERTYVILLE FALECE AOS</p><p>71 ANOS. Havia uma foto de Roland D. LeBay em seu uniforme do</p><p>Exército, parecendo vinte anos mais jovem e com olhos muito mais vivos</p><p>do que nas ocasiões em que eu e Arnie o tínhamos visto. A notícia era</p><p>breve. LeBay falecera subitamente, na tarde de sábado. Deixava um irmão,</p><p>George, e uma irmã, Márcia. Os serviços funerários estavam marcados</p><p>para terça-feira, às duas da tarde.</p><p>Subitamente.</p><p>Nas notícias de falecimentos, sempre lemos: "após prolongada</p><p>enfermidade," "após breve enfermidade" ou "subitamente". Subitamente</p><p>pode significar qualquer coisa, desde embolia cerebral a uma eletrocussão</p><p>na banheira. Recordei algo que tinha feito a Ellie, quando ela não passava</p><p>de um bebê — teria uns três anos, talvez. Eu quase a matara de susto, com</p><p>um boneco de molas. A mão de Dennis, seu grande irmão mais velho,</p><p>girava a pequena manivela que produzia música. Nada mau. Muito</p><p>interessante. E de repente — ploft! De dentro da caixa saltava aquele</p><p>sujeito de rosto risonho e feio nariz de gancho, quase lhe atingindo o olho.</p><p>Ellie abriu um berreiro e disparou em busca da mãe, enquanto eu ficava lá,</p><p>olhando sombriamente para o boneco que oscilava de um lado para outro,</p><p>sabendo que provavelmente seria repreendido, sabendo que provavelmente</p><p>merecia ser repreendido — eu sabia antecipadamente que o boneco a</p><p>assustaria, brotando da música daquele jeito, de repente, com um terrível</p><p>ruído.</p><p>Brotando tão subitamente.</p><p>Devolvi o jornal e fiquei lá, olhando apaticamente para os cartazes</p><p>que anunciavam PRÓXIMA ATRAÇÃO e PARA BREVE.</p><p>Tarde de sábado.</p><p>Subitamente.</p><p>É engraçado como as coisas às vezes acontecem. Minha repentina</p><p>idéia havia sido de que talvez Arnie</p><p>pudesse levar Christine de volta para</p><p>o lugar de onde viera, pagando a LeBay por isso. Agora, no entanto, LeBay</p><p>estava morto. De fato, morrera no mesmo dia da briga de Arnie com</p><p>Buddy Repperton — o mesmo dia em que Buddy estraçalhara o farol de</p><p>Christine.</p><p>Tive imediatamente um retrato irracional de Buddy Repperton</p><p>movimentando aquele macaco — e, no mesmo exato momento, o olho de</p><p>LeBay espirra sangue, ele emborca de pernas para o ar e, subitamente,</p><p>muito subitamente...</p><p>Pare com isso, Dennis, me adverti. Pare com...</p><p>Então, em algum lugar lá no fundo de minha mente, algum ponto</p><p>perto do centro, uma voz sussurrou: Vamos garotão, vamos rodar por aí —</p><p>e silenciou.</p><p>A garota atrás do balcão explodiu sua goma de mascar e disse:</p><p>— Você está perdendo o fim do filme. É a melhor parte.</p><p>— Oh, sim, obrigado.</p><p>Comecei a caminhar para a porta do cinema e então mudei o rumo,</p><p>direto ao bebedouro. Minha garganta estava muito seca.</p><p>Antes de terminar de beber, as portas se abriram e todos começaram</p><p>a sair. Além e acima de suas cabeças em movimento, pude ler o nome dos</p><p>participantes do filme. Roseanne surgiu à vista, olhando em torno à minha</p><p>procura. Atraiu muitos olhares de admiração e os devolveu com</p><p>simplicidade, naquele seu jeito sonhador e contido.</p><p>— Den-Den — disse ela, tomando meu braço. Ser chamado Den-Den</p><p>não é a pior coisa do mundo, ter os olhos inutilizados por um rubro</p><p>atiçador de brasas ou uma perna amputada por uma serra elétrica deve ser</p><p>muito mais terrível, mas nunca me importei muito com aquilo. — Onde é</p><p>que você esteve? Perdeu o final do filme. E o fim é...</p><p>—... a melhor parte — completei para ela. — Sinto muito. Houve</p><p>uma necessidade fisiológica. Aconteceu quando menos esperava.</p><p>— Vou te contar tudinho, se me levar até a beira do rio, por um</p><p>momento — disse ela, pressionando meu braço contra o lado macio de seu</p><p>seio. — Se estiver querendo conversar, lógico.</p><p>— Foi um final feliz?</p><p>Ela sorriu para mim, os olhos grandes e doces, um pouco atordoados,</p><p>como sempre. Segurou meu braço ainda mais apertadamente contra o seio.</p><p>— Muito feliz — disse. — Gosto de finais felizes. E você?</p><p>— Adoro — respondi.</p><p>Eu devia estar pensando na promessa de seus seios, mas a verdade é</p><p>que voltara a concentrar-me em Arnie.</p><p>Naquela noite, tive um sonho novamente, porém neste Christine era</p><p>velha — não, não apenas velha; era anciã, um terrível carro de carroceria</p><p>desmantelada, algo que se esperaria ver em um baralho Tarot: em vez do</p><p>Homem Enforcado, o Carro Morto. Algo que se poderia quase acreditar ser</p><p>tão velho como as pirâmides. O motor rugia, morria e expelia uma</p><p>fedorenta fumaça azulada de óleo queimado.</p><p>Ele não estava vazio: Roland D. LeBay estava refestelado ao volante.</p><p>Seus olhos abertos eram vítreos e mortos. A cada vez que o motor pegava,</p><p>a carroceria carcomida de ferrugem vibrava, Christine se sacudia como</p><p>uma boneca de trapos. Seu crânio descascado assentia, para diante e para</p><p>trás.</p><p>Então, os pneus deram seu grito terrível, o Plymouth saltou da</p><p>garagem para cima de mim e, ao fazer isso, a ferrugem dissolveu-se, os</p><p>vidros antigos e rachados ficaram cristalinos, os cromados cintilaram com</p><p>selvagem frescor e os velhos pneus carecas subitamente floresceram em</p><p>carnudos Firestones de banda branca, cada reentrância da banda de</p><p>rolamento parecendo tão funda como o Grand Canyon.</p><p>Ele estrondeou para mim, os faróis despejando círculos brancos de</p><p>ódio, e então ergui as mãos, em um gesto estúpido e inútil de defesa,</p><p>pensando: Céus, essa fúria interminável...</p><p>Acordei.</p><p>Não gritei. Naquela noite, sufoquei o grito na garganta.</p><p>Com grande esforço.</p><p>Sentei-me na cama, uma poça fria de luar batia em um pedaço do</p><p>lençol e pensei: Falecido subitamente...</p><p>Nessa noite, não consegui tornar a dormir tão depressa.</p><p>O Funeral</p><p>Rabo-de-peixe branco, de ponta a ponta,</p><p>E roda como algo do paraíso aqui na terra,</p><p>Bem, cara, quando eu morrer,</p><p>Jogue meu corpo na traseira</p><p>E me leve para o ferro-velho em meu Cadillac.</p><p>— Bruce Springsteen</p><p>Brad Jeffries, nosso capataz de turma na estrada, andava pelos</p><p>quarenta e tantos anos, era careca, atarracado, permanentemente queimado</p><p>de sol. Gostava muito de gritar — principalmente quando estávamos</p><p>atrasados nos prazos de construção — mas era um bocado legal como</p><p>pessoa. Fui procurá-lo na folga do café, para saber se Arnie pedira</p><p>algumas horas livres ou a tarde inteira.</p><p>— Ele pediu duas horas, para ir a um enterro — disse Brad. Tirou os</p><p>óculos de aros metálicos e massageou os pontos vermelhos que haviam</p><p>deixado, nos lados do nariz. — Bolas, não vá pedir também... vou perder</p><p>vocês dois no fim da semana, de qualquer jeito, e todos os imbecis ficam</p><p>aqui.</p><p>— Tenho que pedir, Brad.</p><p>— Por quê? Quem é o cara? Cunningham disse que ele lhe vendera</p><p>um carro, foi tudo. Céus, nunca pensei que alguém fosse ao enterro de um</p><p>vendedor de carros usados, além dos parentes.</p><p>— Não era um vendedor de carros usados, apenas um cara. Arnie está</p><p>tendo problemas nessa área, Brad. Acho que eu devia estar com ele.</p><p>Brad suspirou.</p><p>— Certo. Certo, certo, certo! Pode tirar uma folga, de uma às três,</p><p>como ele. Se concordar em trabalhar durante a hora do almoço e ficar até</p><p>as seis, na sexta-feira.</p><p>— Tudo bem, Brad. Obrigado.</p><p>— Vou fazer de conta que trabalharam o horário normal — declarou</p><p>Brad. — Se alguém da Penn-DOT, em Pittsburgh, descobrir, minha cabeça</p><p>vai rolar.</p><p>— Ninguém descobrirá.</p><p>— Será uma pena perder vocês dois, rapaz.</p><p>Pegou o jornal e procurou a parte esportiva. Vindo de Brad, aquilo era</p><p>um elogio e tanto.</p><p>— Foi um bom verão para nós também.</p><p>— Fico satisfeito em saber, Dennis. Agora dê o fora daqui e me deixe</p><p>ler o jornal. Obedeci.</p><p>Era uma da tarde quando peguei carona em uma niveladora até o</p><p>barracão principal da construção. Arnie estava lá dentro, pendurando seu</p><p>capacete amarelo e vestindo uma camisa limpa. Olhou para mim com</p><p>espanto.</p><p>— Dennis! O que está fazendo aqui?</p><p>— Vim me aprontar para um enterro — falei. — O mesmo que você.</p><p>— Não — disse ele prontamente.</p><p>Naquela palavra, encerrava-se tudo — os sábados que não passava</p><p>mais em casa, a frieza de Michael e Regina ao telefone, a maneira como</p><p>ele se portara, quando lhe ligara do cinema —, fazendo-me perceber o</p><p>quanto me isolara de sua vida e como aquilo acontecera da mesma forma</p><p>como LeBay tinha morrido. Subitamente.</p><p>— Sim — falei. — Sonhei com o sujeito, Arnie. Está me ouvindo?</p><p>Eu sonhei com ele. Vou ao enterro. Podemos ir juntos ou separados, mas</p><p>eu vou também.</p><p>— Não estava brincando, estava?</p><p>— Quê?</p><p>— Quando ligou para mim, do cinema. Ainda não sabia que ele</p><p>estava morto, sabia?</p><p>— Droga! Acha que eu ia brincar com uma coisa dessas?</p><p>— Não — respondeu ele, mas demorou um pouco.</p><p>Só respondeu depois de refletir cautelosamente. Via a possibilidade</p><p>de todas as mãos agora se voltarem contra ele. Will Darnell agira assim,</p><p>bem como Buddy Repperton. Imagino que também seu pai e sua mãe.</p><p>Contudo, não se tratava somente deles, nem mesmo principalmente deles,</p><p>porque nenhum era a causa primordial. Era o carro.</p><p>— Você sonhou com ele?</p><p>— Sonhei.</p><p>Ele ficou parado, segurando a camisa limpa, meditando naquilo.</p><p>— O jornal disse Cemitério de Libertyville Heights — comentei</p><p>finalmente. — Vai pegar o ônibus ou prefere ir comigo?</p><p>— Vou com você.</p><p>— Boa idéia.</p><p>Postamo-nos em uma elevação, um pouco acima da cerimônia à beira</p><p>da sepultura, não ousando ou não querendo descer e juntar-nos ao punhado</p><p>das pessoas ali presentes. Ao todo, eram menos de uma dúzia, metade</p><p>composta de velhos sujeitos vestindo uniformes que pareciam velhos e</p><p>cuidadosamente preservados — quase se podia sentir o cheiro da naftalina.</p><p>O ataúde de LeBay estava em deslizadores sobre a sepultura. Havia uma</p><p>bandeira sobre ele. As palavras do pregador chegaram até nós, levadas</p><p>pela brisa quente de um final de agosto: "O homem é como a relva, que</p><p>cresce e depois é aparada, o homem é como a flor, que desabrocha na</p><p>primavera e esmaece no verão, o homem é amor, e ama o que desaparece.</p><p>Terminada a cerimônia, a bandeira foi removida e um homem</p><p>aparentando mais de sessenta</p><p>anos jogou um punhado de terra sobre o</p><p>caixão. Pequenos fragmentos saltitaram e caíram na fossa abaixo. O</p><p>noticiário do óbito dizia que ele deixara um irmão e uma irmã. Aquele</p><p>devia ser o irmão; a semelhança não era espantosa, mas existia.</p><p>Evidentemente, a irmã não comparecera; ali havia apenas homens, em</p><p>torno do buraco no chão.</p><p>Dois dos sujeitos da Legião Americana dobraram a bandeira em</p><p>formato de quepe e um deles a entregou ao irmão de LeBay. O pregador</p><p>pediu ao Senhor para abençoá-los e guardá-los, que Seu rosto fulgurasse</p><p>sobre eles e lhes desse paz. Em seguida, todos começaram a dispersar-se.</p><p>Olhei em torno, procurando Arnie, porém ele não estava mais ao meu lado.</p><p>Tinha-se afastado um pouco e o vi de pé sob uma árvore. Havia lágrimas</p><p>em suas faces.</p><p>— Você está bem, Arnie? — perguntei.</p><p>Tive absoluta certeza de não ter visto uma só maldita lágrima vertida</p><p>pelos que circundavam a sepultura. Pensei que, se Roland D. LeBay</p><p>soubesse que Arnie Cunningham seria o único a derramar lágrimas por ele,</p><p>na cerimônia simples junto à sepultura, em um dos mais anônimos</p><p>cemitérios do oeste da Pensilvânia, bem poderia ter rebaixado cinqüenta</p><p>pratas do preço de seu nojento carro. Afinal de contas, Arnie ainda estaria</p><p>pagando cento e cinqüenta a mais do que o calhambeque valia.</p><p>Ele limpou o rosto com as palmas das mãos, em um gesto quase</p><p>selvagem.</p><p>— Estou ótimo — disse. — Vamos.</p><p>— Está bem.</p><p>Pensei que ele se referia à hora de irmos embora, porém Arnie não</p><p>caminhou para onde eu estacionara meu Duster, começando, em vez disso,</p><p>a descer a elevação. Comecei a perguntar-lhe aonde ia, mas fechei a boca;</p><p>eu o conhecia bem, sabia que pretendia falar com o irmão de LeBay.</p><p>O irmão estava parado com dois daqueles sujeitos com tipo de</p><p>Legionários, conversando tranqüilamente, com a bandeira debaixo do</p><p>braço. Usava o terno do homem que se aproxima da aposentadoria, com</p><p>um rendimento insuficiente. Era um tecido com fino listrado azul, os</p><p>fundilhos ligeiramente brilhantes. A gravata aparecia com a ponta</p><p>amarrotada e a camisa branca estava amarelada no colarinho.</p><p>Ele nos viu chegando.</p><p>— Com licença — disse Arnie —, mas o senhor é o irmão do Sr.</p><p>LeBay, não?</p><p>— Sim, sou eu mesmo.</p><p>Ele fitou Arnie de modo inquisitivo e, pensei, um tanto desconfiado.</p><p>Arnie estendeu a mão.</p><p>— Meu nome é Arnold Cunningham. Conheci seu irmão</p><p>ligeiramente. Comprei um carro dele, não faz muito tempo.</p><p>Quando Arnie estendeu a mão, LeBay a procurou automaticamente</p><p>— entre homens americanos, o único gesto que parece mais arraigado do</p><p>que o aperto de mão é observar a braguilha, para certificar-se de que o</p><p>zíper foi fechado, após a saída de um toalete público. Entretanto, quando</p><p>Arnie acrescentou que comprara um carro de LeBay, a mão vacilou no</p><p>trajeto. Por um momento, pensei que não ia haver qualquer aperto de</p><p>mãos, que ele recuaria com a sua, deixando a de Arnie boiar no vazio.</p><p>Entretanto, ele não fez tal coisa... pelo menos, não de todo. Apertou</p><p>superficialmente a mão de Arnie e depois a soltou.</p><p>— Christine — disse ele, em voz inexpressiva. Sim, a semelhança do</p><p>parentesco era patente: na maneira como as sobrancelhas formavam uma</p><p>prateleira acima dos olhos, na forma do queixo, nos olhos de um azul-</p><p>claro. Este homem, no entanto, tinha o rosto mais suave, quase gentil;</p><p>duvido que um dia fosse ficar com a aparência magra e astuta de Roland</p><p>D. LeBay. — Na última notícia sua que me enviou, Rollie disse que a</p><p>vendera.</p><p>Deus meu, também ele usava o maldito pronome feminino. E Rollie!</p><p>Era difícil imaginar LeBay, com seu crânio pelado e o fedorento colete</p><p>ortopédico, sendo Rollie para alguém. Seu irmão, contudo, pronunciara o</p><p>diminutivo na mesma voz seca e indiferente. Não havia amor naquela voz,</p><p>pelo menos nenhum que eu pudesse captar.</p><p>LeBay prosseguiu:</p><p>— Meu irmão não escrevia com freqüência, Sr. Cunningham, mas</p><p>tinha uma tendência a vangloriar-se. Eu desejaria ter para ele uma palavra</p><p>mais delicada, porém creio que não existe. Em seu bilhete, Rollie falava</p><p>do senhor como um "pato" e disse que lhe passara o que considerava "um</p><p>conto-do-vigário".</p><p>Fiquei de boca aberta. Virei-me para Arnie, quase esperando outro</p><p>acesso de fúria. Seu rosto, contudo, não se modificou em absoluto.</p><p>— Um conto-do-vigário — disse brandamente — é sempre a opinião</p><p>do espectador. Acredita nisso, Sr. LeBay?</p><p>LeBay riu... com certa relutância, observei.</p><p>— Este é meu amigo. Estávamos juntos, no dia em que comprei o</p><p>carro. Fui apresentado e apertei a mão de George LeBay.</p><p>Os soldados já se tinham ido. Nós três, eu, Arnie e LeBay,</p><p>entreolhamo-nos desconfortavelmente. LeBay passou a bandeira do irmão</p><p>de uma para a outra mão.</p><p>— Posso ser-lhe útil em alguma coisa, Sr. Cunningham? —</p><p>perguntou LeBay finalmente. Arnie pigarreou.</p><p>— Eu estava pensando na garagem — disse por fim. — Compreenda,</p><p>estou consertando o carro, tentando deixá-lo em condições de rodar</p><p>novamente pelas ruas. Meus pais não o querem em nossa casa e, desta</p><p>forma, eu estava pensando se...</p><p>— Nada feito.</p><p>— ... talvez pudesse alugar a garagem.</p><p>— O assunto está fora de discussão. De fato, é...</p><p>— Eu pagaria vinte dólares por semana — disse Arnie. — Até vinte e</p><p>cinco, se quiser. Pestanejei. Arnie se portava como um menino, preso em</p><p>areia movediça, que decide divertir-se comendo alguns bombons com</p><p>arsênico.</p><p>— Impossível. — LeBay parecia cada vez mais constrangido.</p><p>— Apenas a garagem — disse Arnie, sua calma começando a</p><p>fraquejar. — Apenas a garagem onde o carro estava antes.</p><p>— Não é possível — disse LeBay. — Ainda esta manhã, registrei a</p><p>casa com os corretores da Century 21, Libertyville Realty e Pittsburg</p><p>Homes. Eles ficaram incumbidos de mostrá-la...</p><p>— Claro, dentro de algum tempo, mas até lá...</p><p>— ...e eu não gostaria de tê-lo na propriedade. Compreende, não? —</p><p>Ele se inclinou ligeiramente para Arnie. — Por favor, não me interprete</p><p>mal. Nada tenho contra adolescentes em geral... Se tivesse, provavelmente</p><p>estaria agora em um hospício, porque lecionei no ginásio de Paradise</p><p>Falls, Ohio, durante quase quarenta anos, e você me parece um cortês e</p><p>inteligente exemplo do gênero adolescente. De qualquer modo, tudo</p><p>quanto pretendo fazer aqui, em Libertyville, é vender a casa e dividir</p><p>qualquer que seja o produto obtido, com minha irmã em Denver. Quero</p><p>ver-me livre daquela casa, Sr. Cunningham, e também livre da vida de meu</p><p>irmão.</p><p>— Entendo — disse Arnie. — Faria muita diferença se eu lhe</p><p>prometesse cuidar da propriedade? Aparar a grama? Repintar as portas e</p><p>janelas? Fazer pequenos reparos? Tenho muito jeito para essas coisas.</p><p>— Ele é realmente bom nisso — falei.</p><p>Para Arnie, seria bom recordar, mais tarde, que eu estivera do seu</p><p>lado... mesmo não estando. —Já contratei um homem para ficar de olho</p><p>por lá e fazer um pequeno trabalho de conservação. Aquilo soava plausível</p><p>mas, de repente, tive certeza absoluta de que era mentira. E Arnie sabia</p><p>também, pensei.</p><p>— Está certo. Sinto muito sobre seu irmão. Ele parecia um... um</p><p>homem de grande força de vontade.</p><p>Quando Arnie disse isso, recordei o momento em que me virara e</p><p>tinha visto LeBay com compridas e gordurosas lágrimas nas faces. Bem, aí</p><p>está. Fiquei sem a minha máquina, filho.</p><p>— Força de vontade? — LeBay sorriu cinicamente. — Oh, sim. Ele</p><p>era um filho da mãe com força de vontade. — Pareceu não notar o ar</p><p>chocado de Arnie. — Com licença, senhores. Creio que o sol perturbou um</p><p>pouco o meu estômago.</p><p>Começou a caminhar. Ficamos parados, não muito longe da</p><p>sepultura, vendo-o afastar-se. LeBay parou subitamente e o rosto de Arnie</p><p>iluminou-se, sem dúvida pensando que o homem mudara de idéia de</p><p>repente. Por um momento, LeBay ficou parado sobre a grama, a cabeça</p><p>baixa, na postura de quem reflete profundamente. Então tomou a caminhar</p><p>para nós.</p><p>— Se quer um conselho, esqueça aquele carro — disse a Arnie. —</p><p>Venda-o. Se ninguém o quiser comprar inteiro, venda-o por peças. E se</p><p>ninguém se interessar assim mesmo, leve para o ferro-velho. Faça isso, o</p><p>mais rápido possível. Como quem se livra de um vício. Creio que você</p><p>seria mais feliz.</p><p>Ficou olhando para Arnie, esperando</p><p>que ele dissesse alguma coisa,</p><p>mas não houve resposta. Meu amigo apenas o encarou fixamente. Seus</p><p>olhos tinham aquela peculiar e estranha tonalidade que adquiriam quando</p><p>a mente de Arnie estava decidida em alguma coisa, os pés bem firmes no</p><p>chão. LeBay entendeu e assentiu. Pareceu angustiado e um pouco</p><p>indisposto.</p><p>— Bom dia, senhores. Arnie suspirou.</p><p>— Bem, suponho que isto encerra tudo.</p><p>Olhou para Lebay que se afastava, com certo ressentimento.</p><p>— Certo — concordei, esperando soar mais infeliz do que me sentia.</p><p>Era o sonho. Eu não gostava da idéia de Christine novamente naquela</p><p>garagem. Era semelhante demais ao meu sonho.</p><p>Em silêncio, começamos a caminhar de volta para meu carro. LeBay</p><p>piscou para mim. Os dois LeBays tinham piscado para mim. Tomei uma</p><p>súbita, impulsiva decisão — só Deus sabe como as coisas podiam ter sido</p><p>muito diferentes, se eu não tivesse seguido meu impulso.</p><p>— Ei, cara — falei. — Tenho que dar uma mijada. Será só um ou</p><p>dois minutos, certo?</p><p>— Certo — disse ele, mal erguendo os olhos.</p><p>Continuou caminhando, com as mãos enfiadas nos bolsos e os olhos</p><p>cravados no chão. Caminhei para a esquerda, onde um pequeno e discreto</p><p>aviso, com uma flecha ainda menor, indicava o trajeto para os toaletes.</p><p>Entretanto, quando escalei a primeira elevação e fiquei fora da vista de</p><p>Arnie, dobrei para a direita e corri para o pátio de estacionamento.</p><p>Alcancei George LeBay quando ele deslizava lentamente para trás do</p><p>volante de um diminuto Chevette, com um adesivo Hertz colado no pára-</p><p>brisa.</p><p>— Sr. LeBay! — chamei, arquejante. — Sr. LeBay! — Ele ergueu os</p><p>olhos, curiosamente. — Desculpe-me — falei. — Sinto muito incomodá-</p><p>lo novamente.</p><p>— Não tem importância — respondeu ele —, mas continuo firme no</p><p>que disse a seu amigo. Não posso deixá-lo guardar o carro na garagem.</p><p>— Faz muito bem — falei.</p><p>Suas espessas sobrancelhas se elevaram.</p><p>— Aquele carro — continuei —, aquele Fury, não gosto dele. Ele</p><p>continuou a olhar para mim, sem dizer nada.</p><p>— Não creio que aquele carro tenha feito bem a meu amigo. Talvez,</p><p>em parte seja porque... Oh, eu não sei como dizer...</p><p>— Está com ciúmes? — perguntou ele, brandamente. — O tempo que</p><p>seu amigo passava com você agora é dedicado a... Christine?</p><p>— Bem, acho que é isso — falei. — Somos amigos há muito tempo...</p><p>Só que... bem, não creio que se trate apenas disso.</p><p>— Não?</p><p>— Não. — Olhei em torno, para ver se avistava Arnie e, nesse meio</p><p>tempo, consegui concatenar os pensamentos. — Por que disse a ele para</p><p>levar o carro ao ferro-velho e esquecê-lo? Por que disse que era como um</p><p>vício?</p><p>Ele ficou calado e receio que nada tivesse a dizer — pelo menos, não</p><p>a mim. Então, quase baixo demais para eu ouvir, perguntou:</p><p>— Tem certeza de que isto é da sua conta, filho?</p><p>— Não sei. — De repente, parecia muito importante fitá-lo nos</p><p>olhos. — No entanto, eu me preocupo com Arnie, entende? Não quero vê-</p><p>lo sofrer. Aquele carro já lhe trouxe problemas. Não quero que a situação</p><p>fique pior.</p><p>— Venha a meu hotel esta noite. Fica logo depois da Western Avenue,</p><p>na saída da 376. Acha que pode encontrar?</p><p>— Ajudei a compactar os lados da rampa — falei, estendendo-lhe as</p><p>mãos. — Ainda tenho bolhas.</p><p>Sorri, mas ele não correspondeu ao sorriso.</p><p>— Rainbow Hotel. Há dois, na cabeceira daquela saída. O meu é o</p><p>mais barato.</p><p>— Obrigado — falei, desajeitadamente. — Ouça, acha mesmo que...</p><p>— Talvez não seja da sua conta, da minha, nem da de ninguém —</p><p>disse LeBay, em sua voz macia de professor, tão diferente do selvagem</p><p>cacarejo de seu falecido irmão (porém, de certo modo, tão fantasticamente</p><p>similar).</p><p>(e este é o melhor cheiro do mundo... excetuando talvez o de uma</p><p>cona)</p><p>— No entanto, vou lhe dizer uma coisa — prosseguiu ele. — Meu</p><p>irmão não era um bom homem. Em minha opinião, a única coisa que ele</p><p>realmente amou na vida foi esse Plymouth Fury que seu amigo comprou.</p><p>Portanto, o assunto deve ser entre eles, apenas entre eles, pouco importa o</p><p>que me diga ou o que eu lhe possa dizer.</p><p>Ele sorriu para mim. Não era um sorriso agradável e, naquele</p><p>instante, pareceu-me ver Roland D. LeBay espiando através de seus olhos.</p><p>Fiquei arrepiado.</p><p>— Filho, você talvez ainda seja jovem demais para buscar sabedoria</p><p>nas palavras de alguém, preferindo as suas próprias, porém eu lhe digo</p><p>isto: o inimigo é o amor. — Assentiu lentamente para mim. —</p><p>Exatamente. Os poetas se enganam com o amor, de maneira contínua e por</p><p>vezes deliberadamente. O amor é o velho carniceiro. O amor não é cego. O</p><p>amor é um canibal com visão extremamente apurada. O amor é como os</p><p>insetos: sempre faminto.</p><p>— E o que ele come? — perguntei, inconscientemente.</p><p>Não tinha idéia de perguntar coisa alguma. Cada parte minha, exceto</p><p>a boca, considerava insana toda aquela conversa.</p><p>— A amizade — disse George LeBay. — Ele come a amizade. Se</p><p>fosse você, Dennis, eu agora me prepararia para o pior.</p><p>Fechou a porta do Chevette com um pluft! macio e ligou seu motor</p><p>de máquina de costura. O carro afastou-se, deixando-me parado no final do</p><p>piso acimentado. De repente, lembrei que Arnie podia avistar-me vindo</p><p>daqueles lados e então saí dali o mais depressa que pude.</p><p>Enquanto me afastava, refleti que os coveiros, enterradores,</p><p>engenheiros perpétuos ou fosse lá que nome tivessem nos dias atuais,</p><p>naquele momento deviam estar baixando o caixão de LeBay à sepultura. A</p><p>terra atirada por George LeBay no final da cerimônia estaria dispersa</p><p>sobre a tampa, à maneira de uma cartada vitoriosa. Tentei afastar a</p><p>imagem, porém outra ainda pior a substituiu: Roland D. LeBay, dentro do</p><p>ataúde forrado de seda, envergando seu melhor terno e sua melhor roupa</p><p>de baixo — sem o nauseabundo e encardido colete ortopédico,</p><p>naturalmente.</p><p>LeBay estava debaixo da terra, LeBay estava em seu caixão, com as</p><p>mãos cruzadas sobre o peito... e por que eu tinha tanta certeza de haver em</p><p>seu rosto um largo e debochado sorriso?</p><p>Um Histórico de Família</p><p>Não ficou sabendo em Needham?</p><p>A Rota 128 está em suas linhas de força...</p><p>É tão frio aqui no escuro.</p><p>É tão excitante no escuro...</p><p>- Jonathan Richmond e os Modern Lovers</p><p>O Rainbow Hotel era bastante ruim, sem dúvida. Tinha apenas um</p><p>andar, a pavimentação do pátio de estacionamento estava rachada e duas</p><p>das letras no anúncio de néon estavam avariadas. Era exatamente o tipo de</p><p>lugar onde se espera encontrar um idoso professor inglês. Sei o quanto isto</p><p>pode parecer deprimente, porém é a pura verdade. E, no dia seguinte, ele</p><p>devolveria seu carro à Agência Hertz, no aeroporto, para em seguida tomar</p><p>o avião de volta a casa, em Paradise Falls, Ohio.</p><p>O Rainbow Hotel parecia uma enfermaria geriátrica. Havia vários</p><p>grupos sentados do lado de fora de seus aposentos, nas espreguiçadeiras de</p><p>jardim que a gerência fornecia para tal finalidade, cruzados os joelhos</p><p>ossudos, as meias brancas puxadas para cima, sobre as canelas peludas.</p><p>Todos os homens tinham uma aparência de alpinistas envelhecidos, eram</p><p>magricelas e rijos. Em sua maioria, as mulheres desabrochavam com a</p><p>macia gordura do pós-cinqüenta, uma gordura sem esperanças de</p><p>desaparecer. Desde então, comecei a perceber a existência de hotéis que</p><p>parecem cheios apenas de pessoas com mais de cinqüenta anos como se</p><p>eles ficassem sabendo desses lugares através de um Telefone de</p><p>Emergência para Idosos, mas Decentes. Traga a sua Histerectomia e</p><p>Próstata Dilatada para o Não-Tão-Cênico Rainbow Hotel. Sem Televisão,</p><p>mas Temos Dedos Mágicos, Apenas 25 Centavos a Injeção. Não vi</p><p>qualquer pessoa jovem no exterior das unidades e, a um lado, o</p><p>enferrujado equipamento do playground permanecia vazio, os balanços</p><p>lançando compridas sombras imóveis no chão. Em cima, um arco-íris de</p><p>néon, justificando o nome do lugar (Rainbow), arqueava-se sobre o</p><p>anúncio. Zumbia como um punhado de moscas presas em uma garrafa.</p><p>LeBay estava sentado fora da Unidade 14, com um copo na mão.</p><p>Caminhei até lá e troquei um aperto de mão com ele.</p><p>— Gostaria de um refrigerante? — perguntou ele. — No escritório há</p><p>uma máquina automática que os fornece.</p><p>— Não, obrigado — respondi.</p><p>Peguei uma das espreguiçadeiras que vi</p><p>diante de uma unidade vazia</p><p>e me sentei ao lado dele.</p><p>— Então, deixe-me contar-lhe o que posso — disse ele, em sua voz</p><p>culta e suave. — Sou onze anos mais novo que Rollie e um homem que</p><p>ainda está aprendendo a envelhecer.</p><p>Remexi-me desajeitadamente no assento e não disse nada.</p><p>— Éramos quatro — disse ele. — Rollie o mais velho, eu o mais</p><p>novo. Nosso irmão Drew morreu na França, em 1914. Ele e Rollie fizeram</p><p>carreira no Exército. Fomos criados aqui, em Libertyville. Só que,</p><p>naquela, época, Libertyville era muito, muito menor, compreenda, apenas</p><p>uma aldeia. Pequena o bastante para ter seus endinheirados e seus párias.</p><p>Nós pertencíamos aos párias. Éramos uma família pobre. Gente sem</p><p>iniciativa. Do lado errado dos trilhos. Escolha o clichê.</p><p>Ele deu uma risadinha contida e despejou mais cerveja em seu copo.</p><p>— Em verdade, só consigo recordar uma coisa constante sobre a</p><p>infância de Rollie, afinal, ele estava no quinto ano quando nasci mas é</p><p>algo de que me lembro perfeitamente.</p><p>— O que é?</p><p>— Sua raiva — disse LeBay. — Rollie estava sempre furioso.</p><p>Irritava-se por ter de ir à escola com roupas velhas, irritava-se por nosso</p><p>pai ser um bêbado que não conseguia manter um emprego fixo em</p><p>nenhuma das metalúrgicas, irritava-se por nossa mãe não conseguir fazer</p><p>com que nosso pai deixasse de beber. Ficava também irritado com as três</p><p>crianças menores — Drew, Márcia e eu —, pois tornávamos a pobreza</p><p>insustentável.</p><p>Ele estendeu o braço para mim e arregaçou a manga da camisa, a fim</p><p>de mostrar-me os duros e esbranquiçados tendões de seu braço de velho,</p><p>jazendo logo abaixo da superfície da pele luzidia e estirada. Uma cicatriz</p><p>alastrava-se do cotovelo até o pulso, onde finalmente se desfazia.</p><p>— Isto foi um presente de Rollie — disse. — Eu tinha três anos e ele</p><p>quatorze. Eu brincava com alguns blocos de madeira pintados, que fingia</p><p>serem carros e caminhões, na calçada diante de uma casa, quando ele</p><p>apareceu, a caminho da escola. Imagino que eu estivesse em seu caminho.</p><p>Ele me empurrou, ganhou a calçada e então voltou, para empurrar-me de</p><p>novo. Caí com o braço sobre as estacas pontiagudas do gradil que cercava</p><p>um punhado de plantas e girassóis, que minha mãe insistia em chamar de</p><p>"jardim". Sangrei o bastante para assustá-los até as lágrimas todos eles,</p><p>exceto Rollie, que se limitou a ficar gritando: "De agora em diante, fique</p><p>fora do meu caminho, seu maldito imbecil, fique fora do meu caminho,</p><p>ouviu?".</p><p>Fascinado, contemplei a antiga cicatriz que agora parecia tortuosa,</p><p>porque o pequeno e rechonchudo braço de três anos, no decorrer dos anos,</p><p>se transformara naquele outro, um braço de velho, magro e reluzente, para</p><p>o qual então olhava. Um ferimento que fora uma feia cratera expelindo</p><p>sangue, em algum momento de 1921, alongara-se pouco a pouco naquela</p><p>prateada progressão de marcas, como degraus de escada de mão. O</p><p>ferimento se fechara, mas a cicatriz... se espalhara.</p><p>Um terrível e impotente estremecimento sacudiu-me por dentro.</p><p>Recordei Arnie, esmurrando o painel de instrumentos de meu carro, Arnie</p><p>gritando roucamente que ia fazê-los pagar, que eles pagariam, eles</p><p>pagariam.</p><p>George LeBay olhava para mim. Ignoro o que viu em meu rosto, mas</p><p>baixou a manga lentamente e, quando a abotoou com firmeza sobre a</p><p>cicatriz, foi como se tivesse fechado as cortinas sobre um passado quase</p><p>intolerável.</p><p>Ele bebericou mais cerveja.</p><p>— Quando meu pai chegou em casa aquela noite, estivera em uma</p><p>das bebedeiras a que chamava de "caçar um emprego", e ouviu o que</p><p>Rollie tinha feito, quase lhe arrancou a pele com uma bruta surra. Rollie,</p><p>entretanto, não se retratava. Chorava, mas não se retratava. — LeBay</p><p>sorriu de leve. — Por fim, aterrorizada, minha mãe gritou para meu pai</p><p>acabar com aquilo, antes que o matasse. As lágrimas rolavam pelo rosto de</p><p>Rollie, mas ainda assim, ele não se retratava. "Ele estava em meu</p><p>caminho", dizia, por entre as lágrimas. "E se ficar no meu caminho outra</p><p>vez, torno a fazer a mesma coisa e ninguém pode impedir-me, nem mesmo</p><p>você, seu maldito velho beberrão!". Então meu pai lhe bateu no rosto,</p><p>fazendo seu nariz sangrar, e Rollie caiu no chão, com o sangue fluindo por</p><p>entre seus dedos. Minha mãe gritava, Márcia chorava, Drew estava</p><p>encolhido a um canto e eu berrava em desespero, amparando o braço</p><p>enfaixado. Pois Rollie continuava dizendo: "Eu farei a mesma coisa, seu</p><p>beberrão-beberrão-maldito-velho-beberrão!".</p><p>Sobre nós, as estrelas começavam a despontar. Uma mulher idosa</p><p>saiu de uma unidade mais abaixo, apanhou uma mala surrada em um Ford</p><p>e a levou para seus aposentos. Um rádio tocava em algum lugar. Não</p><p>estava sintonizado para os rocks em FM-104.</p><p>— É daquela sua fúria inesgotável que mais me lembro — repetiu</p><p>LeBay, com voz macia. — Na escola, ele brigava com todos que</p><p>zombavam de suas roupas ou da maneira como seu cabelo era coitado. Ele</p><p>brigava com qualquer um, se suspeitasse que queria fazê-lo de vítima. Era</p><p>suspenso vezes sem conta. Por fim, saiu da escola e entrou para o Exército.</p><p>"Os anos 20 não foram uma boa época para alguém estar no Exército.</p><p>Não havia dignidade, promoções, divisas e condecorações. Não havia</p><p>nobreza. Ele vagou de base em base, primeiro no Sul, depois no Sudoeste.</p><p>Recebíamos uma carta mais ou menos de três em três meses. Ele</p><p>continuava furioso. Enfurecia-se contra os que chamava de 'bostas'. Tudo</p><p>acontecia por culpa dos 'bostas'. Os bostas não lhe davam a promoção que</p><p>merecia, os bostas tinham cancelado uma licença, os bostas não</p><p>conseguiam achar o próprio traseiro, com as duas mãos e uma lanterna.</p><p>Em duas ocasiões, pelo menos, os bostas o puseram atrás das grades.</p><p>"O Exército o suportou, porque ele era um excelente mecânico,</p><p>conseguia manter rodando os velhos e decrépitos veículos que eram tudo</p><p>quanto o Congresso permitia que tivessem."</p><p>Constrangido, vi-me pensando em Arnie novamente — Arnie, que</p><p>era tão hábil com as mãos.</p><p>LeBay inclinou-se para diante.</p><p>— Mas o talento era apenas outra fonte para a cólera de Rollie, meu</p><p>rapaz. Uma cólera que só terminou quando ele comprou aquele carro, que</p><p>agora é de seu amigo.</p><p>— O que quer dizer?</p><p>LeBay deu uma risadinha seca.</p><p>— Rollie consertou caminhões de comboio do Exército, carros dos</p><p>grandões do Exército, veículos para suprimento de armas do Exército.</p><p>Consertou bulldozers e manteve rodando os automóveis oficiais, com</p><p>cuspo e arame de enfardar. Certa vez, quando um congressista-visitante</p><p>apareceu para visitar Fort Arnold, a oeste do Texas, e teve um problema</p><p>com seu carro, o oficial-comandante de Rollie, que estava louco para</p><p>causar boa impressão, ordenou-lhe que consertasse o luxuoso Bentley do</p><p>sujeito. Oh, claro, recebemos uma carta de quatro páginas sobre aquele</p><p>"bosta" em particular, uma arenga de quatro páginas, destilando o ódio e o</p><p>veneno de Rollie. Era de admirar que as palavras não queimassem o papel.</p><p>"Todos aqueles veículos... e Rollie nunca teve um carro seu, senão</p><p>após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo então, o único que pôde adquirir</p><p>foi um velho Chevrolet, que mal podia correr e estava corroído pela</p><p>ferrugem. Nos anos 20 e 30 mal havia dinheiro suficiente, e durante os</p><p>anos de guerra ele estava ocupado demais, procurando manter-se vivo.</p><p>"Permaneceu na oficina mecânica por todos aqueles anos e consertou</p><p>milhares de veículos para os bostas, sem nunca possuir um, que fosse todo</p><p>seu. Era novamente como estar em Libertyville. Nem mesmo o velho</p><p>Chevrolet conseguia amenizar a sensação ou o velho Hudson Hornet usado</p><p>que ele comprou, um ano depois de casado."</p><p>— Casado?</p><p>— Ele não lhe contou isso, contou? — disse LeBay. — Ficaria</p><p>satisfeito rememorando incessantemente suas experiência no Exército suas</p><p>experiências na guerra e suas intermináveis confrontações com os bostas,</p><p>enquanto você e seu amigo pudessem ouvi-lo, sem pegar no sono... e ele</p><p>com a mão em seu bolso, apalpando-lhe a carteira o tempo todo. Rollie</p><p>não se daria ao trabalho de falar-lhes sobre Verônica ou Rita.</p><p>— Quem foram elas?</p><p>— Verônica foi sua esposa — disse LeBay. — Casaram-se em 1951,</p><p>pouco antes de Rollie partir para a Coréia. Poderia ter ficado</p><p>em Stateside,</p><p>compreenda. Estava casado, a mulher esperava um filho e ele se</p><p>aproximava da meia-idade. No entanto, preferiu ir.</p><p>LeBay contemplou pensativamente o equipamento sem uso do play-</p><p>ground.</p><p>— Foi bigamia, entenda. Em 1951, ele tinha quarenta e quatro anos e</p><p>já era casado. Casado com o Exército. E com os bostas.</p><p>LeBay tornou a calar-se. Seu silêncio tinha algo mórbido.</p><p>— O senhor está bem? — perguntei por fim.</p><p>— Estou — disse ele. — Apenas pensava. Tinha maus pensamentos</p><p>sobre os mortos. — Olhou para mim com serenidade, exceto no tocante</p><p>aos olhos, que pareciam sombrios e magoados. — Compreenda, meu</p><p>rapaz, tudo isso me dói muito. Como disse que se chamava? Não quero</p><p>ficar aqui sentado, contando todas estas tristes e velhas cantigas para</p><p>alguém que não posso chamar pelo primeiro nome. Seria Donald?</p><p>— Dennis — falei. — Escute, Sr. LeBay...</p><p>— Dói mais do que eu poderia imaginar — prosseguiu ele. — No</p><p>entanto, já que começamos, vamos terminar, não? Só vi Verônica duas</p><p>vezes. Ela era da Virgínia Ocidental. Perto de Wheeling. Era o que se</p><p>poderia chamar uma sulista do interior e não muito inteligente. Rollie foi</p><p>capaz de dominá-la e não lhe dava valor, o que parecia ser seu desejo. No</p><p>entanto, creio que ela o amava, pelo menos, até acontecer aquela coisa</p><p>horrível com Rita. Quanto a Rollie, não acredito que se tenha realmente</p><p>casado com uma mulher. Ele se casou com uma espécie de... muro das</p><p>lamentações.</p><p>"As cartas que nos mandava... bem, você deve lembrar que ele deixou</p><p>a escola muito cedo. Aquelas cartas mal escritas significavam um</p><p>tremendo esforço para meu irmão. Eram a sua ponte suspensa, sua novela,</p><p>sua sinfonia, seu grande esforço. Não creio que as escrevesse para livrar-se</p><p>do veneno que tinha no coração. Acho que as escrevia para transmiti-lo.</p><p>"Então, quando teve Verônica, as cartas cessaram. Ele agora contava</p><p>com dois ouvidos permanentes, não precisava mais preocupar-se conosco.</p><p>Suponho que tenha escrito para ela, nos dois anos que ficou na Coréia. Em</p><p>todo esse período, recebi apenas uma, e creio que Márcia recebeu duas.</p><p>Ele não ficou feliz com o nascimento da filha, em começos de 1952; houve</p><p>apenas um comentário azedo sobre ter em casa mais uma boca para</p><p>alimentar e a queixa de que os bostas arrancavam dele um pouco mais."</p><p>— Ele nunca subiu de posto? — perguntei.</p><p>No ano anterior, eu tinha visto parte de um longo seriado para a TV,</p><p>uma daquelas novelas de televisão, chamado A Antiga Águia. No dia</p><p>seguinte, encontrando uma brochura da história no drugstore, comprei-a</p><p>esperando uma boa novela de guerra. Acabei lendo sobre guerra e paz e</p><p>fiquei com algumas idéias novas sobre as Forças Armadas. Uma delas, que</p><p>a velha questão de promoções realmente continuava fluindo, nos tempos</p><p>de guerra. Era-me difícil compreender como LeBay permanecera no</p><p>Exército desde inícios da década de 20, atravessara duas guerras e ainda</p><p>era um reles meganha, quando Ike se tornou presidente.</p><p>LeBay riu.</p><p>— Ele era como Prewitt, em A Um Passo da Eternidade. Quando</p><p>avançava de posto, depois era rebaixado por alguma coisa, insubordinação,</p><p>insolência ou embriaguez. Já lhe disse que ele foi detido? Uma das vezes</p><p>foi quando urinou na terrina do ponche, no Clube dos Oficiais em Fort Dix</p><p>antes de uma reunião. Ele pegou apenas dez dias por este desacato; acho</p><p>que eles amoleceram, acreditando que aquilo não passasse de uma</p><p>brincadeira de bêbado, exatamente como alguns dos próprios oficiais, sem</p><p>dúvida, já tinham feito como membros de associações estudantis... eles</p><p>não faziam, não podiam fazer a menor idéia sobre o ódio e mortal</p><p>desprezo que jaziam por trás daquele gesto. Contudo, imagino que, a essa</p><p>altura, Verônica poderia ter contado a eles.</p><p>Olhei para meu relógio. Nove e quinze da noite. LeBay estivera</p><p>falando por quase uma hora.</p><p>— Meu irmão voltou da Coréia em 1953; foi quando viu a filha pela</p><p>primeira vez. Imagino que a tenha contemplado por um ou dois minutos,</p><p>para em seguida devolvê-la à esposa e ir remendar seu velho Chevrolet</p><p>pelo resto do dia... entediado, Dennis?</p><p>— Não — respondi, e era verdade.</p><p>— Durante todos aqueles anos, a única coisa que Rollie desejava</p><p>realmente era ter um carro novo em folha. Não um Cadillac ou um</p><p>Lincoln; ele não queria nivelar-se à classe superior, aos oficiais, aos</p><p>bostas. Meu irmão queria um Plymouth novo, talvez um Ford ou um</p><p>Dodge.</p><p>"Verônica escrevia de vez em quando, contando que eles passavam a</p><p>maior parte de seus domingos à procura de vendedores de carros, onde</p><p>quer que Rollie estivesse servindo. Ela e o bebê aboletavam-se no velho</p><p>Hornet que meu irmão possuía no momento e Verônica lia pequenos livros</p><p>de histórias para Rita, enquanto Rollie visitava pátios empoeirados, um</p><p>atrás do outro, falando com vendedor após vendedor, discutindo sobre</p><p>compressão e cavalos de força, cabeçotes e relação de engrenagens... Às</p><p>vezes, penso na garotinha crescendo com o fundo musical daquelas</p><p>flâmulas açoitadas pela ventania ardente de meia dúzia de blindados do</p><p>Exército, e não sei se devo rir ou chorar.</p><p>Meus pensamentos voltaram novamente para Arnie.</p><p>— O senhor diria que ele estava obcecado?</p><p>— Sim, eu diria isso. Rollie começou a dar dinheiro a Verônica para</p><p>ela guardar. Além de sua impossibilidade de ser promovido em sua</p><p>carreira além de suboficial, meu irmão tinha um problema com o álcool.</p><p>Não era um alcoólatra, mas mergulhava em bebedeiras periódicas, a cada</p><p>seis ou oito meses. E, terminada a bebedeira, lá se fora o dinheiro que</p><p>conseguira economizar. Nunca tinha certeza de onde o gastara.</p><p>"Supostamente, cabia a Verônica pôr um paradeiro nisso. Era um dos</p><p>motivos pelos quais casara com ela. Iniciada a fase da bebedeira, Rollie</p><p>exigia que ela lhe entregasse o dinheiro. Ameaçou-a com uma faca, certa</p><p>vez, ferindo-lhe a garganta. Fiquei sabendo disso por minha irmã, que</p><p>volta e meia falava com ela ao telefone. Verônica não entregou o dinheiro</p><p>que, naquela época — 1955 — chegava a cerca de oitocentos dólares,</p><p>lembre-se do carro, meu bem', disse ela, com a ponta da faca encostada ao</p><p>pescoço. 'Se gastar o dinheiro em bebida, nunca terá aquele carro novo'."</p><p>— Acho que ela o amava — falei.</p><p>— É possível. Entretanto, não fique com a romântica suposição de</p><p>que o amor de Verônica modificou Rollie de algum modo. A água pode</p><p>furar a pedra, mas somente após centenas de anos. Pessoas são mortais.</p><p>Ele pareceu vacilar, quanto a acrescentar algo mais naquele sentido, e</p><p>decidiu contra. O lapso me pareceu peculiar.</p><p>— De qualquer modo, Rollie nunca as agrediu — disse ele. —</p><p>Lembre-se, ainda, de que ele estava bêbado, quando encostou a faca na</p><p>garganta da esposa. Hoje em dia, há um terrível falatório nas escolas sobre</p><p>drogas, e não sou contra isso, porque acho obsceno pensar em crianças de</p><p>quinze e dezesseis anos andando por aí cheias de droga, mas continuo</p><p>acreditando que o álcool é a mais vulgar, a mais perigosa droga que já se</p><p>inventou... e é legal.</p><p>"Quando meu irmão finalmente deixou o Exército, em 1957,</p><p>Verônica tinha posto de lado pouco mais de mil e duzentos dólares.</p><p>Adicionável a isto, havia uma substancial pensão de invalidez, pelo</p><p>problema que ele ficou nas costas. Rollie moveu céus e terras por essa</p><p>pensão e venceu, segundo disse.</p><p>"Assim, finalmente havia dinheiro. Compraram a casa que você e seu</p><p>amigo visitaram; mas antes mesmo que fosse considerada a idéia de uma</p><p>moradia, naturalmente havia o carro. O carro era sempre primordial. As</p><p>visitas aos vendedores de automóveis atingiram o auge. Por fim, ele</p><p>escolheu Christine. Recebi uma longa carta a respeito. Era um cupê</p><p>esporte Fury, ele me forneceu todos os detalhes e números em sua carta.</p><p>Não me lembro deles, mas garanto como seu amigo poderia citar as</p><p>estatísticas vitais de Christine, ponto por ponto."</p><p>— Suas medidas — falei.</p><p>LeBay sorriu, sem o menor humor.</p><p>— Exato, suas medidas. Lembro-me de Rollie ter escrito que o preço</p><p>afixado era pouco abaixo de 3.000 dólares, mas ele "pechinchou", segundo</p><p>disse, até chegar a 2.100 com o vendedor. Fez a encomenda, pagou dez por</p><p>cento como entrada e, quando o carro chegou, saldou o</p><p>resto da dívida em</p><p>dinheiro vivo... notas de dez e de vinte dólares.</p><p>"No ano seguinte, Rita, que então estava com seis anos, morreu</p><p>asfixiada." Saltei na cadeira e quase a derrubei. Aquela voz macia de</p><p>professor era acariciante e eu estava cansado, quase chegara a cochilar. A</p><p>última frase fora como um balde de água fria em meu rosto.</p><p>— Sim, foi exatamente isso — disse ele, vendo meu ar assustado e</p><p>questionador. — Eles tinham estado "motorando" o dia inteiro. Isso havia</p><p>substituído as expedições à caça de carros. "Motorando." Foi a palavra que</p><p>ele escolheu para tais excursões. Tirara-a de uma daquelas músicas de</p><p>rock and roll que estava sempre escutando. Todos os domingos, os três</p><p>saíam "motorando". Havia bolsas para lixo nos assentos traseiro e</p><p>dianteiro. A garota não podia deixar nada cair no piso. Não podia fazer</p><p>nenhuma sujeira. Ela aprendera bem a lição. Ela...</p><p>LeBay recaiu novamente naquele pensativo e peculiar silêncio, para</p><p>então prosseguir.</p><p>— Rollie mantinha os cinzeiros limpos. Sempre. Era um fumante</p><p>inveterado, mas batia a cinza do cigarro fora da janela, em vez de dentro</p><p>do cinzeiro. Quando terminava de fumar, jogava o toco de cigarro também</p><p>pela janela. Se tivesse alguém com ele que usasse o cinzeiro, assim que</p><p>terminava a corrida retirava o cinzeiro e o limpava com um lenço de</p><p>papel. Lavava o carro duas vezes por semana e aplicava polidor duas vezes</p><p>ao ano. Ele próprio o consertava, alugando tempo em uma garagem local.</p><p>Perguntei-me se a garagem não seria a Darnell's.</p><p>— Naquele particular domingo, pararam em um stand de beira de</p><p>estrada para alguns hambúrgueres, a caminho de casa. Sabe como é, não</p><p>havia nenhum McDonald's naqueles tempos, apenas stands à beira da</p><p>estrada. E o que aconteceu foi... bastante simples, imagino...</p><p>Novamente aquele silêncio, como se ele procurasse decidir sobre o</p><p>que devia contar-me ou como separar de suas especulações o que</p><p>realmente sabia.</p><p>— Ela se engasgou com um pedaço de carne — disse ele por fim. —</p><p>Quando a menina começou a sufocar-se e levou as mãos à garganta, Rollie</p><p>parou o carro e desceu com ela. Então, deitou-a de costas, tentando extrair</p><p>o que a sufocava. Claro, hoje existe um novo método, a Manobra</p><p>Heimlich, que funciona bastante bem, em situações semelhantes. De fato,</p><p>uma jovem estudante para professora salvou um menino que se asfixiava</p><p>na cantina de minha escola, ainda o ano passado, empregando a Manobra</p><p>Heimlich. Só que, naquele tempo...</p><p>"Minha sobrinha morreu à beira da estrada. Acho que foi uma</p><p>horrenda, assustadora maneira de morrer."</p><p>Sua voz retomara aquela sonolenta cadência professoral, porém eu</p><p>não sentia mais sono. Em absoluto.</p><p>— Ele tentou salvá-la. Acredito nisso piamente. Como também</p><p>acredito que foi somente a má sorte que a fez morrer. Rollie estivera em</p><p>um ambiente desumano por muito tempo e não creio que amasse</p><p>demasiadamente a filha, se é que a amava. Contudo, em questões mortais,</p><p>algumas vezes a falta de amor pode ser uma graça salvadora. Por vezes, o</p><p>necessário é apenas a desumanidade.</p><p>— Mas não daquela vez — falei.</p><p>— Por fim, ele a virou de cabeça para baixo, segurando-a pelos</p><p>tornozelos, com isto esperando fazê-la vomitar. Acho que tentaria uma</p><p>traqueotomia com seu canivete, se tivesse a mais leve idéia de como agir.</p><p>Só que, evidentemente, ele não sabia como. Ela morreu.</p><p>"Márcia, o marido e os filhos foram ao funeral. Eu também. Aquela</p><p>foi nossa última reunião familiar. Na ocasião, pensei que ele teria vendido</p><p>o carro. Estranhamente, fiquei um tanto desapontado. Aquele carro</p><p>figurara tanto nas cartas de Verônica e nas poucas escritas por Rollie, que</p><p>eu já o considerava quase um membro da família deles. Entretanto, Rollie</p><p>não o vendera. Foram nele à Igreja Metodista de Libertyville, e Christine</p><p>estava polida... reluzente... e odiosa. Estava odiosa. — LeBay se virou e</p><p>olhou para mim. — Pode acreditar nisso, Dennis?"</p><p>Tive que engolir em seco, antes de poder responder.</p><p>— Sim, posso — respondi. LeBay assentiu soturnamente.</p><p>— Verônica estava no assento do passageiro, como uma boneca de</p><p>cera. O que quer que ela tivesse sido, o que quer que houvesse em seu</p><p>íntimo, desaparecera. Rollie tivera o carro, ela tivera a filha. Não se</p><p>limitou a chorar a perda. Morreu.</p><p>Fiquei quieto, tentando imaginar — procurando pensar no que faria,</p><p>se fosse eu. Minha filha começa a engasgar e sufoca no banco traseiro de</p><p>meu carro, depois morre à beira da estrada. Eu me desfaria daquele carro?</p><p>Por quê? Não havia sido o carro que a matara, mas sim aquilo que a</p><p>sufocara, um pedaço de hambúrguer e a bebida, obstruindo sua traquéia.</p><p>Então, por que desfazer-me do carro? Restava apenas a leve questão de</p><p>que não poderia mais olhar para ele, nem mesmo pensar nele, sem horror e</p><p>tristeza. Ei, cara, um urso se queixa da floresta?</p><p>— O senhor o interrogou a respeito?</p><p>— Claro que sim. Márcia estava comigo. Foi depois da cerimônia. O</p><p>irmão de Verônica viera de Glory, na Virgínia Ocidental, e a levou para</p><p>casa, após o serviço fúnebre à beira da sepultura, ela estava em uma</p><p>espécie de profundo torpor, afinal.</p><p>"Ficamos sozinhos com ele, eu e Márcia. Aquela foi a verdadeira</p><p>reunião. Perguntei-lhe se pretendia desfazer-se do carro. Ficara</p><p>estacionado logo atrás do carro fúnebre que trouxera sua filha para o</p><p>cemitério, o mesmo cemitério em que Rollie foi sepultado hoje. Era</p><p>vermelho e branco... a Chrysler nunca ofereceu o Plymouth Fury 1958</p><p>naquelas cores; Rollie o conseguira com tal pintura, por encomenda.</p><p>Estávamos a uns quinze metros dele e tive uma estranha sensação... a mais</p><p>estranha ânsia... de afastar-me ainda mais, como se ele pudesse ouvir-</p><p>nos."</p><p>— O que disse o senhor?</p><p>— Perguntei-lhe se ia vender o carro. Em seu rosto surgiu aquela</p><p>expressão dura e obstinada que eu conhecia tão bem, desde os tempos de</p><p>criança. Era a mesma expressão de quando me atirara contra o gradil</p><p>pontiagudo. A expressão que mostrara ao chamar meu pai de beberrão,</p><p>mesmo depois dele lhe ter feito o nariz sangrar. Rollie respondeu, 'Eu seria</p><p>louco se o vendesse, George. Christine só tem um ano de uso e rodou</p><p>somente 11.000 milhas. Sabe que nunca se consegue o preço adequado em</p><p>uma venda, a menos que um carro tenha mais de três anos'.</p><p>"Respondi: 'Se isto significa uma questão de dinheiro para você,</p><p>Rollie, alguém roubou o que restou de seu coração e colocou uma pedra no</p><p>lugar. Quer que sua esposa veja esse carro todo dia? Que ande nele? Deus</p><p>do céu, homem!'</p><p>"Aquela expressão não se modificou. Não, até ele contemplar o</p><p>automóvel, estacionado ao sol... junto ao carro funerário. Foi o único</p><p>momento em que suas feições se suavizaram. Recordo que me perguntei se</p><p>ele algum dia olhara para Rita daquele jeito. Não creio que o tenha feito.</p><p>Não estava nele ser assim."</p><p>LeBay ficou calado por um instante, antes de continuar.</p><p>— Márcia disse para ele a mesma coisa. Sempre o temera, mas</p><p>naquele dia estava mais fora de si do que amedrontada... havia recebido as</p><p>cartas de Verônica, lembre-se, sabia o quanto a cunhada adorava a filha.</p><p>Disse para ele que, quando alguém morre, queima-se o seu colchão, doam-</p><p>se suas roupas ao Exército da Salvação, seja como for, aquilo fica</p><p>liquidado de algum modo, para que os vivos possam seguir em frente. Ela</p><p>lhe disse que Verônica nunca mais poderia seguir em frente, enquanto o</p><p>carro onde a filha morrera continuasse na garagem.</p><p>"Com aquele seu jeito sarcástico e hediondo, Rollie perguntou se</p><p>queria que encharcasse seu carro de gasolina e acendesse um fósforo, só</p><p>porque sua filha morrera sufocada. Minha irmã começou a chorar e</p><p>respondeu que era uma excelente idéia. Por fim, tomei-a pelo braço e a</p><p>levei dali. Não houve mais diálogo com Rollie, naquela época ou mais</p><p>tarde. O carro era dele e ele ficaria insistindo em conservá-lo durante três</p><p>anos, antes de poder vendê-lo, falaria sobre as milhas rodadas até ficar</p><p>roxo, mas o simples fato acima de tudo era que pretendia mantê-lo, porque</p><p>assim queria.</p><p>"Márcia e os seus voltaram de ônibus para Denver e, que me conste,</p><p>nunca mais tornou a ver Rollie e nem mesmo escreveu-lhe um bilhete.</p><p>Não foi ao sepultamento</p><p>e</p><p>pode fazer a estrada ferver, quando em primeira. O carro...</p><p>— Não — respondeu Arnie, tranqüilo. — Só tirei minha carteira de</p><p>motorista esta primavera. LeBay dedicou-me um rápido, mas astuto olhar,</p><p>para em seguida voltar a concentrar inteiramente a atenção em seu alvo</p><p>principal. Colocou as mãos no final das costas e estirou-se. Captei uma</p><p>azeda onda de suor rançoso.</p><p>— O Exército me deixou com um problema nas costas — disse ele.</p><p>— Invalidez total. Os médicos nunca conseguiram endireitar-me. Se</p><p>perguntarem a vocês o que há de errado no mundo, rapazes, digam que são</p><p>três coisas: médicos, comunista e radicais que gostam de negros. Dos três,</p><p>os comunistas são os piores, seguidos de perto pelos médicos. E se</p><p>perguntarem quem disse isto, respondam que foi Roland D. LeBay. Sim,</p><p>senhor!</p><p>Ele tocou o velho e arranhado capô do Plymouth, com uma espécie</p><p>de admirado amor.</p><p>— Este aqui foi o melhor carro que já tive. Comprei em setembro de</p><p>1957. Naquele tempo, era em setembro que se conseguia o novo modelo</p><p>do ano. Durante todo o verão, exibiam fotos de carros debaixo de lonas e</p><p>encerados, até a gente ficar morrendo para saber como eles eram, por</p><p>baixo daquilo. Hoje é diferente. — Sua voz ressumava irritação, pelos</p><p>tempos degradantes que vivera. — Uma máquina novinha em folha.</p><p>Cheirava como carro saído da fábrica e, para mim, este é o melhor cheiro</p><p>do mundo. — Fez uma pausa para considerar. — Exceto, talvez, pelo de</p><p>uma cona.</p><p>Olhei para Arnie, mordendo furiosamente o interior das bochechas,</p><p>para não estourar de rir de tudo aquilo. Arnie olhou para mim, surpreso. O</p><p>velho nem pareceu notar-nos; estava isolado em seu próprio planeta.</p><p>— Vesti cáqui trinta e quatro anos — contou LeBay, ainda tocando o</p><p>capô do carro. — Entrei aos dezessete, em 1923. Comi poeira no Texas e</p><p>vi piolhos do tamanho de lagostas, em algumas casas das putas de</p><p>Nogales. Vi homens com as tripas saindo pelos ouvidos, no tempo da</p><p>guerra. Foi na França que vi isso. As tripas deles saíam pelos ouvidos.</p><p>Acredita nisso, filho?</p><p>— Sim, senhor — respondeu Arnie.</p><p>Duvido que tivesse ouvido uma só palavra do que LeBay dizia.</p><p>Equilibrava-se ora em um pé, ora no outro, como se estivesse apertado</p><p>para ir ao banheiro.</p><p>— Bem, e quanto ao carro... — insistiu Arnie.</p><p>— Você está na Universidade? — clamou LeBay, subitamente. — Lá</p><p>em Horlicks?</p><p>— Não, senhor. Estou no Ginásio de Libertyville.</p><p>— Muito bom — disse LeBay, taciturno. — Fique longe de</p><p>universidades. Estão cheias de gente que gosta de negros, gente que quer</p><p>entregar o Canal do Panamá. "Cérebros", é o nome que dão a eles. Pois eu</p><p>digo que são "cacholas de merda".</p><p>Olhou amorosamente para o carro em cima do pneu arriado, a pintura</p><p>dissolvendo-se em ferrugem, banhado pelo último sol da tarde.</p><p>— Machuquei as costas na primavera de 57 — disse ele. — O</p><p>Exército já estava falindo naquele tempo. Saí na hora exata. Voltei para</p><p>Libertyville. Torrei grana. Aproveitei meu tempo. Então, entrei na Norman</p><p>Cobb, concessionária Plymouth, onde hoje fica o boliche, lá perto da Main</p><p>Street, e encomendei este carro aqui. Disse para eles: quero vermelho e</p><p>branco, modelo do próximo ano. Vermelho como um carro de bombeiros</p><p>por dentro. Eles conseguiram. Quando recebi a máquina, tinha um total de</p><p>seis milhas no odômetro. Sim, senhor.</p><p>Ele cuspiu.</p><p>Olhei para o odômetro, por cima do ombro de Arnie. O vidro estava</p><p>turvo, mas pude ler o estrago assim mesmo: 97.432. E seis décimos.</p><p>Caramba!</p><p>— Se gosta tanto do carro, por que quer vendê-lo? — perguntei. Ele</p><p>me dirigiu um olhar leitoso, bastante aterrador.</p><p>— Está querendo bancar o sabido pra cima de mim, filho? Não</p><p>respondi, mas tampouco fugi com o olhar.</p><p>Após alguns momentos daquele duelo olho-a-olho (o que Arnie</p><p>ignorou por completo; deslizava lentamente uma amorosa mão por uma</p><p>das aletas dorsais), ele disse:</p><p>— Não posso mais dirigir. Minhas costas pioraram muito. E os olhos</p><p>estão indo pelo mesmo caminho.</p><p>Entendi de repente — ou acho que entendi. Se ele nos fornecera as</p><p>datas exatas, teria setenta e um anos. E, aos setenta, neste Estado é</p><p>obrigatório o exame de vista a cada ano, para que renovem a licença de</p><p>motorista. LeBay devia ter falhado no exame de vista ou tinha medo de</p><p>falhar, o que vinha a dar no mesmo. Antes de submeter-se a tal</p><p>indignidade, resolveu colocar o Plymouth à venda. E, depois disso, o carro</p><p>envelhecera rapidamente.</p><p>— Quanto quer por ele? — Arnie tornou a perguntar.</p><p>Ele mal podia esperar para ser degolado. LeBay virou o rosto para o</p><p>céu, como se o estudasse para saber se choveria. Depois baixou os olhos</p><p>para Arnie, oferecendo-lhe um largo e gentil sorriso, para mim demasiado</p><p>semelhante ao anterior sorriso astuto que me dirigira.</p><p>— Estou pedindo trezentos — disse —, mas você me parece um bom</p><p>rapaz. Deixo por duzentos e cinqüenta para você.</p><p>— Deus do céu! — exclamei.</p><p>Não obstante, ele sabia quem era o seu pato, como sabia exatamente</p><p>aumentar a barreira entre nós. Nas palavras de meu avô, LeBay não tinha</p><p>caído ontem de um caminhão de feno.</p><p>— Está bem — disse ele, bruscamente. — Se quiser, é assim. Tenho</p><p>meu programa das quatro e meia para ver. Beira da Noite. Nunca perco, se</p><p>depender de mim. Tive um bom papo com vocês, rapazes. Adeus.</p><p>Arnie dirigiu-me um olhar tão dorido e raivoso que recuei um passo.</p><p>Depois foi atrás do velho e o segurou pelo cotovelo. Conversaram. Não</p><p>ouvi tudo, porém vi mais do que suficiente. O orgulho do velho ficara</p><p>ferido. Arnie estava ansioso e se desculpando. O velho apenas queria fazer</p><p>Arnie entender que não suportava ver insultado o carro que o conduzira</p><p>através de seus anos dourados. Arnie concordou. Pouco a pouco, o velho</p><p>permitiu que ele o reconduzisse de volta. E, de novo, senti algo</p><p>conscientemente amedrontador em relação a ele... era como se um frio</p><p>vento de novembro pudesse pensar. Não consigo palavras melhores para</p><p>expressá-lo.</p><p>— Se ele disser mais uma só palavra, lavo as mãos disto tudo —</p><p>disse LeBay, apontando um polegar calejado e chifrudo para mim.</p><p>— Ele não dirá, ele não dirá — assegurou Arnie, apressadamente. —</p><p>Trezentos, foi o que disse?</p><p>— Sim, acho que foi...</p><p>— O preço combinado foi de duzentos e cinqüenta! — falei bem alto.</p><p>Arnie pareceu aflito, temendo que o velho se fosse de novo, mas</p><p>LeBay não queria arriscar-se. O peixe agora estava quase fora d'água.</p><p>— Sim, acho que duzentos e cinqüenta está bem — concedeu LeBay.</p><p>Tornou a olhar para mim e vi que estávamos de acordo — ele não ia</p><p>comigo e nem eu com ele. Para meu crescente horror, Arnie puxou a</p><p>carteira e começou a manusear seu interior. Houve silêncio entre nós três.</p><p>LeBay era um mero espectador. Espiei para um garotinho que tentava</p><p>matar-se em um skate verde-vômito. Um cão latiu em algum lugar. Duas</p><p>garotas com ar de estarem na oitava série passaram rindo muito e</p><p>apertando uma pilha de livros contra os bustos em formação. Restava-me</p><p>apenas uma esperança de que Arnie se visse fora daquilo: faltava um dia</p><p>para o pagamento. Com tempo, até mesmo vinte e quatro horas, aquela</p><p>febre selvagem passaria. Arnie começava a recordar-me Toad, Toad Hall.</p><p>Quando tornei a olhar para eles, Arnie e LeBay fitavam duas notas de</p><p>cinco e seis de um dólar — aparentemente, tudo que ele tinha na carteira.</p><p>— Que tal um cheque? — sugeriu Arnie. LeBay sorriu friamente e</p><p>nada disse.</p><p>— É um cheque bom — protestou Arnie.</p><p>Claro que era. Havíamos passado todo o verão trabalhando para</p><p>Carson Brothers, na extensão da I-376, aquela que, na opinião dos nativos</p><p>da área de Pittsburgh, jamais seria finalmente terminada. Às vezes, Arnie</p><p>dizia que a Penn-DOT tinha começado a apostar no trabalho da I-376</p><p>pouco depois que a Guerra Civil terminara. Não que qualquer um de nós</p><p>tivesse alguma queixa; muitos jovens trabalharam naquele verão em troca</p><p>de salários de escravos, ou não trabalharam em absoluto. Estávamos</p><p>fazendo um bom dinheiro, inclusive em hora extra. Brad Jeffries, o</p><p>capataz, se mostrara francamente duvidoso em aceitar um garoto como</p><p>Arnie, mas por fim concordara que ele podia ser usado como sinaleiro; a</p><p>jovem que planejara contratar ficara grávida e fugira</p><p>de Verônica."</p><p>A esposa dele. Primeiro a filha, depois a esposa. De certa forma, eu</p><p>sabia que fora exatamente assim. Bangue-bangue. Uma espécie de</p><p>entorpecimento me subiu das pernas até a boca do estômago.</p><p>— Ela morreu seis meses depois. Em janeiro de 1959.</p><p>— Mas nada tinha a ver com o carro — falei. — Nada a ver com o</p><p>carro, certo?</p><p>— Teve tudo a ver com o carro — disse ele, suavemente.</p><p>Eu não queria ouvir mais aquilo, pensei. Só que, naturalmente, acabei</p><p>ouvindo. Meu amigo era agora o dono daquele carro e, por causa do carro,</p><p>algo em sua vida ganhara proporções descomunais, algo que jamais</p><p>deveria ter acontecido.</p><p>— Depois que Rita morreu, Verônica entrou em depressão.</p><p>Simplesmente, nunca se recuperou disso. Tinha alguns amigos em</p><p>Libertyville, e eles tentaram ajudá-la... ajudá-la a encontrar seu caminho</p><p>novamente, como se diz. Contudo, ela não conseguiu encontrá-lo. De</p><p>maneira alguma.</p><p>"Fora isso, tudo ia muito bem. Pela primeira vez na vida, meu irmão</p><p>tinha bastante dinheiro. Tinha sua pensão do Exército, sua pensão por</p><p>incapacidade física, e conseguira um emprego de vigia noturno, na fábrica</p><p>de pneus lá para o lado oeste da cidade. Fui de carro até lá, depois do</p><p>enterro, porém não existe mais."</p><p>— Ela foi à falência, faz uns doze anos — comentei. — Eu ainda era</p><p>criança. No lugar, existe hoje uma lanchonete de comida chinesa.</p><p>— Eles estavam saldando as prestações da casa, na proporção de dois</p><p>pagamentos mensais. E, naturalmente, agora não tinham mais nenhuma</p><p>filhinha com que se preocupar. Para Verônica, no entanto, nunca houve a</p><p>mínima possibilidade, o menor impulso para a recuperação.</p><p>"Ela se dispôs ao suicídio com incrível sangue-frio, por tudo o que</p><p>consegui descobrir. Se houvesse manuais para aspirantes ao suicídio, ela</p><p>devia ser incluída, como exemplo a ser imitado. Foi à loja Western Auto,</p><p>aqui na cidade, a mesma onde comprei minha primeira bicicleta, há</p><p>muitos e muitos anos, e comprou seis metros de mangueira de borracha.</p><p>Adaptou uma extremidade ao cano de descarga de Christine e colocou a</p><p>outra em uma das janelas traseiras. Nunca tirara carteira de motorista, mas</p><p>sabia como ligar o motor. De fato, era tudo quanto precisava saber."</p><p>Apertei os lábios, molhei-os com a ponta da língua, e ouvi minha</p><p>voz, pouco mais que um roufenho lamento:</p><p>— Acho que vou querer agora aquela soda.</p><p>— Talvez fosse melhor trazer uma para mim também — disse ele. —</p><p>A soda me mantém acordado, sempre foi assim, mas acho que, de qualquer</p><p>modo, passarei acordado a maior parte desta noite.</p><p>Desconfiei que eu também. Fui apanhar as sodas no escritório do</p><p>hotel e, quando voltava, parei a meio caminho, no pátio de</p><p>estacionamento. Ele era apenas uma sombra mais forte diante de sua</p><p>unidade no hotel, as meias brancas reluzindo como pequenos fantasmas.</p><p>Pensei: Talvez o carro seja amaldiçoado. Talvez seja isso. Parece uma</p><p>perfeita história de fantasmas. Há um poste indicador mais adiante...</p><p>próxima parada, a Zona Crepuscular!</p><p>Bem, era ridículo, não?</p><p>Claro que era. Recomecei a caminhar. Nem carros nem pessoas</p><p>podiam ser amaldiçoados, isso era coisa de filmes de terror, muito</p><p>interessante para uma noite de sábado no drive-in, porém nada tinha em</p><p>comum, absolutamente nada, com os fatos corriqueiros de vida diária, que</p><p>formam a realidade.</p><p>Entreguei a ele sua lata de soda e ouvi o resto da história, a qual</p><p>poderia ser resumida em uma linha: e ele viveu infeliz para sempre. Agora</p><p>sozinho, Roland D. LeBay conservara sua pequena casa e o terreno, como</p><p>conservara o Plymouth 1958. Em 1965, pendurara seu quepe de vigia e o</p><p>relógio de ponto de trabalho. Mais ou menos na mesma época, abdicara de</p><p>seus penosos esforços para manter Christine parecendo e rodando como</p><p>nova, deixara-a desandar, da mesma forma que alguém pode deixar um</p><p>relógio parar.</p><p>— Quer dizer que o carro ficou estacionado lá fora? — perguntei. —</p><p>Desde 1965? Durante treze anos?</p><p>— Não. Ele o deixou na garagem, claro — disse LeBay. — Os</p><p>vizinhos jamais admitiram um carro apenas se deteriorando, no gramado</p><p>de alguém. No campo, talvez, mas não em Suburbia, EUA.</p><p>— Certo, mas estava lá fora, quando nós...</p><p>— Eu sei. Ele o colocou no gramado com um aviso À VENDA,</p><p>pregado na janela. Fiz perguntas a respeito. Estava curioso, então</p><p>perguntei. Na Legião. Em sua maioria, os antigos companheiros tinham</p><p>perdido o contato com Rollie, mas um deles contou que vira o carro no</p><p>gramado, pela primeira vez, em maio deste ano.</p><p>Eu ia dizer algo, mas me calei. Uma terrível idéia me viera à cabeça,</p><p>uma idéia que consistia simplesmente nisto: Era muito conveniente.</p><p>Conveniente demais. Christine ficara naquela garagem escura durante anos</p><p>— quatro, oito, doze, talvez mais. Então — meses antes de eu e Arnie</p><p>passarmos por lá, de Arnie vê-lo — Roland LeBay subitamente o tirara da</p><p>garagem e pregara nele um aviso de À VENDA.</p><p>Mais tarde — muito mais tarde — consultei exemplares atrasados</p><p>dos jornais de Pittsburgh e do Keystone, o jornal de Libertyville. LeBay</p><p>nunca anunciara o Fury, pelo menos nos jornais, que geralmente é onde se</p><p>anuncia um carro que se quer vender. Ele apenas o deixou em sua rua</p><p>suburbana — nem mesmo era uma rua principal — e esperou que o</p><p>comprador aparecesse.</p><p>Naquele momento, não entendi inteiramente o resto do pensamento</p><p>— pelo menos, não de qualquer modo lógico e racional —, mas já tivera</p><p>suficiente daquilo, para sentir uma repetição daquela fria, perturbadora</p><p>sensação de medo. Era como se ele soubesse que um comprador estava a</p><p>caminho. Se não em maio, então em junho. Ou julho. Ou agosto. De algum</p><p>modo, em breve.</p><p>Não, tal pensamento não me viera de maneira lógica ou racional. Em</p><p>vez disso, o que imaginei foi um quadro inteiramente visceral: uma planta</p><p>carnívora, à beira de um pântano, com suas verdes mandíbulas abertas,</p><p>esperando que algum inseto pousasse nelas.</p><p>O inseto exato.</p><p>— Recordo ter pensado que ele talvez desistira temendo não ter</p><p>chance de ser aprovado no exame de motorista — falei por fim. — Quando</p><p>o sujeito envelhece, eles exigem que faça um ou dois exames por ano. A</p><p>renovação da licença deixa de ser automática.</p><p>LeBay assentiu.</p><p>— Isto me parece bem próprio de Rollie — comentou. — Contudo...</p><p>— O quê?</p><p>— Li em algum lugar, e não me lembro quem disse ou escreveu isso,</p><p>que existem "épocas" na existência humana. Chegada a "época da máquina</p><p>a vapor", uns doze homens inventaram máquinas a vapor. Talvez apenas</p><p>um deles tenha conseguido a patente ou o crédito nos livros de História,</p><p>porém, de repente, lá estavam todas aquelas pessoas, trabalhando em uma</p><p>única idéia. Como explicar o fato? Apenas que é a época da máquina a</p><p>vapor.</p><p>LeBay tomou um gole de sua soda e olhou para o céu.</p><p>— Chega a Guerra Civil e então, imediatamente, é "época do navio</p><p>blindado de ferro". Depois vem a "época da metralhadora". A seguinte que</p><p>conhecemos é a "época da eletricidade", seguida pela "época do sem-fio".</p><p>Finalmente, a "época da bomba atômica" Como se todas essas idéias não</p><p>viessem de indivíduos, mas de alguma grande onda de inteligência, que</p><p>flui permanentemente... alguma onda de inteligência que reside fora da</p><p>humanidade.</p><p>Ele me encarou.</p><p>— Essa idéia me assusta e tenho pensado muito nisso, Dennis. Parece</p><p>haver qualquer coisa... bem, decididamente não-cristã a respeito.</p><p>— E, para seu irmão, havia a "época de vender Christine"?</p><p>— É possível. No Eclesiastes, diz que há um tempo para tudo: tempo</p><p>para plantar e tempo para colher, tempo para a guerra e tempo para a paz,</p><p>tempo de abandonar o estilingue e tempo de juntar pedras. Um negativo</p><p>para cada positivo. Portanto, se houve uma "época de Christine" na vida de</p><p>Rollie, deve ter havido também uma época de abandonar Christine.</p><p>"Se foi assim, ele deve ter sabido. Rollie era um animal, e os animais</p><p>ouvem perfeitamente seus instintos.</p><p>"É ainda possível que ele finalmente se cansasse dela", concluiu</p><p>LeBay.</p><p>Concordei que podia ser isso, principalmente porque me sentia</p><p>ansioso para encerrar o assunto, embora a explicação não me deixasse</p><p>plenamente satisfeito. George LeBay não tinha visto aquele carro, no dia</p><p>em que Arnie</p><p>gritara para eu voltar atrás. Contudo, eu o vira. O 58 não</p><p>parecia um carro que estivera repousando tranqüilamente em uma</p><p>garagem. Estava sujo de poeira e amassado, com o pára-brisa rachado, um</p><p>pára-choque entortado. Parecia um cadáver, que tivesse sido desenterrado</p><p>e deixado apodrecer ao sol.</p><p>Pensei em Verônica LeBay e estremeci.</p><p>Como se lesse meus pensamentos — parte deles, pelo menos —,</p><p>LeBay disse:</p><p>— Pouco sei a respeito de como meu irmão viveu ou se sentiu</p><p>durante seus últimos anos de vida, porém estou certo de uma coisa,</p><p>Dennis: quando ele achou, em 1965 ou seja lá quando foi, que era chegado</p><p>o momento de abandonar o carro, ele o abandonou. E quando achou que</p><p>era a hora de colocá-lo à venda, ele o colocou à venda.</p><p>LeBay fez uma pausa.</p><p>— Penso que nada mais tenho a lhe dizer... exceto quanto a acreditar,</p><p>sinceramente, que seu amigo seria mais feliz desfazendo-se daquele carro.</p><p>Olhei bem para ele, o seu amigo. No presente momento, não me pareceu</p><p>um jovem particularmente feliz. Estarei enganado?</p><p>Considerei a pergunta cuidadosamente. Não, felicidade não era e</p><p>nunca fora algo que se aplicasse a Arnie. No entanto, ele pelo menos</p><p>parecera contente, até ter começado a coisa com o Plymouth. Antes, era</p><p>como se... tivesse alcançado um modus vivendi com a vida. Não era um</p><p>cara completamente feliz, mas dava para o gasto.</p><p>— Não — respondi. — Não se enganou.</p><p>— Não creio que o carro de meu irmão o faça feliz. Pelo contrário,</p><p>penso exatamente o oposto. — E, como se tivesse lido meus pensamentos</p><p>alguns minutos antes, ele prosseguiu: — Não acredito em maldições, é</p><p>bom que saiba. Muito menos em fantasmas ou qualquer coisa</p><p>precisamente sobrenatural. Entretanto, acredito que emoções e eventos</p><p>possam ter uma certa... prolongada ressonância. Talvez as emoções</p><p>possam comunicar-se entre si, sob determinadas circunstâncias, caso tais</p><p>circunstância sejam suficientemente peculiares... da maneira como uma</p><p>caixa de leite adquire o sabor de certos alimentos muito condimentados,</p><p>que foram deixados destampados na geladeira. Bem, pode ser apenas uma</p><p>fantasia ridícula de minha parte. Talvez fosse o caso de eu me sentir</p><p>melhor, sabendo que o carro em que minha sobrinha foi asfixiada e onde</p><p>minha cunhada suicidou-se tivesse sido prensado em um cubo de metal</p><p>sem valor. Talvez tudo quanto eu sinta seja uma sensação de decoro</p><p>ultrajado.</p><p>— Sr. LeBay, o senhor disse que contratou alguém para cuidar da</p><p>casa de seu irmão, até que ela seja vendida. É verdade?</p><p>Ele se ergueu ligeiramente no assento.</p><p>— Não, não é. Menti no impulso do momento. Não gostei da idéia</p><p>daquele carro de volta àquela garagem... como se houvesse reencontrado o</p><p>caminho de casa. Se existem emoções e sentimentos que permanecem</p><p>vivos, eles estarão lá, assim como na própria Christine. — Então,</p><p>rapidamente, ele se emendou: — No próprio carro.</p><p>Não muito tempo depois, me despedi e segui meus faróis para casa,</p><p>através da noite, refletindo em tudo quanto LeBay me dissera. Perguntei-</p><p>me se, para Arnie, faria alguma diferença contar-lhe que uma pessoa</p><p>sofrera um acidente mortal em seu carro e outra, realmente, morrera</p><p>dentro dele. Eu sabia muito bem que não adiantava; à sua maneira, Arnie</p><p>podia ser tão obstinado quanto o próprio Roland LeBay. A encantadora</p><p>cena com seus pais, a respeito do carro, demonstrara isso perfeitamente. O</p><p>fato de que ele continuava seguindo o curso de Mecânica de Motores, no</p><p>Ginásio de Libertyville, indicava a mesma coisa.</p><p>Pensei em LeBay dizendo: Não gostei da idéia daquele carro de</p><p>volta àquela garagem... como se houvesse reencontrado o caminho de</p><p>casa.</p><p>Ele também dissera que o irmão levara o carro a algum lugar, a fim</p><p>de consertá-lo. Atualmente, existia em Libertyville apenas a Will</p><p>Darnell's, como garagem faça-você-mesmo. Poderia ter havido outra, nos</p><p>anos 50, mas eu não acreditava. No fundo, achava que Arnie estava</p><p>consertando Christine no lugar em que já tinha sido consertada antes.</p><p>Tinha sido. Essa era a frase correta. Devido à briga com Buddy</p><p>Repperton, Arnie receava deixar o carro lá por mais tempo. Desta forma,</p><p>era possível que aquela via para o passado de Christine também estivesse</p><p>bloqueada.</p><p>E, naturalmente, não existem maldições. Mesmo a idéia de LeBay,</p><p>sobre emoções que se prolongam, era completamente absurda. Ele próprio</p><p>nem devia acreditar nisso. Exibira-me uma antiga cicatriz e usara a</p><p>palavra vingança. Sem dúvida, aquilo era bem mais próximo da verdade</p><p>do que qualquer falsa tolice sobrenatural. Sem dúvida.</p><p>Era isso. Eu tinha dezessete anos, iria para a universidade no ano</p><p>seguinte e não acreditava em coisas tais como maldições e emoções que</p><p>perduram, azedando o leite derramado dos sonhos. De modo algum</p><p>acreditava no poder do passado em estender suas horrendas mãos mortas</p><p>para os vivos.</p><p>Entretanto, agora sou um pouco mais velho.</p><p>Mais Tarde, Naquela Noite</p><p>Quando eu estava motorando na montanha</p><p>Vi Maybelline em um Cupê de Ville,</p><p>Um Cadillac, disparando estrada afora,</p><p>Mas nada ultrapassava meu Ford V8...</p><p>— Chuck Berry</p><p>Mamãe e Elaine já tinham ido dormir, porém papai estava acordado,</p><p>assistindo ao noticiário das 23 horas na TV.</p><p>— Por onde andou, Dennis? — perguntou.</p><p>— Jogando boliche — respondi.</p><p>A mentira veio natural e instintivamente a meus lábios. Não queria</p><p>que papai soubesse de nada daquilo. Embora fosse peculiar, não o era o</p><p>bastante para ser mais do que moderadamente interessante. Pelo menos,</p><p>foi assim que racionalizei.</p><p>— Arnie telefonou — disse ele. — Pediu que você ligasse, se</p><p>voltasse antes das onze e meia, mais ou menos.</p><p>Olhei para o meu relógio. Apenas onze e vinte. Entretanto, será que</p><p>já não tivera o bastante de Arnie e seus problemas para um dia?</p><p>— E então?</p><p>— Então, o quê?</p><p>— Não vai telefonar para ele? Suspirei.</p><p>— Está certo, acho que vou.</p><p>Fui até a cozinha, preparei um sanduíche de frango frio, enchi um</p><p>copo de Ponche Havaiano — um negócio espesso, mas eu adoro — e</p><p>disquei para a casa de Arnie. Ele mesmo atendeu, ao segundo toque.</p><p>Parecia alegre e excitado.</p><p>— Dennis! Onde foi que esteve?</p><p>— Jogando boliche — falei.</p><p>— Escute, voltei à garagem de Darnell esta noite, sabe? E... escute</p><p>só, Dennis... ele chutou Repperton! Repperton saiu e eu posso ficar!</p><p>Senti novamente aquele medo tomando forma em meu estômago.</p><p>Larguei o sanduíche. De repente, não o queria mais.</p><p>— Arnie, acha que continuar lá é mesmo uma boa idéia?</p><p>— O que quer dizer com isso? Repperton se foi. Não acha que é uma</p><p>boa idéia?</p><p>Pensei em Darnell, ordenando a Arnie que tirasse o carro de lá, antes</p><p>que poluísse sua garagem imunda. Darnell, dizendo a Arnie que não</p><p>explorava merda nenhuma de garotos como ele. Pensei na maneira</p><p>envergonhada como ele desviara os olhos, ao contar que conseguira hora</p><p>no elevador, para trocar seu óleo, fazendo "uns dois favores". Tive a</p><p>impressão de que Darnell talvez achasse divertido transformá-lo em seu</p><p>empregadinho de estimação. Sem dúvida, isso também divertiria bastante</p><p>os habitués e seus companheiros de pôquer. Arnie, vá buscar café, Arnie,</p><p>traga biscoitos, Arnie, mude os rolos de papel sanitário da privada e encha</p><p>o toalheiro com toalhas de papel. Ei, Will, quem é o quatro olhos rondando</p><p>lá pelo banheiro?... Oh, aquele? Seu nome é Cunningham. Os velhos dele</p><p>lecionam na universidade. Ele está aqui fazendo uma merda de curso de</p><p>pós-graduação. E eles riram. Arnie se transformaria na piada local da</p><p>garagem de Darnell, em Hampton Street.</p><p>Pensei isso tudo, mas nada disse. Achei que Arnie poderia muito bem</p><p>decidir se estava caminhando pela água ou pisoteando merda. Aquilo não</p><p>podia durar muito — ele era bastante esperto para ver. Bem, assim</p><p>esperava eu. Arnie era feio, mas não debilóide.</p><p>— Se Repperton caiu fora, acho que é uma excelente idéia —</p><p>respondi. — Apenas pensei que a garagem de Darnell fosse uma medida</p><p>temporária. Quero dizer, vinte por semana, Arnie, é muita grana, sem falar</p><p>no aluguel de ferramentas, do elevador e tudo o mais.</p><p>— Por isso pensei que seria formidável alugar a garagem do Sr.</p><p>LeBay — disse ele. — Achei que, mesmo pagando vinte e cinco por</p><p>semana, estaria</p><p>em melhor situação.</p><p>— Bem, isso é com você. Se pusesse um anúncio no jornal,</p><p>procurando vaga em uma garagem, aposto como...</p><p>— Um momento, deixe-me terminar, Dennis — disse Arnie, ainda</p><p>excitado. — Quando fui lá esta tarde, Darnell me chamou de lado</p><p>imediatamente. Disse que lamentava o que Repperton fizera comigo. Disse</p><p>também que me julgara erradamente.</p><p>— Darnell disse isso?</p><p>Acho que acreditei, mas não confiei muito.</p><p>— Exato. Perguntou se eu gostaria de trabalhar para ele, em horas</p><p>extras. Dez, talvez vinte horas por semana, durante as aulas. Separando</p><p>peças, manobrando o elevador, coisas assim. E posso ficar com o boxe por</p><p>dez dólares semanais, pagando metade do aluguel pelas ferramentas e o</p><p>elevador. O que acha disso?</p><p>Pensei que era infernalmente bom demais, para ser verdade.</p><p>— Veja bem onde põe o traseiro, Arnie.</p><p>— O quê?</p><p>— Meu pai diz que ele é um escroque.</p><p>— Não vi o menor sinal disso por lá. Acho que tudo não passa de</p><p>boato, Dennis. Darnell faz muito barulho, mas creio que é tudo.</p><p>— Estou apenas dizendo para você ficar prevenido. — Passei o fone</p><p>para o outro ouvido e bebi um pouco de Ponche Havaiano. — Fique de</p><p>olhos bem abertos e caia fora depressinha, se a barra começar a ficar</p><p>pesada demais.</p><p>— Está falando de alguma coisa específica?</p><p>Pensei nas vagas histórias sobre drogas e nas mais específicas sobre</p><p>carros roubados.</p><p>— Não — respondi. — Apenas não confio nele.</p><p>— Bem... — disse Arnie, hesitante. Pareceu refletir, mas retornou ao</p><p>tema original: Christine. Com ele, o tema sempre voltava a Christine. —</p><p>De qualquer modo, vai ser legal, muito legal para mim, Dennis, se der</p><p>certo. Christine... está realmente mal. Consegui fazer algumas coisas nela,</p><p>mas para cada uma que faço, parece que tem mais quatro. Algumas que</p><p>ainda não sei resolver, mas vou aprender.</p><p>— Hum-hum — falei, dando uma dentada no sanduíche.</p><p>Após minha conversa com LeBay, o entusiasmo por Christine, a</p><p>garota de Arnie, passara do zero e penetrara em regiões negativas.</p><p>— Ela precisa de um alinhamento das rodas dianteiras... Diabo, ela</p><p>precisa de pneus dianteiros novos, e novas sapatas de freios... anéis de</p><p>segmento... Posso tentar retificar os pistons... mas não conseguirei nada</p><p>disso com meu estojo de ferramentas Craftsman, de cinqüenta e quatro</p><p>pratas. Entende o que quero dizer, Dennis?</p><p>Era como se ele estivesse suplicando a minha aprovação. Com vazio</p><p>no estômago, lembrei-me de repente de um sujeito que tinha sido nosso</p><p>colega na escola: Freddy Darlington, era o seu nome. Fred nada tinha de</p><p>excepcional, mas era um bom sujeito, com um senso de humor legal.</p><p>Então, conheceu uma prostituta de Penn Hills — estou querendo dizer uma</p><p>puta de verdade, a mais feliz em dar para todos, a maria-batalhão, escolha</p><p>o seu pejorativo predileto. Tinha uma cara bronca e idiota, que me fazia</p><p>lembrar a traseira de um caminhão Mack, e não parava de mastigar</p><p>chicletes. O cheiro de Tutti-Frutti pairava em torno dela, numa nuvem</p><p>constante. Ficou grávida mais ou menos na época em que Freddy lhe botou</p><p>as mãos. De certa forma, sempre imaginei que ele a tivesse apanhado,</p><p>porque fora a primeira garota a deixá-lo ir até o fim. Aconteceu, em</p><p>seguida, que ele saiu da escola, arranjou emprego em um depósito, a</p><p>princesa teve o bebê e Freddy apareceu com ela no baile de encerramento</p><p>do ginásio, no último mês de dezembro, querendo que tudo fosse o</p><p>mesmo, quando nada é mais o mesmo; e lá está ela, olhando para todos</p><p>nós, os rapazes, com aqueles olhos mortos e desdenhosos, as mandíbulas</p><p>subindo e descendo como as de uma vaca ruminando algo particularmente</p><p>saboroso, enquanto tínhamos que ouvir as novidades: ela está de volta à</p><p>pista de boliche, de volta à cantina de Libertyville, de volta ao Gino's,</p><p>andando de carro enquanto Freddy trabalha, retornou ao trabalho duro,</p><p>dando para todos e divertindo a tropa. Sei que se costuma dizer que um</p><p>pau não tem consciência, mas eu lhe digo agora que certas conas têm</p><p>dentes, e então, ao olhar para Freddy, que parecia dez anos mais velho, tive</p><p>vontade de chorar. Depois, quando Freddy falou sobre ela, foi naquele</p><p>mesmo tom suplicante que eu captava na voz de Arnie, soando ao telefone</p><p>em meu ouvido, naquele exato momento... Vocês gostaram mesmo dela,</p><p>não foi, caras? Ela não é legal, caras? Não me saí tão mal, hein, caras?</p><p>Quero dizer, talvez seja apenas um pesadelo e logo estarei acordado,</p><p>certo? Certo? Certo?</p><p>— É claro que entendo — falei ao telefone. — Tem razão, Arnie.</p><p>Toda aquela horrível, nojenta história de Freddy Darlington levara</p><p>talvez dois segundos passando por meu cérebro.</p><p>— Ótimo — disse ele, aliviado.</p><p>— Apenas veja onde mete o traseiro, cara. E isto vale dobrado, para</p><p>quando voltar às aulas. Fique longe de Buddy Repperton.</p><p>— Certo. Pode apostar que sim.</p><p>— Arnie...</p><p>— O quê?</p><p>Fiz uma pausa. Queria perguntar-lhe se Darnell mencionara alguma</p><p>coisa sobre Christine ter estado antes em sua oficina, se a reconhecera.</p><p>Ainda mais, eu queria dizer-lhe o que acontecera à Sra. LeBay e sua</p><p>filhinha, Rita. Só que não pude. Ele adivinharia imediatamente de onde</p><p>viera a informação. E, em seu estado emocional sobre o maldito carro,</p><p>poderia muito bem pensar que eu estivera agindo por trás de suas costas e,</p><p>de certo modo, fora isso mesmo. Contar tudo a ele talvez significasse o</p><p>fim de nossa amizade.</p><p>Eu já me enchera de Christine, mas ainda me preocupava com Arnie.</p><p>Isto significava que aquela porta devia ser fechada para sempre. Nada</p><p>mais de andar me esgueirando e fazendo perguntas. Nada mais de sermões.</p><p>— Nada — respondi. — Ia apenas dizer que você parece ter</p><p>encontrado um lar para sua banheira enferrujada. Parabéns.</p><p>— Está comendo alguma coisa, Dennis?</p><p>— Estou: um sanduíche de frango. Por quê?</p><p>— Porque está mastigando em meu ouvido. É grosseiro demais.</p><p>Comecei a mastigar o mais ruidosamente que pude. Arnie imitou</p><p>arrotos. Começamos a rir e aquilo foi bom — era como nos velhos tempos,</p><p>antes de seu casamento com aquele maldito e fodido carro.</p><p>— Você é um filho da mãe, Dennis.</p><p>— Certo. Aprendi com você.</p><p>— Viado — disse ele e desligou.</p><p>Terminei o sanduíche e o Ponche Havaiano, lavei o prato e o copo e</p><p>voltei para a sala, disposto a tomar uma ducha e ir para a cama. Estava</p><p>exausto.</p><p>A certa altura de minha conversa ao telefone, ouvira a TV ser</p><p>desligada, o que me fez supor que papai tivesse subido. Não subira.</p><p>Continuava ali, em sua poltrona reclinável, com a camisa aberta. Um tanto</p><p>desconcertado, reparei como os pêlos de seu peito estavam ficando</p><p>grisalhos, a maneira como o abajur de leitura, ao lado dele, penetrava</p><p>através de seus cabelos e mostrava o rosado do couro cabeludo. O cabelo</p><p>estava rareando ali. Meu pai não era mais uma criança. Com maior</p><p>desconcerto ainda, refleti que em mais cinco anos, à época em que,</p><p>teoricamente, eu terminaria a faculdade, ele estaria com cinqüenta anos e</p><p>ficando calvo, o estereótipo do guarda-livros. Cinqüenta anos em cinco, se</p><p>antes não caísse duro, com outro ataque cardíaco. O primeiro não tinha</p><p>sido grave — nenhuma cicatriz miocardiana, respondeu ele certa vez,</p><p>quando lhe perguntei. Entretanto, ele não tentara dizer que seria</p><p>improvável um segundo ataque. Eu sabia dessa possibilidade, mamãe</p><p>sabia e ele também. Somente Ellie ainda o considerava invulnerável —</p><p>mas eu não percebera uma pergunta em seus olhos, uma ou duas vezes? Eu</p><p>tinha quase certeza disso.</p><p>Falecido subitamente.</p><p>Senti os cabelos se eriçarem em minha cabeça. Subitamente.</p><p>Retesando-se em sua mesa de trabalho, apertando o peito. Subitamente.</p><p>Deixando cair a raquete na quadra de tênis. Ninguém gosta de ter tais</p><p>pensamentos sobre o próprio pai, mas às vezes eles aparecem. Deus sabe</p><p>que sim.</p><p>— Não pude deixar de ouvir parte do que falou — disse ele.</p><p>— É mesmo? — falei, prudentemente.</p><p>— Arnie Cunningham meteu o pé em um balde de algo quente e sujo,</p><p>Dennis?</p><p>— Eu... eu não tenho certeza — falei, lentamente.</p><p>Bem, afinal de contas, o que eu tinha para confirmar? Noções vagas,</p><p>nada mais.</p><p>— Quer falar a respeito?</p><p>— Agora não, papai, se você não se importa.</p><p>— Está bem — disse ele. — No entanto,</p><p>se... como você disse ao</p><p>telefone, se a barra ficar muito pesada, pelo amor de Deus, quer me contar</p><p>o que estiver acontecendo?</p><p>— Certo, contarei.</p><p>— Muito bem.</p><p>Comecei a caminhar para a escada e estava quase lá, quando ele me</p><p>deteve, ao dizer:</p><p>— Fiz a contabilidade de Will Darnell e suas declarações de imposto</p><p>de renda durante quase quinze anos, você sabe.</p><p>Virei-me para ele, francamente surpreso.</p><p>— Não. Eu não sabia.</p><p>Meu pai sorriu. Era um sorriso. Eu nunca o vira antes, podia imaginar</p><p>que mamãe o vira apenas algumas vezes e minha irmã talvez nunca.</p><p>Poder-se-ia pensar, a princípio, que fosse uma espécie de sorriso</p><p>sonolento, mas uma observação melhor diria que nada tinha de sonolento</p><p>— era cínico, rude e totalmente consciente.</p><p>— Pode ficar de boca fechada sobre uma coisa, Dennis?</p><p>— Posso — falei. — Acho que posso.</p><p>— Não adianta apenas achar que pode.</p><p>— Está bem. Eu posso.</p><p>— Ótimo. Fiz a contabilidade de Darnell até 1975 e então ele</p><p>contratou Bill Upshaw, lá de Monrolville.</p><p>Meu pai me fitou atentamente.</p><p>— Eu não diria que Bill Upshaw é um escroque, mas posso dizer que</p><p>seus escrúpulos são bastante transparentes para que se leia um jornal</p><p>através deles. E, no ano passado, ele comprou uma casa em Sewickely, no</p><p>estilo Tudor inglês, valendo 300 mil dólares. Pagamento à vista.</p><p>Fez um gesto para nossa casa, com um pequeno aceno do braço</p><p>direito e o deixou cair de novo em seu colo. Ele e mamãe a tinham</p><p>comprado no ano em que nasci, por 62 mil dólares — agora devia valer</p><p>uns 150 mil — e só recentemente tinham conseguido resgatar a última</p><p>promissória do banco. Tivemos uma festinha no quintal, no fim do verão</p><p>passado. Papai acendeu a churrasqueira, espetou o pequeno papel rosa na</p><p>ponta do espeto mais comprido e cada um de nós teve a chance de segurá-</p><p>lo sobre as brasas, até ele desaparecer por completo.</p><p>— Nada de Tudor inglês por aqui, hein, Dennis? — comentou.</p><p>— Esta casa é legal — falei. Recuei e sentei-me no sofá.</p><p>— Eu e Darnell nos separamos amistosamente — prosseguiu meu pai</p><p>—, não que eu me preocupasse muito com ele, em termos pessoais.</p><p>Sempre o achei um vigarista.</p><p>Assenti de leve, porque gostava daquilo; expressava meus</p><p>sentimentos sobre Will Darnell, melhor do que qualquer palavrão.</p><p>— No entanto, há toda uma diferença entre um relacionamento</p><p>pessoal e um relacionamento profissional. Deve-se aprender bem depressa</p><p>nesse assunto, ou a gente desiste e passa a vender escovas e vassouras de</p><p>porta em porta. Nosso relacionamento profissional era bom, enquanto</p><p>durou... porém não durou muito. Então, decidi acabar com aquilo.</p><p>— Não compreendo.</p><p>— Havia sempre dinheiro aparecendo — disse ele. — Grandes</p><p>quantidades de dinheiro, sem uma procedência limpa. A pedido de</p><p>Darnell, investi em duas sociedades anônimas, Aquecimento Solar</p><p>Pensilvânia e Gráfica Nova Iorque, que pareciam as firmas mais falsas</p><p>dentre todas que eram de meu conhecimento. Por fim, procurei-o, porque</p><p>queria ter todas as minhas cartas na mesa. Comuniquei-lhe qual era a</p><p>minha opinião profissional: se houvesse uma auditoria do pessoal do</p><p>Imposto de Renda ou do Estado da Pensilvânia, era bem provável que ele</p><p>tivesse muitas explicações a dar e que logo eu estaria sabendo demais para</p><p>lhe ser útil.</p><p>— O que ele disse?</p><p>— Começou a ficar inquieto — respondeu meu pai, ainda mostrando</p><p>aquele sorriso sonolento e cínico. — Na minha profissão, a gente fica</p><p>familiarizado com os sinais da inquietação, aos trinta e oito anos, mais ou</p><p>menos... quero dizer, se formos bons no que fazemos. E eu não sou dos</p><p>piores. A intranqüilidade começa com o sujeito perguntando se estamos</p><p>satisfeitos com o trabalho, se o pagamento é suficiente. Se respondemos</p><p>que gostamos do trabalho mas, sem dúvida, podíamos estar ganhando</p><p>mais, o sujeito nos encoraja a contar o que nos está pesando nas costas: a</p><p>casa, o carro, o colégio dos filhos, talvez uma esposa que goste de roupas</p><p>um pouco mais elegantes do que o orçamento doméstico permite... Você</p><p>entende?</p><p>— Uma sondagem, certo?</p><p>— É mais como apalpar-nos — disse ele, e então riu. — Pois bem, a</p><p>dança é semelhante a um minueto, ponto por ponto. Há todos os tipos de</p><p>frases, de passos e pausas. Depois que o sujeito confessa quais as cargas</p><p>financeiras de que gostaria de livrar-se, ele começa perguntando que tipo</p><p>de coisas gostaria de ter. Um Cadillac, uma casa de verão nas Catskills ou</p><p>Poconos, talvez um barco.</p><p>Sobressaltei-me ao ouvi-lo, sabendo o quanto meu pai sonhava com</p><p>um barco — era o que mais desejava naquela época — por duas vezes,</p><p>fora com ele a marinas, ao longo do lago Rei George e do lago</p><p>Passeeonkee, em tardes ensolaradas de verão. Perguntava o preço dos iates</p><p>menores e eu vira um brilho cobiçoso em seus olhos. Agora, começava a</p><p>entender. Estavam fora do nosso alcance. Sua vida talvez tivesse tomado</p><p>um rumo diverso se ele não tivesse de pensar em uma universidade para os</p><p>filhos, por exemplo.</p><p>— E você recusou? — perguntei. Meu pai deu de ombros.</p><p>— Já no início da conversa, deixei bem claro que não queria dançar.</p><p>Antes de mais nada, porque isso significaria envolver-me mais com ele em</p><p>nível pessoal e, como disse, considerava-o um trapaceiro. Por outro lado,</p><p>tais sujeitos são fundamentalmente ignorantes no tocante a números, um</p><p>dos motivos pelos quais muitos deles foram apanhados por sonegação de</p><p>impostos. Eles acham que a gente pode camuflar um rendimento ilegal.</p><p>Estão certos disso. — Papai riu. — Enfiaram na cabeça essa idéia mística</p><p>de que podemos lavar dinheiro como lavamos roupas, quando tudo quanto</p><p>podemos realmente fazer é um malabarismo, até que isso desmorone e nos</p><p>caia na cabeça.</p><p>— Foram esses os motivos?</p><p>— Dois ou três deles. — Papai me fitou dentro dos olhos. — Não sou</p><p>nenhum maldito trapaceiro, Dennis.</p><p>Houve um momento de instantânea comunicação entre nós — ainda</p><p>agora, quatro anos mais tarde, fico arrepiado ao pensar nisso, embora não</p><p>possa afirmar que sou capaz de transmitir a vocês a sensação. Não porque</p><p>ele me tratasse como igual aquela noite, pela primeira vez; não porque</p><p>estivesse me mostrando o ansioso cavaleiro errante, ainda escondido</p><p>dentro do homem que, de cabeça baixa, lutava pela vida em um mundo</p><p>sujo e desonesto. Creio que o percebia como uma realidade, alguém que</p><p>existia muito antes de minha chegada ao palco, uma pessoa que tivera sua</p><p>ração de sofrimento. Nesse momento, acho que poderia tê-lo imaginado</p><p>fazendo amor com minha mãe, ambos suados e esforçando-se pelo final —</p><p>e não ficaria embaraçado.</p><p>Então ele baixou os olhos, esboçou um sorriso defensivo e fez aquela</p><p>voz seca e vigorosa de Nixon, uma imitação em que era muito bom:</p><p>— Vocês merecem saber se seu pai é um trapaceiro. Bem, eu não sou</p><p>um trapaceiro, podia ter aceitado o dinheiro, mas isso... ha-rrrã... teria</p><p>sido errado.</p><p>Ri alto demais, uma liberação da tensão — e senti o momento passar;</p><p>embora parte de mim não o desejasse, a outra parte queria isso era</p><p>demasiado intenso. Penso que ele devia sentir o mesmo.</p><p>— Pssst! Vai acabar acordando sua mãe e ela fará o diabo conosco,</p><p>por ficarmos acordados até tão tarde.</p><p>— Desculpe. Escute, papai, você sabe em que ele está metido? Estou</p><p>falando de Darnell.</p><p>— Naquele tempo eu não sabia e nem queria saber, porque então</p><p>seria uma parte da coisa. Tinha minhas idéias e ouvi algumas coisas.</p><p>Carros roubados, imagino. Não que Darnell os tenha levado para aquela</p><p>garagem da Hampton Street; ele não é totalmente imbecil, e só mesmo um</p><p>idiota sujaria o prato onde come. Talvez esteja também envolvido em</p><p>contrabando.</p><p>— Armas e munições? — perguntei, em voz algo rouca.</p><p>— Nada tão romântico. Se eu fosse capaz de adivinhar, diria que</p><p>principalmente cigarros... cigarros e bebidas, os dois velhos e infalíveis</p><p>produtos. O contrabando é como um delírio. Talvez um carregamento de</p><p>fornos de microondas ou televisões coloridas, de vez em quando, se o risco</p><p>for baixo. O suficiente para mantê-lo ocupado durante tantos anos.</p><p>Papai me fitou com ar grave.</p><p>— Ele tem enfrentado bem os riscos e teve sorte por muito tempo,</p><p>Dennis. Bem, nesta cidade, talvez não precisasse realmente de sorte. Se</p><p>tudo fosse exatamente como em Lybertyville, acho que ele poderia</p><p>continuar para sempre ou, pelo menos, até cair morto com um ataque do</p><p>coração, mas os rapazes dos impostos estaduais são cações, enquanto os</p><p>federais são as grandes baleias brancas. Ele teve sorte, mas qualquer dia os</p><p>agentes vão cair em cima dele, como a Grande Muralha da China.</p><p>— Você... você soube de alguma coisa?</p><p>— Nem um sussurro. Aliás, não estou em posição de saber nada.</p><p>Acontece, apenas, que gosto muito de Arnie Cunningham e sei que você</p><p>anda preocupado com essa história do carro.</p><p>— Certo. Ele está... bem, ele não está se portando com muita lucidez</p><p>com relação a isso, papai. Tudo para Arnie é o carro, o carro, o carro.</p><p>— Pessoas sem muitas chances tendem a agir assim — disse ele. —</p><p>Às vezes é um carro, em outras uma namorada, uma carreira ou</p><p>instrumento musical, quando não, uma obsessão doentia por alguma figura</p><p>famosa. Tive um colega alto e feio, a quem chamávamos de Cegonha.</p><p>Com Cegonha, foi o trenzinho elétrico. Ele foi apaixonado por trenzinhos</p><p>desde o segundo grau, e seu conjunto era quase a oitava maravilha do</p><p>mundo. Ele deixou Brown no segundo semestre de seu ano de calouro.</p><p>Estava com notas péssimas, e teve que escolher entre o colégio e seus</p><p>trens Lionel. Cegonha preferiu os trens.</p><p>— O que aconteceu com ele?</p><p>— Matou-se em 1961 — disse meu pai e levantou-se. — Minha</p><p>opinião é que pessoas decentes às vezes podem ficar cegas e nem sempre</p><p>por culpa delas. Talvez Darnell acabe deixando Arnie de lado. Passará a</p><p>vê-lo apenas como outro cara qualquer, escorregando para baixo de seu</p><p>carro em um deslizador. Entretanto, se Darnell tentar usá-lo, olhe por ele,</p><p>Dennis. Não o deixe ser puxado para a dança.</p><p>— Está bem, vou tentar, mas talvez não possa fazer grande coisa.</p><p>— Hum-hum. Sei disso muito bem. Vai subir?</p><p>— Claro.</p><p>Subimos e, embora cansado como estava, fiquei muito tempo</p><p>acordado. Aquele fora um dia movimentado. Lá fora, um vento noturno</p><p>agitava suavemente um ramo contra o lado da casa e, muito distante, no</p><p>centro da cidade, ouvi garotos fazendo chiar os pneus no asfalto um som</p><p>que, dentro da noite, assemelhava-se ao gargalhar desesperado de uma</p><p>mulher histérica.</p><p>Christine e Darnell</p><p>Ele soube de um casal</p><p>vivendo nos EUA,</p><p>Contou que eles trocaram seu bebê por um Chevrolet:</p><p>Falemos agora do futuro,</p><p>Esqueçamos o passado...</p><p>— Elvis Costello</p><p>Entre trabalhar durante o dia no projeto da construção da estrada e</p><p>trabalhar em Christine à noite, Arnie não estivera muito tempo com seus</p><p>pais. As relações haviam ficado bastante tensas e desgastantes. O lar dos</p><p>Cunningham, que sempre fora agradável e relaxante no passado, agora era</p><p>um campo armado. Esta é uma situação que muita gente lembra de sua</p><p>adolescência, imagino; talvez, gente demais. O adolescente é egoísta</p><p>bastante para considerar-se a primeira pessoa do mundo a descobrir certa</p><p>coisa em particular (geralmente é uma garota, mas nem sempre tem que</p><p>ser assim), e os pais são demasiado broncos e possessivos, têm medo de</p><p>soltar o cabresto. Ambos os lados pecam. Algumas vezes, isso se torna</p><p>doloroso e ultrajante — nenhuma guerra é tão suja e amarga como uma</p><p>guerra civil. Tal situação era particularmente penosa no caso de Arnie,</p><p>porque a separação acontecera muito tarde, seus pais já estavam</p><p>demasiado acostumados a manejar tudo à sua maneira. Não seria injusto</p><p>afirmar que haviam programado a vida do filho.</p><p>Assim, quando Regina e Michael propuseram um fim de semana de</p><p>quatro dias em sua casa do lago, ao norte do Estado de Nova Iorque, antes</p><p>do reinicio das aulas, Arnie concordou, embora desejasse ardentemente</p><p>aqueles últimos quatro dias para trabalhar em Christine. Passando cada</p><p>vez mais horas trabalhando, ele me contara como ia "mostrar a eles", ia</p><p>transformar Christine em um carro de verdade e "mostrar a todos eles". Já</p><p>planejara restaurar o vermelho brilhante e marfim original do Plymouth,</p><p>após terminado o trabalho na carroceria.</p><p>Contudo, lá se foi com os pais, determinado a ser obediente e afável</p><p>durante aqueles quatro dias inteiros e divertir-se com eles — em um fac-</p><p>símile racional. Apareci em sua casa, na véspera de partirem, e fiquei</p><p>aliviado ao perceber que ambos me tinham absolvido de culpa no assunto</p><p>do carro de Arnie (que ainda não tinham nem mesmo visto).</p><p>Aparentemente, haviam decidido ser aquilo uma obsessão particular. Para</p><p>mim, foi ótimo.</p><p>Regina estava ocupada, fazendo as malas. Ajudei Arnie e Michael a</p><p>amarrarem sua velha canoa Oldtown na capota do Scout, o carro da</p><p>família. Terminado o trabalho, Michael sugeriu ao filho — com o ar de um</p><p>rei poderoso, concedendo um favor quase inacreditável a dois de seus</p><p>vassalos favoritos — que ele entrasse e pegasse algumas cervejas para nós.</p><p>Fingindo a expressão e o tom de admirada gratidão, Arnie respondeu</p><p>que seria formidável. Ao afastar-se, piscou-me um olho.</p><p>Michael recostou-se contra o Scout e acendeu um cigarro.</p><p>— Arnie já está se cansando dessa história do carro, Dennis?</p><p>— Não sei — respondi.</p><p>— Quer me fazer um favor?</p><p>— Claro, se eu puder — respondi cauteloso.</p><p>Tinha certeza de que ele me pediria para procurar Arnie, bancar o</p><p>conselheiro e tentar convencê-lo a "parar com aquilo". No entanto, ele</p><p>disse:</p><p>— Se tiver tempo, vá até a Darnell's enquanto estivermos fora e veja</p><p>que tipo de progresso ele está fazendo. Fiquei interessado.</p><p>— Por que esse interesse?</p><p>Mal fiz a pergunta, pensei imediatamente que fora bastante rude, mas</p><p>era tarde demais.</p><p>— Porque desejo que ele seja bem-sucedido — disse Michael com</p><p>simplicidade e olhou para mim. — Oh, Regina continua absolutamente</p><p>contrária a isso. Se Arnie tiver um carro, significa que está crescendo. E,</p><p>se está crescendo, isso significa... bem, toda uma série de coisas —</p><p>terminou ele, desajeitadamente. — Você poderia considerar-me também</p><p>contra essa história, porém isso foi antes. Claro, a princípio ele me pegou</p><p>de surpresa.... Tive visões de uma lata-velha estacionada diante de nossa</p><p>casa, até Arnie ir para a universidade, ou dele asfixiando-se até a morte</p><p>com o cano de descarga, qualquer noite.</p><p>O pensamento de Verônica LeBay saltou em minha cabeça,</p><p>involuntariamente.</p><p>— Agora, no entanto... — Michael deu de ombros, olhou para a porta</p><p>entre a garagem e a cozinha, deixou o cigarro cair e o esmagou com o</p><p>salto. — Ele está visivelmente empenhado. Adquiriu um senso de respeito</p><p>próprio nesse assunto. Eu gostaria de, pelo menos, vê-lo pôr o carro</p><p>rodando.</p><p>Talvez ele percebesse algo em meu rosto, porque ao prosseguir, o</p><p>tom era defensivo.</p><p>— Não esqueci inteiramente o que significa ser jovem — disse. —</p><p>Sei que um carro é importante para um rapaz como Arnie. Regina é que</p><p>não consegue ver isso tão claramente. Sempre teve a primeira e última</p><p>palavra e não se conforma em ser passada para trás. Recordo que um carro</p><p>é importante... se um rapaz tem que sair com garotas.</p><p>Então, era assim que ele pensava. Encarava Christine como o meio</p><p>para uma finalidade, não a própria finalidade. Perguntei-me o que</p><p>pensaria, se lhe contasse que a única idéia de Arnie era colocar aquele</p><p>Fury rodando e legalizado. Perguntei-me, também, se isso não o deixaria</p><p>um tanto ou quanto inquieto.</p><p>Ouvimos o baque da porta da cozinha ao se fechar.</p><p>— Você daria uma espiada?</p><p>— Está bem — respondi. — Se é o que você quer.</p><p>— Obrigado.</p><p>Arnie voltava com as cervejas.</p><p>— O que estava agradecendo? — perguntou a Michael.</p><p>Falava em tom jovial e despreocupado, mas seus olhos se moveram</p><p>entre nós com rapidez, desconfiadamente. Tornei a reparar que sua pele</p><p>estava ficando muito melhor e que seu rosto parecia ter-se revigorado.</p><p>Pela primeira vez, Arnie e garotas foram dois pensamentos que não me</p><p>pareceram mutuamente excludentes. Ocorreu-me que Arnie tinha um rosto</p><p>quase atraente, não como o de um peitudo salva-vidas, rei-do-baile-</p><p>estudantil, porém de um modo diferente, interessante e suave. Ele jamais</p><p>seria o tipo de Roseanne, mas...</p><p>— Por ele ajudar com a canoa — disse Michael, com naturalidade.</p><p>— Ah.</p><p>Bebemos nossas cervejas e depois fui para casa. No dia seguinte, o</p><p>feliz trio partiu</p><p>para Nova Iorque, presumidamente a fim de redescobrir a</p><p>unidade familiar, perdida durante o último terço daquele verão.</p><p>Um dia antes de eles voltarem, fui de carro até a garagem de Darnell</p><p>— tanto para satisfazer minha curiosidade como a de Michael</p><p>Cunningham.</p><p>Situada à frente do depósito de carros velhos, este do comprimento</p><p>do quarteirão, a garagem parecia tão atraente à luz do dia, como na noite</p><p>em que havíamos trazido Christine — tinha todo o encanto de uma</p><p>ratazana morta.</p><p>Estacionei em uma vaga diante da loja de acessórios que pertencia</p><p>também a Darnell — muito bem provida de peças, como cabeçotes Feully,</p><p>caixas de mudança Hurst e supercompressores Ram-Jett (para todos</p><p>aqueles trabalhadores que precisavam manter seus velhos carros rodando a</p><p>fim de poderem pôr pão na mesa, sem dúvida), para não mencionar uma</p><p>vasta seleção de compactos pneus e uma imensa variedade de calotas</p><p>especiais. Espiar pela janela da loja de acessórios para alta velocidade de</p><p>Darnell era como observar uma louca Disneylândia automotiva.</p><p>Afastei-me dali e cruzei o piso alcatroado para a garagem e para os</p><p>sons ruidosos de ferramentas, gritos, rajadas de metralhadoras das chaves</p><p>de boca pneumáticas. Um indivíduo de aparência desmazelada, com uma</p><p>surrada jaqueta de couro, estava às voltas com uma velha bicicleta, junto a</p><p>um dos boxes da garagem, desmontando a tubuladora ou tornando a</p><p>montá-la. Havia um fundo arranhão interrompido, descendo por sua face</p><p>esquerda. As costas da jaqueta do sujeito exibiam uma caveira' usando</p><p>uma boina verde e o fascinante lema MORRAM TODOS ELES E QUE</p><p>DEUS OS DIVIDA.</p><p>Fitou-me com olhos injetados de sangue, como um lunático Rasputin,</p><p>depois voltou a atenção para o que fazia. As ferramentas à sua volta se</p><p>dispunham em ordenação cirúrgica, havendo em cada uma, estampadas a</p><p>tinta, as palavras DARNELL'S GARAGE.</p><p>Lá dentro, o mundo se enchia do barulho reverberante e evocativo de</p><p>ferramentas e do som de homens trabalhando nos carros, gritando</p><p>palavrões para aquele em que trabalhavam. Sempre os palavrões e sempre</p><p>do gênero feminino: "Vamos, sua filha da puta", "Afrouxe, sua cona",</p><p>"Venha cá, Rick, e me ajude a tirar fora esta racha".</p><p>Olhei em torno, procurando Darnell, mas não o vi em parte alguma.</p><p>Ninguém prestou muita atenção em mim, de maneira que caminhei até o</p><p>boxe vinte, onde estava Christine, agora apontando o focinho para fora,</p><p>como se tivesse todo o direito de estar ali. No boxe à direita, dois caras</p><p>gordos, ambos vestindo camisas da associação de boliche, estavam</p><p>colocando um toldo na carroceria de uma camioneta pickup, que já vira</p><p>dias melhores. O boxe do outro lado estava deserto.</p><p>Quando me aproximei de Christine, senti que voltava aquele arrepio.</p><p>Não havia motivos para isso, mas era impossível controlá-lo — e, sem</p><p>pensar, movi-me um pouco para a esquerda, em direção ao boxe vazio.</p><p>Não queria ficar na frente dela, de Christine.</p><p>Meu primeiro pensamento foi de que a pele de Arnie havia</p><p>melhorado ao mesmo tempo que a de Christine. O segundo, que ele estava</p><p>fazendo seus melhoramentos de modo curiosamente ao acaso... quando,</p><p>em geral, meu amigo costumava ser muito metódico.</p><p>A antena empenada e caída fora substituída por uma nova e retilínea,</p><p>que cintilava à luz das lâmpadas fluorescentes. Metade da grade do</p><p>radiador do Fury havia sido trocada; a outra metade continuava amassada</p><p>e salpicada de ferrugem. Havia também algo mais...</p><p>Caminhei ao longo do lado direito do carro, até o pára-choque</p><p>traseiro, com o cenho franzido.</p><p>Bem, era no outro lado, sem dúvida, pensei.</p><p>Assim, dei a volta pelo outro lado, mas também não estava lá.</p><p>Fiquei em pé junto à parede dos fundos, ainda de cenho franzido,</p><p>procurando lembrar. Estava absolutamente certo de que quando vira aquele</p><p>carro no gramado de LeBay, com um aviso À VENDA colado ao pára-</p><p>brisa, havia um amassado enferrujado, de bom tamanho, em um ou outro</p><p>lado do veículo, perto da traseira — a espécie de marca de batida funda</p><p>que meu avô sempre chamava de "coice de mula". Estávamos rodando ao</p><p>longo da estrada de pedágio, quando passamos por um carro com um</p><p>amassado enorme em alguma parte da lataria. Vovô então disse: "Ei,</p><p>Denny, dê uma espiada naquilo! Foi um coice de mula!". Meu avô era do</p><p>tipo que sempre tem uma frase pronta para tudo.</p><p>Comecei a pensar que imaginara aquilo e abanei a cabeça de leve.</p><p>Aquilo era uma idéia sem sentido. O amassado estivera lá, podia recordá-</p><p>lo perfeitamente. Só porque não estava agora, não significava que nunca</p><p>estivera antes. Sem dúvida, Arnie fizera uma lanternagem no local, uma</p><p>excelente lanternagem, para fazê-lo desaparecer.</p><p>Exceto que...</p><p>Bem, não havia o menor sinal de que ele houvesse feito qualquer</p><p>coisa ali. No lugar não havia pintura, nenhuma massa cinzenta para nivelar</p><p>a superfície da lataria, qualquer mancha de tinta. Apenas o vermelho</p><p>opaco e o branco sujo de Christine.</p><p>No entanto, havia um maldito amassado ali! Um amassado fundo e</p><p>coberto de poeira, em um ou outro lado do carro.</p><p>De qualquer modo, ele agora desaparecera.</p><p>Fiquei ali, entre a barulheira ensurdecedora de ferramentas e</p><p>maquinismos, sentindo-me muito solitário e, de repente, muito assustado.</p><p>Estava tudo errado, tudo louco. Ele substituíra a antena do rádio, quando o</p><p>cano de descarga praticamente se arrastava pelo chão. Substituíra metade</p><p>do radiador, mas não a outra. Falara comigo sobre um conserto geral na</p><p>traseira, mas dentro do carro; substituíra o rasgado e empoeirado</p><p>estofamento do banco de trás por um outro, novo e brilhante. O</p><p>estofamento do banco dianteiro continuava um destroço empoeirado, com</p><p>uma mola assomando para fora, no banco do passageiro.</p><p>Não gostei daquilo nem um pouco. Era loucura, sem nenhum traço da</p><p>meticulosidade de Arnie.</p><p>Algo me acudiu à mente, uma lembrança fugaz e, sem mesmo</p><p>analisá-la, fiquei atrás do carro e olhei para todo ele — não apenas para</p><p>um detalhe aqui e outro acolá, mas abrangendo tudo. Então, consegui: tudo</p><p>se encaixava no lugar e o arrepio voltou.</p><p>Aquela noite, quando tínhamos levado Christine para a garagem. O</p><p>pneu arriado. A substituição. Eu olhara para o pneu novo no carro velho e</p><p>havia pensado que um pouquinho daquela velhice toda fora retirada, que o</p><p>automóvel novo — recente, cintilante, acabado de sair da linha de</p><p>montagem, em um ano quando Ike ainda era presidente e Batista</p><p>continuava mandando em Cuba — reaparecia um pouquinho, através</p><p>daquele pneu.</p><p>O que eu via agora era mais ou menos isso... só que, em vez de um</p><p>mero pneu novo, havia todos os tipos de coisas — a antena, a grade do</p><p>radiador cintilando pela metade, um lado traseiro em reluzente vermelho-</p><p>escuro, aquele novo estofamento no banco de trás.</p><p>Por sua vez, isto me fez recordar algo da infância. Eu e Arnie</p><p>freqüentávamos a Escola Bíblica de Férias durante uma quinzena a cada</p><p>verão e, todos os dias, a professora contava uma história da Bíblia,</p><p>deixando-a por terminar. Então, ela dava a cada garoto uma folha em</p><p>branco de "papel mágico". Quando a gente passava a borda de uma moeda</p><p>ou o lado do lápis sobre o papel, de sua brancura ia gradualmente</p><p>emergindo uma ilustração — a pomba trazendo o ramo de oliveira para</p><p>Noé, as muralhas de Jerico desmoronando, coisas milagrosas assim.</p><p>Aquilo nos deixava fascinados, vendo as ilustrações irem surgindo pouco a</p><p>pouco. A princípio, apenas linhas flutuando no vazio... depois, essas linhas</p><p>se ligavam a outras... ganhavam coerência... ganhavam significado.</p><p>Olhei para a Christine de Arnie com crescente horror, tentando</p><p>afugentar a sensação de que, nela, via algo terrivelmente similar àquelas</p><p>mágicas frustrações de milagres.</p><p>Tive vontade de espiar debaixo do capô.</p><p>De repente, parecia muito importante espiar o que havia lá.</p><p>Caminhei para a frente do carro (não queria ficar diante dele, não</p><p>havia um bom motivo para isso, apenas eu não queria) e remexi no capô,</p><p>em busca do trinco. Não consegui abri-lo. Então, percebi que devia estar</p><p>dentro do carro.</p><p>Comecei a dar a volta, quando vi algo mais, algo que me deixou mais</p><p>assustado ainda. Eu podia estar enganado sobre o coice de mula. Sabia</p><p>que</p><p>não estava mas, pelo menos tecnicamente..</p><p>Só que isto era completamente outra coisa.</p><p>A teia de aranha das rachaduras no pára-brisa diminuíra.</p><p>Estava positivamente menor.</p><p>Minha mente recuou até o dia, um mês atrás, quando eu perambulara</p><p>pela garagem de LeBay, a fim de dar uma espiada no carro, enquanto Arnie</p><p>entrava na casa para fechar negócio com o velho. Todo lado esquerdo do</p><p>pára-brisa era uma imensa teia de aranha de rachaduras, que se espraiavam</p><p>de uma ziguezagueante fenda central, provavelmente causada por uma</p><p>pedrada.</p><p>Agora, a teia de aranha parecia menor e mais simples — por aquele</p><p>lado, era possível enxergar-se dentro do carro, o que eu não pudera fazer</p><p>antes, tinha certeza (apenas uma ilusão devido à luz, eis tudo, cochichou</p><p>minha mente).</p><p>No entanto, eu tinha que estar enganado — porque isso era</p><p>impossível. A gente substitui um pára-brisa, isto não é problema, havendo</p><p>dinheiro para a despesa. No entanto, fazer uma teia de aranha de</p><p>rachaduras encolher...</p><p>Ri um pouco. Era um som trêmulo, e um dos sujeitos que trabalhava</p><p>com a lona da camioneta olhou para mim com curiosidade, em seguida</p><p>comentando algo com o companheiro. Era um som trêmulo, porém talvez</p><p>melhor do que nenhum som. Claro que era a luz nada mais. Eu vira o</p><p>carro, pela primeira vez, com o sol brilhando em cheio sobre o pára-brisa</p><p>estilhaçado e o vira, pela segunda vez, nas sombras da garagem de LeBay.</p><p>Via-o, agora, sob a luz fluorescente daqueles tubos colocados muito no</p><p>alto. Três momentos diferentes e, tudo somado, traduzia-se em uma ilusão</p><p>de ótica.</p><p>Ainda assim, eu queria olhar debaixo do capô. Mais do que nunca.</p><p>Cheguei até o lado do motorista e sacudi a porta. Ela não se abriu.</p><p>Estava trancada. Claro que estava: via abaixados todos os quatro botões</p><p>que trancavam as portas. Arnie não deixaria seu carro aberto ali, para que</p><p>alguém chegasse e ficasse remexendo em tudo. Repperton podia ter ido</p><p>embora, mas a espécie sordidus é uma erva daninha comum. Tornei a rir. O</p><p>tolo e velho Dennis — mas agora meu riso soou ainda mais agudo e</p><p>trêmulo. Eu começava a sentir-me aéreo, como me sentia às vezes de</p><p>manhã, após ter fumado um pouco de erva além da conta.</p><p>Trancar as portas do Fury era uma atitude muito natural, claro.</p><p>Exceto que, ao dar a volta ao carro pela primeira vez, julguei perceber</p><p>levantados todos os botões que fechavam as portas.</p><p>De novo, caminhei lentamente para a traseira do carro. Aquela</p><p>velharia, pouco mais que uma carcaça enferrujada. Eu não pensava em</p><p>nada específico — tenho certeza disso — exceto, talvez, que era como se</p><p>Christine soubesse que eu queria entrar e puxar a alavanca de liberação do</p><p>capô.</p><p>Então, por não querer que eu entrasse, o carro trancara as próprias</p><p>portas?</p><p>Francamente, era uma idéia hilariante. Tão hilariante que tomei a rir</p><p>(várias pessoas agora olhavam para mim, de maneira como os outros</p><p>sempre olham para quem está sozinho e ri, sem qualquer motivo aparente).</p><p>Foi quando aquela mão enorme caiu em meu ombro e me fez girar.</p><p>Era Darnell, com um toco apagado de charuto enfiado no meio da boca. A</p><p>outra extremidade estava molhada, com uma aparência lamentável. Ele</p><p>usava pequenos óculos com lentes até a metade, e os olhos atrás delas</p><p>eram friamente especulativos.</p><p>— O que está fazendo, garoto? — perguntou. — Isto aqui não é seu.</p><p>Os caras da camioneta olhavam avidamente para nós. Um deles</p><p>cutucou o outro e sussurrou algo.</p><p>— É de um amigo meu — respondi. — Eu o trouxe para cá com ele.</p><p>Talvez se lembre de mim. Eu era aquele com o enorme tumor na ponta do</p><p>nariz e o...</p><p>— Pouco me importa se vocês trouxeram o carro para cá em um</p><p>skate— disse ele. — Não lhe pertence. Guarde suas piadas sem graça e dê</p><p>o fora, garoto. Caia fora daqui!</p><p>Meu pai estava certo — ele era um miserável. E eu ficaria mais do</p><p>que feliz em dar o fora dali; podia pensar em seis mil lugares, pelo menos,</p><p>onde preferiria estar, naquela antevéspera do fim das férias de verão. A</p><p>própria Caverna Negra, em Calcutá, seria superior. Não muito, mas sempre</p><p>superior. No entanto, o carro me perturbava. Um monte de coisinhas que,</p><p>somadas, formavam uma baita erupção que precisava ser coçada. Olhe por</p><p>ele, meu pai dissera, e fora um bom conselho. O problema é que eu não</p><p>conseguia- acreditar no que via.</p><p>— Meu nome é Dennis Guilder — falei. — Meu pai já fez sua</p><p>contabilidade, não foi?</p><p>Ele me fitou por um tempo imenso, sem qualquer expressão em seus</p><p>olhinhos de porco. De repente, tive a impressão de que ia dizer que pouco</p><p>se lixava quem fosse meu pai, que era melhor eu dar o fora dali e deixar</p><p>que aqueles homens continuassem consertando seus carros para poderem</p><p>continuar pondo pão em suas mesas. Et cetera.</p><p>Então, Darnell sorriu, mas o sorriso nem tocou seus olhos.</p><p>— Você é o filho de Kenny Guilder?</p><p>— Sou eu mesmo.</p><p>Ele deu tapinha no capô do carro de Arnie com uma gorda e pálida</p><p>mão — havia dois anéis nos dedos e um deles parecia um diamante de</p><p>verdade. No entanto, o que pode saber um garoto como eu?</p><p>— Sendo assim, acho que tudo está bem com você. Se for o filho de</p><p>Kenny. Por um segundo, pensei que ele ia pedir minha identidade.</p><p>Os dois sujeitos do lado voltaram a trabalhar em sua camioneta e,</p><p>aparentemente, decidiram que nada mais transpiraria de interessante.</p><p>— Vamos até o escritório, conversar um pouco — disse ele.</p><p>Virou-se e começou a caminhar, sem ao menos olhar para trás.</p><p>Parecia certo de que eu o seguiria. Caminhava como um barco de velas</p><p>enfunadas, a camisa branca esvoaçando, com uma circunferência</p><p>impressionante de quadris e costas, inverossímil. Muitas pessoas gordas</p><p>sempre me afetam dessa maneira, com nítida impressão de</p><p>inverossimilhança, como se eu estivesse olhando para uma fantástica</p><p>ilusão de ótica. Acontece, no entanto, que provenho de uma longa linha de</p><p>pessoas magras. Para minha família, sou um peso-pesado.</p><p>Darnell fez uma pausa aqui e ali, a caminho de seu escritório, o qual</p><p>tinha uma parede envidraçada, dando para o interior da garagem. Fazia-me</p><p>recordar ligeiramente o deus Moloch, sobre quem havia lido em minha</p><p>aula de Origens de Literatura — era o deus que se supunha capaz de ver</p><p>tudo, com seu único olho vermelho. Darnell gritou para um sujeito colocar</p><p>o silencioso em seu cano de descarga, antes que ele o expulsasse dali;</p><p>gritou para outro indivíduo algo sobre como "as costas de Nicky o estavam</p><p>atrapalhando novamente" (isto provocou uma série de ferozes e ruidosas</p><p>gargalhadas dos dois); berrou para outro que ajuntasse aquelas fodidas</p><p>latas de Pepsi-Cola, será que ele nascera em um monturo de lixo?</p><p>Aparentemente, Will Darnell nada sabia sobre o que minha mãe sempre</p><p>denominava "um tom normal de voz".</p><p>Eu hesitei por um momento, mas depois o segui. Acho que a</p><p>curiosidade matou o gato.</p><p>O escritório dele era em estilo Primitivo Carburador Americano, uma</p><p>cópia de todo infecto escritório de garagem, de costa a costa, em um país</p><p>que corre sobre borracha e ouro ambarino. Havia um calendário sebento</p><p>com uma deusa loura em shorts curtíssimos e blusa aberta, trepada em</p><p>uma cerca, no campo. Havia placas ilegíveis de meia dúzia de companhias</p><p>que vendiam peças para carros. Pilhas de livros de contabilidade. Uma</p><p>antiga máquina de somar. Havia uma foto — que Deus nos perdoe! — de</p><p>Will Darnell usando um fez e montado em uma motocicleta miniatura, que</p><p>parecia quase arriada sob seu corpo volumoso. Havia ainda o cheiro de</p><p>charutos há muito usados e de suor.</p><p>Darnell sentou-se em uma cadeira giratória, com braços de madeira.</p><p>A almofada gemeu debaixo dele, com um som cansado, mas conformado.</p><p>Ele se reclinou para trás. Tirou um fósforo da cabeça oca de um jóquei</p><p>negro de cerâmica. Depois o riscou em uma tira de lixa que cobria uma</p><p>beirada da mesa e acendeu com ele o toco de charuto. Tossiu, fundo e</p><p>demoradamente, o peito largo e flácido sacudindo-se para cima e para</p><p>baixo. Diretamente atrás dele, pregado à parede, havia um quadro de</p><p>Garfield, o Gato. "Quer uma viagem para a Cidade de Dentes Frouxos?",</p><p>perguntava Garfield, sobre uma pata erguida. Aquilo parecia uma perfeita</p><p>síntese de Will Darnell: Miserável na Residência</p><p>Oficial.</p><p>— Quer uma Pepsi, garoto?</p><p>— Não, obrigado — falei.</p><p>Sentei-me na cadeira de espaldar reto, oposta a ele. Darnell olhou</p><p>para mim — novamente aquele olhar frio e calculista — e então assentiu.</p><p>— Como vai seu pai, Dennis? Continua às voltas com a Bolsa?</p><p>— Vai muito bem. Quando lhe contei que Arnie trouxera o carro para</p><p>cá, ele logo se lembrou do senhor. Disse que Bill Upshaw é que faz sua</p><p>contabilidade agora.</p><p>— Hum-hum. Um bom homem. Um bom homem. Não tanto quanto</p><p>seu pai, mas bom.</p><p>Assenti. Um silêncio caiu entre nós e comecei a sentir-me inquieto.</p><p>Will Darnell não parecia pouco à vontade, não olhava para nada em</p><p>particular. Aquele frio olhar de apreciação nunca mudava.</p><p>— Seu companheiro o mandou aqui para descobrir se Repperton foi</p><p>mesmo embora? — perguntou ele, tão de repente, que me sobressaltei.</p><p>— Não — respondi. — De maneira nenhuma.</p><p>— Bem, diga a ele que foi mesmo embora — prosseguiu Darnell,</p><p>ignorando o que eu acabara de dizer. — Um burro metido a sebo. Sempre</p><p>digo a eles, quando vêm com seu lixo para cá: andem na linha ou caiam</p><p>fora. Ele trabalhava para mim, fazendo um pouquinho disto e um</p><p>pouquinho daquilo, mas talvez tenha pensado que era dono da chave de</p><p>ouro para a privada ou coisa assim. Um sabe-tudo novato.</p><p>Ele começou a tossir novamente e demorou muito a parar o acesso de</p><p>tosse. Era um som doentio. Eu começava a sentir claustrofobia, confinado</p><p>naquele escritório, mesmo com a janela se abrindo para a garagem.</p><p>— Arnie é um bom rapaz — disse Darnell finalmente, ainda me</p><p>avaliando com os olhos. Mesmo quando tossia, a expressão não mudava.</p><p>— Ele se vira muito bem. Sabe fazer as coisas.</p><p>Fazer o quê? Eu quis perguntar, mas faltou coragem.</p><p>Darnell acabou contando. Excetuando-se o olhar frio, aparentemente</p><p>ele se sentia expansivo.</p><p>— Ele limpa o chão, recolhe a tralha dos boxes da garagem no fim do</p><p>dia, mantém as ferramentas inventariadas, juntamente com Jimmy Sykes...</p><p>Preciso ter muito cuidado com as ferramentas por aqui, Dennis. Elas</p><p>costumam fugir quando viro as costas. — Ele riu e sua risada transformou-</p><p>se em um chiado. — Botei o Arnie também desmontando peças, lá nos</p><p>fundos. O garoto tem boas mãos. Boas mãos e mau gosto para carros. Há</p><p>anos não vejo uma carcaça pior do que aquele 58.</p><p>— Acho que Arnie o encara como um passatempo — comentei.</p><p>— Claro — disse Darnell, expansivamente. — Claro que sim. Até o</p><p>dia em que não quiser bancar o mandão com aquilo, aqui dentro. Como</p><p>aquele imbecil, aquele Repperton. Bem, acho que não há muita</p><p>possibilidade disso por algum tempo, hein?</p><p>— Penso que não. Aquele carro está um bocado ruim.</p><p>— Que merda ele pretende fazer? — perguntou Darnell. Inclinou-se</p><p>para diante, subitamente, os ombros enormes subindo até a raiz dos</p><p>cabelos. Franziu as sobrancelhas e os olhos desapareceram, exceto por</p><p>dois pequenos botões gêmeos. — Que merda ele pretende? Estive metido</p><p>nesse ramo a vida inteira e nunca vi ninguém consertar um carro da</p><p>maneira louca como ele está fazendo. Uma piada? Uma brincadeira?</p><p>— Não estou entendendo — falei, embora estivesse, e perfeitamente</p><p>bem.</p><p>— Pois eu lhe dou a dica — replicou Darnell. — O garoto traz o</p><p>carro para cá e, a princípio, faz nele tudo o que eu esperava que fizesse.</p><p>Que diabo, ele não tem dinheiro escapando pelo traseiro, certo? Se tivesse,</p><p>não estaria aqui. Ele troca o óleo. Muda o filtro. Graxa, lubrificante, um</p><p>dia vi os dois Firestones novos que ele trouxe para as rodas dianteiras, a</p><p>fim de combinarem com as duas traseiras.</p><p>Duas traseiras? Fiz a pergunta a mim mesmo e então concluí que ele</p><p>comprara três pneus novos, para combinarem com o original que eu lhe</p><p>levara, na noite em que trazíamos Christine para a garagem.</p><p>— Então, um belo dia chego aqui e vejo que ele substituiu os</p><p>limpadores de pára-brisa — continuou Darnell. — Nada estranho, exceto</p><p>que o carro não irá a lugar nenhum, com chuva ou com sol, durante muito</p><p>tempo. Depois, uma antena nova para o rádio e pensei: ele vai ficar</p><p>ouvindo o rádio enquanto trabalha, arriando a bateria. Agora, o garoto me</p><p>vem com um novo assento coberto e metade da grade do radiador. Afinal,</p><p>o que significa tudo isto? Uma brincadeira?</p><p>— Não sei — respondi. — Ele comprou as peças de reposição com o</p><p>senhor?</p><p>— Não — disse Darnell, parecendo ofendido. — Não sei onde as</p><p>conseguiu. Aquela grade... não tem nem sinal de ferrugem! Ele deve ter</p><p>encomendado de algum lugar. Da Custom Chrysler, em Nova Jersey, ou</p><p>outro lugar semelhante. Só que... e a outra metade? Enfiada em seu rabo?</p><p>Nunca ouvi falar de uma grade para radiador que chegasse em duas partes.</p><p>— Não sei de nada. Sinceramente. Ele esmagou o toco do charuto.</p><p>— E não me venha dizer que não está curioso. Via a maneira como</p><p>olhava para aquele carro. Dei de ombros.</p><p>— Arnie não fala muito sobre ele — respondi.</p><p>— Oh, não, aposto como não fala. É um filho da mãe de boca</p><p>fechada. No entanto, é um batalhador. Aquele Repperton apertou o botão</p><p>errado, quando se meteu com Cunningham. Se trabalhar legal este outono,</p><p>posso arranjar-lhe um emprego fixo para este inverno. Jimmy Sykes é um</p><p>bom garoto, mas não muito chegado ao departamento cerebral. — Seus</p><p>olhos me avaliaram. — Acha que ele é bom trabalhador, Dennis?</p><p>— Arnie é legal.</p><p>— Tenho um bocado de carros no fogo — comentou ele. — Um</p><p>bocado. Alugo caminhões sem grades na carroceria para sujeitos que</p><p>precisam transportar seus carrões envenenados até Filadélfia. Recolho a</p><p>tralha depois das corridas. Estou sempre necessitando de gente nesse</p><p>negócio. Bem, gente de confiança.</p><p>Comecei a ter a desagradável suspeita de que estava sendo convidado</p><p>a dançar. Levantei-me precipitadamente, quase derrubando a cadeira.</p><p>— Tenho mesmo que ir andando — falei. — E... Sr. Darnell... ficaria</p><p>muito grato se não dissesse a Arnie que estive aqui. Ele é... um pouco</p><p>suscetível sobre o carro. Para ser franco, seu pai andava curioso e queria</p><p>saber como ele está se saindo.</p><p>— O garoto tirou um monte de bosta da porta de casa, não foi? — O</p><p>olho direito de Darnell se fechou astutamente em algo que não era bem</p><p>uma piscadela. — Seus velhos engolem alguns quilos de laxativo e depois</p><p>ficam em cima dele, de pernas bem abertas, não é assim?</p><p>— Bem... o senhor sabe como é.</p><p>— Pode apostar que sei.</p><p>Ele se levantou em um movimento flexível e bateu em minhas</p><p>costas, com força bastante para fazer-me vacilar sobre os pés. Com ou sem</p><p>respiração chiada e tosse, ele era um sujeito forte.</p><p>— Não direi nada — prometeu, caminhando comigo até a porta.</p><p>Sua mão continuava em meu ombro, o que me deixava nervoso e</p><p>também um pouco irritado.</p><p>— Quero lhe confessar uma coisa que também me preocupa — falou.</p><p>— Devo ver uns cem carros por aqui, a cada ano... bem, não tantos, mas</p><p>entende o que quero dizer, e preciso ficar de olho neles. Pois quase juraria</p><p>que já vi aquele antes. Quando não era a velharia que está agora. Onde foi</p><p>que o garoto o conseguiu?</p><p>— Com um homem chamado Roland LeBay — respondi, pensando</p><p>no irmão de LeBay, ao me contar que ele próprio fazia a manutenção, em</p><p>alguma garagem do tipo faça-você-mesmo. — Está morto agora.</p><p>Darnell estacou subitamente.</p><p>— LeBay? Rollie LeBay?</p><p>— Isso mesmo.</p><p>— Do Exército? Reformado?</p><p>— Exato.</p><p>— É isso mesmo, raios! Durante seis, talvez oito anos, ele trouxe o</p><p>carro para cá, tão regular como um relógio. Depois parou de vir. Isso foi há</p><p>muito tempo. Aquele sujeito era um filho da puta. Se a gente despejasse</p><p>água fervendo por sua maldita garganta abaixo, ele mijaria cubos de gelo.</p><p>Não se dava com ninguém. — Darnell apertou meu ombro com mais força.</p><p>— Seu amigo Cunningham sabe que a mulher de LeBay suicidou-se</p><p>naquele carro?</p><p>— É mesmo? — exclamei, fingindo surpresa.</p><p>Eu não queria deixá-lo saber que meu interesse fora suficiente para</p><p>procurar o irmão de LeBay, após o funeral. Receava que Darnell pudesse</p><p>repetir a informação para Arnie — completa, com a fonte. Darnell me</p><p>contou a história toda. Primeiro a filha, depois a mãe.</p><p>— Poxa! — tornei a exclamar, quando ele terminou. — Tenho</p><p>certeza de que Arnie não sabe disso. Vai contar a ele?</p><p>Aquele olhar avaliador novamente.</p><p>— Você vai?</p><p>— Não — respondi. — Não vejo motivos para contar.</p><p>— Nem eu. — Ele abriu a porta, e o ar cheirando a graxa pareceu</p><p>quase purificado, depois da fumaça de charuto no escritório. — Aquele</p><p>filho da puta do LeBay, maldito seja! Espero que esteja oferecendo a face</p><p>direita e depois a esquerda lá no inferno. E dando o traseiro. — Sua boca</p><p>se encurvou perversamente por um instante e depois ele olhou na direção</p><p>do boxe vinte, onde repousava Christine com sua velha pintura</p><p>enferrujada, a antena e metade da grade do radiador reluzindo de novas.</p><p>— Essa cadela aqui outra vez — continuou ele, e então olhou para</p><p>mim. — Bem, dizem que o centavo falso sempre aparece, não é?</p><p>— Sim, acho que dizem — respondi.</p><p>— Até logo, garoto — disse, enfiando um novo charuto na boca. —</p><p>Diga alô a seu pai por mim.</p><p>— Eu direi.</p><p>— E diga a Cunningham para ficar de olho naquele traste do</p><p>Rupperton. Tenho a impressão de que ele não aceita fácil uma derrota.</p><p>— Eu também — falei.</p><p>Saí da garagem, parando uma vez a fim de olhar para trás — contudo,</p><p>vista da claridade, Christine era pouco mais do que uma sombra entre</p><p>sombras. O centavo falso sempre aparece, tinha dito Darnell. Fui para casa</p><p>com aquela frase na cabeça.</p><p>Calamidades do Futebol</p><p>Aprender a tocar saxofone,</p><p>Só tocar o que eu gostar,</p><p>Beber uísque escocês</p><p>A noite inteira</p><p>E morrer atrás do volante...</p><p>— Steely Dan</p><p>As aulas começaram, e nada de importante aconteceu por uma</p><p>semana ou duas. Arnie não soube que eu estivera na garagem, o que me</p><p>alegrou, pois não creio que aceitasse a notícia com muita satisfação.</p><p>Darnell ficou de boca fechada, como prometera (talvez por questões</p><p>pessoais). Telefonei para Michael certa tarde, depois das aulas, sabendo</p><p>que Arnie já teria ido para a garagem, e lhe contei que ele fizera alguma</p><p>coisa no carro, mas que este ainda estava longe de poder andar legalmente</p><p>pelas ruas. Comentei minha impressão de que seu filho apenas procurava</p><p>distrair-se na garagem. Michael acolheu as notícias com um misto de</p><p>alívio e surpresa. Isto encerrou a questão... por algum tempo.</p><p>Eu via Arnie de vez em quando, assim como algo que entra em nosso</p><p>campo visual, pelo canto do olho. Ele perambulava pelos corredores,</p><p>tínhamos aulas de três matérias juntos e, por vezes, aparecia lá em casa,</p><p>depois das aulas ou nos fins de semana. Em certas ocasiões, parecia que</p><p>nada mudara realmente, porém Arnie ficava mais tempo na Darnell's do</p><p>que em minha casa, e seguia para Philly Plains — a pista de corridas para</p><p>automóveis — nas noites de sexta-feira, juntamente com Jimmy Sykes, o</p><p>empregado meio idiota de Darnell. Lá corriam carros esportes e outros</p><p>modelos de classe, envenenados, em sua maioria Camaros e Mustangs,</p><p>com todos os vidros retirados e com fechos corrediços. Arnie e Jimmy</p><p>Sykes os recolhiam ao caminhão de carroceria aberta de Darnell e</p><p>voltavam com o lixo recente para o cemitério de automóveis.</p><p>Foi mais ou menos nessa época que Arnie machucou as costas. Não</p><p>foi nada sério — pelo menos, era o que dizia —, mas minha mãe percebeu</p><p>que havia algo errado com ele, quase em seguida. Arnie apareceu um</p><p>domingo para ver o jogo dos Phillies, que naquele ano abriam caminho</p><p>para uma glória moderada, e durante o terceiro tempo levantou-se para</p><p>pegar um copo de suco de laranja para cada um de nós. Mamãe estava</p><p>sentada no sofá com papai, lendo um livro. Ergueu os olhos quando Arnie</p><p>retomava e disse:</p><p>— Você está mancando, Arnie.</p><p>Penso ter visto uma expressão inesperada de surpresa no rosto dele,</p><p>por um ou dois segundos</p><p>— um ar furtivo, quase culpado. Talvez me enganasse. Se aconteceu,</p><p>um segundo depois havia desaparecido.</p><p>— Acho que forcei as costas em Plains, a noite passada — disse ele,</p><p>entregando-me o suco de laranja. — Jimmy Sykes deixou escorregar a</p><p>última das peças batidas que carregávamos, quando ela estava</p><p>praticamente em cima do caminhão. Pude vê-la escorregando para fora, e</p><p>então levamos umas duas horas fazendo força para endireitar tudo.</p><p>Empurrei com as costas. Acho que não devia ter forçado tanto.</p><p>Parecia uma explicação muito minuciosa para um simples coxear,</p><p>porém eu talvez estivesse enganado sobre isso também.</p><p>— Precisa ter mais cuidado com suas costas — disse mamãe,</p><p>severamente. — O Senhor...</p><p>— Podemos ver o jogo agora, mãe? — falei. —...só lhe dá uma —</p><p>concluiu ela.</p><p>— Sim, Sra. Guilder — respondeu Arnie, obedientemente. Elaine</p><p>entrou na sala.</p><p>— Ainda tem um resto de suco ou os dois cabeças-de-pepino</p><p>beberam tudo?</p><p>— Por favor, me dê uma folga! — gritei.</p><p>Tinha havido uma grande jogada naquele segundo e perdi toda a</p><p>seqüência.</p><p>— Não grite com sua irmã, Dennis — murmurou papai, das</p><p>profundezas de The Hobbyist, a revista que estava lendo.</p><p>— Sobrou muita coisa, Ellie — disse Arnie para ela.</p><p>— Às vezes, Arnie — retrucou Elaine —, você me surpreende como</p><p>um ser quase humano. Ela foi para a cozinha.</p><p>— Quase humano, Dennis! — sussurrou Arnie, aparentemente à beira</p><p>de lágrimas de gratidão.</p><p>— Você ouviu isso? Quase humaaaano!</p><p>Talvez seja apenas uma lembrança retrospectiva — ou a imaginação</p><p>— levando-me a crer que seu humor fosse forçado, irreal, apenas uma</p><p>fachada. Seja ou não verdadeira a recordação, o assunto sobre suas costas</p><p>encerrou-se, embora ele volta e meia mancasse, durante aquele outono.</p><p>Pessoalmente, eu andava muito ocupado. Havia rompido com a chefe</p><p>de torcida, mas em geral sempre encontrava alguém para uma volta nas</p><p>noites de sábado... se não estivesse esgotado pelo treino constante de</p><p>futebol.</p><p>O treinador Puffer nada tinha do miserável que era Will Darnell,</p><p>porém estava longe de ser uma flor; como metade dos treinadores de</p><p>ginásio nas cidades pequenas da América, ele moldava suas técnicas de</p><p>treinamento pelas do falecido Vince Lombardi, cujo lema principal era de</p><p>que ganhar não significava tudo, era a única coisa. Vocês ficariam</p><p>surpresos, se soubessem quanta gente — que deveria entender melhor do</p><p>assunto — acredita nessa mentira deslavada.</p><p>Um verão de trabalho para a Carson Brothers me deixara em</p><p>excelente forma, e creio que poderia valer-me para toda a temporada — se</p><p>aquela houvesse sido uma temporada vitoriosa. Entretanto, por ocasião da</p><p>briga feia que eu e Arnie tivemos com Buddy Repperton, perto da área de</p><p>fumar, nos fundos da oficina — e creio que aconteceu durante a terceira</p><p>semana de aula —, já era francamente visível que não teríamos uma</p><p>temporada de vitórias. Isso tornou extremamente difícil a convivência</p><p>com o treinador Puffer, porque em seus dez anos no Ginásio Libertyville</p><p>ele jamais tivera uma temporada de derrotas. Aquele foi o ano em que</p><p>Puffer teve que se sujeitar a uma amarga humildade. Foi uma dura lição</p><p>para ele... e também para nós.</p><p>Nosso primeiro jogo, contra os Tigres de Luneburg, foi em setembro.</p><p>Bem, Luneburg não passa de um vilarejo. Trata-se de uma merdinha de</p><p>ginásio rural no extremo oeste de nosso distrito, e durante meus anos no</p><p>Libertyville o grito de guerra costumeiro, após a convencida defesa de</p><p>Luneburg ter permitido mais um touchdown, um ponto para nós, era:</p><p>CONTEM-PRA-NÓS-COMO-É-BOSTA-DE-VACA-NO-SEU-PÉ! Seguido</p><p>por um estrondoso, sarcástico aplauso: HUUURRRAAAA,</p><p>LUUUUNEBURG!</p><p>Fazia vinte anos que Luneburg não conseguia derrotar um time de</p><p>Libertyville, mas nesse ano eles se levantaram e acabaram conosco</p><p>completamente. Eu jogava na extrema-esquerda e, chegado o meio tempo,</p><p>estava moralmente convicto de que carregaria nas costas, pelo resto da</p><p>vida, cicatrizes de marcas de travas. O escore era então de 17-3. Terminou</p><p>com 30-10. A torcida do Luneburg delirava. Eles derrubaram as traves do</p><p>gol, como se aquele fosse um jogo pelo Campeonato Regional, e</p><p>carregaram nos ombros seus jogadores para fora do campo.</p><p>Nossa torcida, que viera em ônibus fretados especialmente para a</p><p>ocasião, ficou encolhida nas arquibancadas de visitantes, parecendo</p><p>perdida sob um forte e prematuro calorão de setembro. No vestiário,</p><p>atordoado e pálido, o treinador Puffer sugeriu que ficássemos de joelho e</p><p>rezássemos, pedindo orientação para as semanas vindouras. Percebi então</p><p>que a calamidade não terminara, que apenas</p><p>começava.</p><p>Caímos sobre os joelhos doloridos, arranhados e cansados, desejando</p><p>apenas uma chuveirada que nos lavasse aquele cheiro de derrota, enquanto</p><p>ouvíamos Puffer explicar a situação a Deus, em uma peroração de dez</p><p>minutos, encerrada com a promessa de que faríamos a nossa parte, se Ele</p><p>fizesse a Sua.</p><p>Na semana seguinte, treinamos três horas diárias (em vez dos</p><p>costumeiros noventa minutos a duas horas), sob o sol escaldante. À noite,</p><p>eu caía na cama e sonhava com seus berros: "Ataque aquele otário!</p><p>Ataque! Ataque!". Eu partia em desabalada carreira, até começar a sentir</p><p>que minhas pernas sofreriam uma decomposição espontânea</p><p>(provavelmente, no mesmo instante em que meus pulmões explodiriam</p><p>em chamas). Lenny Barongg, um de nossos tailbacks, tivera um ataque</p><p>brando de insolação e, misericordiosamente — para ele, pelo menos foi</p><p>dispensado pelo resto da semana.</p><p>Eu só via Arnie quando ele aparecia para jantar comigo, meus pais e</p><p>Ellie nas noites de quinta ou sexta-feira. Às vezes aparecia para ver um ou</p><p>dois jogos conosco, nas tardes de domingo, mas, além disso, perdi-o de</p><p>vista por completo — ou quase isso. Naquela época, andava ocupado</p><p>demais em arrastar minhas dores e sofrimentos até as salas de aula,</p><p>treinando e voltando para casa, a fim de fazer os deveres de casa em meu</p><p>quarto.</p><p>Voltando às calamidades do futebol, acho que o pior de tudo era a</p><p>maneira como os outros olhavam para mim, Lenny e o resto do time pelos</p><p>corredores. Hoje em dia, esse "espírito de colégio" se compõe</p><p>principalmente de besteiras inventadas pelos administradores de escolas,</p><p>ao recordarem o inferno das disputas de futebol nas tardes de sábado,</p><p>quando jovens, mas esquecendo convenientemente que muito disso</p><p>resultava de estarem bêbados, no cio ou as duas coisas. Quando há um</p><p>comício em favor da legalização da maconha, é possível ver-se um pouco</p><p>desse espírito de colégio. No entanto, em se tratando de futebol, basquete</p><p>ou atletismo, a maioria dos alunos não dá nenhuma banana. Estão todos</p><p>ocupados demais em conseguir entrar para a universidade, em chegar ao</p><p>ponto final com alguma garota ou procurando confusão. Muito ocupados,</p><p>em geral.</p><p>Ainda assim, ficamos acostumados à vitória — começamos a</p><p>acreditar que ela nos pertence por direito. Libertyville estivera formando</p><p>equipes vencedoras por muito tempo; a última vez que o colégio havia</p><p>sido derrotado — pelo menos, até meu último ano lá — fora doze anos</p><p>antes, em 1966. Assim, na semana após a derrota para Luneburg, embora</p><p>não houvesse choro nem ranger de dentes, havia aqueles olhares atônitos</p><p>nos corredores e alguns comentários na habitual reunião da tarde de sexta-</p><p>feira, no final do sétimo tempo. Os comentários deixaram o treinador</p><p>quase púrpura e ele convidou aqueles "esportistas-de-meia-tigela e</p><p>amigos-das-horas-boas" a aproveitarem a tarde de sábado para verem a</p><p>reabilitação do século.</p><p>Não sei se os esportistas-de-meia-tigela e os amigos-das-horas-boas</p><p>apareceram ou não, mas eu estava lá. Jogávamos em casa e nossos</p><p>adversários eram os Ursos de Ridge Rock. Ridge Rock é uma cidade de</p><p>mineração e, embora os garotos que freqüentam o Ginásio de Ridge Rock</p><p>sejam caipiras, não são caipiras frouxos. São caipiras durões, ferozes e</p><p>decididos. No ano anterior, o time de futebol de Libertyville os vencera</p><p>por pouco, na disputa do título regional, e um dos comentaristas esportivos</p><p>locais comentara que a vitória não acontecera porque o time de</p><p>Libertyville era melhor, mas porque sua torcida era mais animada. Posso</p><p>afirmar que isso também fez o treinador arrancar os cabelos.</p><p>De qualquer modo, aquele foi o ano dos Ursos. Foram como um rolo</p><p>compressor contra nós. Fred Dann saiu do jogo com uma concussão, no</p><p>primeiro tempo. No segundo, Norman Aleppo foi levado para o Hospital</p><p>Comunitário de Libertyville com um braço quebrado. E, no último</p><p>período, os Ursos marcaram três touchdowns consecutivos, dois deles</p><p>como punt returns. O escore final foi de 40-6. Deixando de lado a falsa</p><p>modéstia, eu lhes confesso que marquei o sexto ponto. Entretanto, não</p><p>ponho o realismo ao lado da modéstia: o que tive foi sorte.</p><p>Assim sendo... mais uma semana de infernal treinamento no campo.</p><p>Outra semana com o treinador gritando: "Ataque aquele otário." Certo dia,</p><p>treinamos durante quase quatro horas, e quando Lenny sugeriu ao</p><p>treinador que seria ótimo termos algum tempo de sobra para os trabalhos</p><p>de casa, cheguei a pensar — apenas por um instante — que Puffer ia surrá-</p><p>lo com o cinto. Ele passara a ficar jogando seu molho de chaves</p><p>constantemente, de uma das mãos para a outra, recordando-me o Capitão</p><p>Queeg, no filme Motim. Suponho que a maneira como você perde é um</p><p>indicador muito melhor para o caráter do que a forma como vence. Puffer,</p><p>que nunca vira um 0-2 em sua carreira de treinador, reagia com uma fúria</p><p>cega e inútil, como um tigre enjaulado e acuado pelos filhotes cruéis.</p><p>Na tarde da sexta-feira seguinte — que seria 22 de setembro — foi</p><p>cancelada a reunião costumeira, durante os últimos quinze minutos do</p><p>sétimo tempo. Nenhum jogador se preocupava com aquilo; ficar ali de pé e</p><p>ser apresentado por doze gigantes chefes de torcida, pela décima</p><p>milionésima vez, era bem tedioso. Nessa noite, fomos convidados pelo</p><p>treinador a voltar ao ginásio e ficamos duas horas vendo os filmes,</p><p>testemunhando nossa humilhação infligida pelos Tigres e Ursos, nos jogos</p><p>filmados. Talvez aquilo tivesse a finalidade de levantar nosso moral,</p><p>porém eu fiquei apenas deprimido.</p><p>Nessa noite, antes de nosso segundo jogo do ano em casa, tive um</p><p>sonho singular. Não foi bem um pesadelo, não como aquele em que eu</p><p>acordara a casa com meus gritos, claro, mas ainda assim foi...</p><p>desconfortável. Estávamos jogando contra os Dragões da cidade de</p><p>Filadélfia, e soprava um vento forte. Os sons dos gritos da torcida, a voz</p><p>estridente e distorcida de Chubby McCarhy, brotando do alto-falante,</p><p>quando anunciava os downs e yards do jogo, o próprio som dos jogadores</p><p>atacando-se entre si, tudo tinha um toque fantástico, que ecoava naquele</p><p>vento firme e constante.</p><p>Nas arquibancadas, os rostos apareciam amarelados e estranhamente</p><p>sombreados, como máscaras chinesas. As chefes de torcida dançavam e</p><p>cabriolavam como autômatos de corda. O céu tinha um cinzento esquisito,</p><p>coberto de nuvens. Estávamos apanhando em toda a linha. O treinador</p><p>gritava suas ordens, mas ninguém conseguia ouvi-lo. Os Dragões</p><p>afastavam-se de nós rapidamente e a bola estava sempre com eles. Lenny</p><p>Barongg" parecia estar jogando em meio a uma dor terrível: tinha a boca</p><p>repuxada para baixo, em trêmula meia circunferência, como uma máscara</p><p>de tragédia.</p><p>Fui atacado, derrubado e atropelado. Fiquei caído, muito atrás da</p><p>linha de formação dos jogadores, encolhido, tentando recuperar a</p><p>respiração. Olhei para cima e lá, parada no meio da pista de atletismo,</p><p>atrás das arquibancadas dos visitantes, estava Christine. Novamente se</p><p>mostrava cintilante, como recém-saída da fábrica, parecendo ter deixado o</p><p>salão de exibição apenas uma hora antes.</p><p>Arnie estava sentado no teto do carro, as pernas cruzadas como Buda,</p><p>fitando-me inexpressivamente. Gritou alguma coisa para mim, porém o</p><p>ruído do vento quase sobrepujou o que dissera. Tive a impressão de ouvir</p><p>algo assim: Não se preocupe, Dennis! Cuidaremos de tudo, portanto, fique</p><p>calmo! Está tudo sob controle!</p><p>Cuidariam de quê? Foi o que me perguntei, caído no campo de jogo</p><p>do sonho (que, por algum motivo, meu eu onírico transformara em pista de</p><p>corrida de cavalos), lutando para recuperar o fôlego, a cueca penetrando</p><p>cruelmente na junção das coxas, logo abaixo dos testículos. Cuidariam de</p><p>quê?</p><p>De quê?</p><p>Não houve resposta. Apenas o brilho malévolo dos faróis amarelos de</p><p>Christine, e Arnie sentado tranqüilamente, de pernas cruzadas sobre a</p><p>capota, naquele vento forte e barulhento.</p><p>No dia seguinte, partimos para a luta novamente, em benefício do</p><p>bom e velho Ginásio de Libertyville. Não foi tão ruim como em meu</p><p>sonho — ninguém saiu ferido naquele sábado, e por um breve momento do</p><p>terceiro quarter até pareceu que teríamos uma chance — mas então</p><p>para casar-se. Assim,</p><p>Arnie se iniciara como sinaleiro em junho, mas aos poucos fora passando</p><p>para o trabalho mais pesado, no que mostrava muita coragem e</p><p>determinação. Era o primeiro emprego de verdade que já tivera e não</p><p>queria estragar tudo. Brad ficara um tanto impressionado e, inclusive, o</p><p>sol de verão contribuíra para amenizar um pouco as erupções cutâneas de</p><p>Arnie. Talvez fosse o ultravioleta.</p><p>— Tenho certeza de que seu cheque é bom, filho — disse LeBay —</p><p>mas meu negócio é feito a dinheiro. Procure entender.</p><p>Eu não sabia se Arnie entendera, mas eu entendia. Seria fácil demais</p><p>sustar o pagamento de um cheque local, se aquele Plymouth comido de</p><p>ferrugem soltasse uma biela ou explodisse um pistão, a caminho de casa.</p><p>— Pode telefonar para o banco — disse Arnie, começando a</p><p>desesperar-se.</p><p>— Negativo — disse LeBay, coçando o sovaco acima do escabroso</p><p>colete. — Vão dar cinco e meia. Os bancos já fecharam há muito tempo.</p><p>— Fica como um sinal, então — disse Arnie, estendendo os dezesseis</p><p>dólares. Positivamente, agia como maluco. Talvez seja difícil acreditar-se</p><p>que um cara, com idade quase suficiente para votar, em quinze minutos</p><p>ficasse tão enredado com um velhote anônimo. Eu mesmo achava difícil</p><p>acreditar. Somente Roland D. LeBay parecia não ter problemas a respeito e</p><p>suponho que fosse devido à idade, quando já tinha visto tudo. Só mais</p><p>tarde cheguei a crer que aquela sua estranha segurança podia originar-se</p><p>de outras fontes. De qualquer modo, se já havia corrido em suas veias</p><p>algum leite de gentileza humana, há muito se transformara em coalhada</p><p>azeda.</p><p>— Preciso ter um sinal de dez por cento, pelo menos — declarou</p><p>LeBay. O peixe estava fora d'água; em mais um momento, iria para a</p><p>cesta. — Se me der os dez por cento, reservarei o carro por vinte e quatro</p><p>horas.</p><p>— Dennis — pediu Arnie —, pode me emprestar nove pratas até</p><p>amanhã?</p><p>Eu tinha doze na carteira e nenhum lugar particular aonde ir. Dia após</p><p>dia espalhando areia e cavando trincheiras para bueiros, haviam feito</p><p>maravilhas para quando chegasse a hora de treinar futebol, mas eu não</p><p>tinha mais nenhuma vida social. Ultimamente, nem mesmo vinha</p><p>assaltando as defesas do corpo de minha namorada chefe de torcida, no</p><p>estilo a que ela se acostumara. Estava rico, mas solitário.</p><p>— Venha até aqui e veremos — falei.</p><p>LeBay franziu o cenho, mas sabia-se preso à minha intervenção,</p><p>quisesse ou não. Seu anelado cabelo branco agitou-se de um lado para</p><p>outro, à brisa ligeira. Manteve uma das mãos possessivamente sobre o</p><p>capô do Plymouth.</p><p>Caminhei com Arnie até meu carro, um Duster 75, estacionado na</p><p>esquina. Passei o braço pelos ombros dele. Por algum motivo, lembrei-me</p><p>do dia chuvoso que havíamos passado em seu quarto, quando não tínhamos</p><p>mais de seis anos — os desenhos animados saltitavam na tela em preto-e-</p><p>branco de um antigo aparelho de TV, enquanto coloríamos com lápis de</p><p>cor velhos, guardados em uma lata de café serrilhada. A imagem me</p><p>deixou triste e um tanto amedrontado. Compreendam, há dias em que seis</p><p>anos me parece uma idade excelente, isto porque a lembrança dura, de</p><p>fato, apenas 7,2 segundos.</p><p>— Você tem o dinheiro, Dennis? Eu devolvo amanhã de tarde.</p><p>— Sim, tenho — respondi —, mas, pelo amor de Deus, o que está</p><p>fazendo, Arnie? Aquele pilantra é totalmente inválido, não vê? Ele não</p><p>precisa de dinheiro e você não é uma instituição de caridade.</p><p>— Não compreendo. De que está falando?</p><p>— Ele está se aproveitando de você. Faz isso pelo simples prazer da</p><p>coisa. Se levar o carro à Darnell's, não conseguirá nem cinqüenta dólares</p><p>por peças. Aquilo é um monte de bosta!</p><p>— Não. Não é não.</p><p>Sem a pele ruim, meu amigo Arnie pareceria absolutamente normal.</p><p>Contudo, Deus dá a todos pelo menos um traço bom, acho eu, e em Arnie</p><p>eram os olhos. Por trás das lentes, que em geral os obscureciam, seus</p><p>olhos mostravam um belo e inteligente cinza, a cor das nuvens em um</p><p>nublado céu de outono. Podiam ser quase incomodamente agudos e</p><p>perscrutadores quando surgisse algo que lhe interessasse, mas agora</p><p>estavam distantes e sonhadores.</p><p>— Não é nenhum monte de bosta — insistiu ele.</p><p>Foi quando comecei realmente a compreender que ali havia mais do</p><p>que a súbita decisão de Arnie em ter um carro. Ele nunca demonstrara o</p><p>menor interesse por um, antes; contentava-se em rodar no meu,</p><p>contribuindo para a gasolina ou apertando o pedal de suas três marchas. E</p><p>agora não era como se precisasse de um carro, a fim de sair sozinho; que</p><p>eu soubesse, Arnie jamais tivera um encontro com garotas na vida.</p><p>Tratava-se de algo diferente. Era amor ou coisa assim.</p><p>— Pelo menos — argumentei — deixe que ele ligue o motor para</p><p>você, Arnie. E que levante o capô. Tem uma poça de óleo debaixo do</p><p>motor. O bloco bem que pode estar partido. Se quer saber, acho que...</p><p>— Pode emprestar os nove?</p><p>Os olhos dele estavam fixos nos meus. Desisti. Tirei minha carteira e</p><p>entreguei-lhe os nove dólares.</p><p>— Obrigado, Dennis — disse ele.</p><p>— O funeral é seu, cara.</p><p>Ele nem ouviu. Juntou meus nove aos seus dezesseis e voltou para</p><p>junto de LeBay, ao lado do carro. Estendeu-lhe o dinheiro e o velho o</p><p>contou cuidadosamente, molhando o polegar.</p><p>— Só vou segurá-lo por vinte e quatro horas, compreenda — disse</p><p>LeBay.</p><p>— Sim, senhor. Assim está ótimo — respondeu Arnie.</p><p>— Vou até em casa, passar um recibo — disse o velho. — Como é</p><p>mesmo o seu nome, soldado? Arnie sorriu ligeiramente.</p><p>— Cunningham. Arnold Cunningham.</p><p>LeBay grunhiu um assentimento e cruzou seu gramado maltratado</p><p>até a porta dos fundos. A porta externa era uma daquelas engraçadas</p><p>estruturas de alumínio, com uma floreada letra no centro — um L</p><p>maiúsculo, no caso.</p><p>A porta bateu atrás dele.</p><p>— O sujeito é esquisito, Arnie. O sujeito é um fodido esqui...</p><p>Arnie não estava mais ali. Sentara-se atrás do volante do carro. Em</p><p>seu rosto havia a mesma expressão enérgica.</p><p>Dei a volta até a frente e descobri o fecho do capô. Puxei-o e o capô</p><p>subiu, com um grito enferrujado que me fez pensar nos efeitos sonoros</p><p>ouvidos naqueles discos de casas mal-assombradas. Fragmentos metálicos</p><p>voaram para baixo. A bateria era uma velha Allstate e os terminais</p><p>estavam tão cobertos de corrosão esverdeada que não se poderia dizer qual</p><p>o positivo e o negativo. Puxei o filtro de ar e olhei sombriamente para um</p><p>carburador de quatro difusores, tão negro como uma galeria de mina.</p><p>Baixei o capô e fui para o lugar onde Arnie continuava, agora</p><p>deslizando a mão ao longo da borda do painel de instrumentos, por sobre o</p><p>velocímetro, calibrado para uma marcação totalmente absurda de 120</p><p>milhas por hora. Os carros teriam realmente atingido tal velocidade?</p><p>— Acho que o bloco do motor está trincado, Arnie. Acho mesmo.</p><p>Este carro é uma droga, meu amigo. Uma droga total. Se está querendo</p><p>rodas, por duzentos e cinqüenta podemos encontrar coisa muito melhor do</p><p>que isto. Falo sério. Muito melhor.</p><p>— Ele tem vinte anos de idade — replicou Arnie. — Sabe que um</p><p>carro é oficialmente uma antigüidade, quando tem vinte anos de idade?</p><p>— Claro — falei. — O pátio de ferro-velho atrás da Darnell's está</p><p>repleto de antigüidades oficiais, está entendendo?</p><p>— Dennis...</p><p>A porta bateu. LeBay estava de volta. Não adiantava; qualquer</p><p>discussão posterior não teria sentido. Posso não ser o humano mais</p><p>sensível, mas quando os sinais são fortes o bastante, consigo captá-los.</p><p>Aquilo era algo que Arnie decidira ser preciso fazer e eu não iria dissuadi-</p><p>lo. Aliás, creio que ninguém conseguiria dissuadi-lo.</p><p>Com um floreio, LeBay estendeu-lhe o recibo. Escrito em uma folha</p><p>comum de bloco, em uma aracnóide, e ligeiramente trêmula, caligrafia de</p><p>velho, havia o seguinte: Recebido de Arnold Cunningham, $25,00, como</p><p>sinal e reserva por vinte e quatro horas de Christine, um Plymouth 1958.</p><p>Abaixo, ele assinara seu nome.</p><p>— O que significa isto de Christine? — perguntei, pensando ter lido</p><p>errado ou não entendido bem.</p><p>Os lábios de LeBay estreitaram-se e seus ombros se ergueram um</p><p>pouco, como se esperasse que rissem dele... ou como se me desafiasse a</p><p>isso.</p><p>— Christine — explicou — é como sempre chamei o carro.</p><p>— Christine</p><p>o</p><p>quarterback da cidade de Filadélfia deu sorte com uns dois passes longos</p><p>— quando a situação começa a perigar, tudo dá errado — e tornamos a</p><p>perder.</p><p>Depois do jogo, o treinador Puffer limitou-se a ficar sentado no</p><p>banco. Não olhou para nenhum de nós. Restavam onze jogos em nosso</p><p>calendário, mas ele já era um homem derrotado.</p><p>Entra Leigh, Sai Buddy</p><p>Não lhe contei vantagem, meu bem,</p><p>Então, não me venha humilhar,</p><p>Tenho as rodas mais velozes da cidade,</p><p>Quem quiser passar à frente, nem adianta tentar,</p><p>Porque também tenho asas, cara,</p><p>Minha máquina pode voar,</p><p>É o meu cupê endoidado,</p><p>Você nem sabe o que tenho...</p><p>— The Beach Boys</p><p>Tenho absoluta certeza de que foi na terça-feira seguinte à nossa</p><p>derrota diante dos Dragões da cidade de Filadélfia que as coisas</p><p>começaram a agitar-se outra vez. Devíamos estar a 26 de setembro.</p><p>Eu e Arnie assistimos a três aulas juntos, sendo uma delas Tópicos da</p><p>História Americana, um curso seriado, no quarto período. Nas primeiras</p><p>nove semanas, o professor fora o Sr. Thompson, chefe do departamento.</p><p>Então, o tema era Duzentos Anos de Desenvolvimento e Crise. Arnie dizia</p><p>que aquela era a aula do tchau-tchau, porque ficava justamente antes da</p><p>hora do almoço e os estômagos da gente pareciam ter coisas mais</p><p>interessantes para fazer.</p><p>Terminada a aula daquele dia, uma garota aproximou-se de Arnie e</p><p>perguntou-lhe se tinha o trabalho de Inglês para casa. Ele tinha. Folheou</p><p>com cuidado seu caderno de anotações e, enquanto isso, ela o observava</p><p>seriamente com olhos azul-escuros, nunca os desviando do rosto dele.</p><p>Tinha cabelos louro-escuros, cor de mel fresco — não do tipo refinado,</p><p>mas daquele que sai direto da colméia —, mantidos presos para trás por</p><p>uma fita azul, combinando com os olhos. Ao vê-la, meu estômago deu</p><p>uma reviravolta de felicidade. Depois que a garota terminou de copiar o</p><p>trabalho, Arnie olhou para ela.</p><p>Aquela não era a primeira vez que eu via Leigh Cabot, é claro, ela</p><p>havia sido transferida de uma cidade em Massachusetts para Libertyville,</p><p>três semanas antes, de modo que já ficara conhecida. Alguém me contara</p><p>que seu pai trabalhava para a 3M, o pessoal que fabrica a fita adesiva</p><p>Scotch.</p><p>Não era a primeira vez também que eu reparava nela, porque Leigh</p><p>Cabot era — usando os termos mais simples — uma bela garota. Em uma</p><p>obra de ficção, percebi que os escritores sempre inventam um pequeno</p><p>defeito aqui ou acolá nas mulheres e jovens que criam, talvez por</p><p>pensarem que a beleza real seja um estereótipo ou por acharem que um ou</p><p>dois senões tornam a dama mais real. Assim, a heroína é bonita, com</p><p>exceção do lábio inferior um pouco longo demais, ou apesar de ter o nariz</p><p>ligeiramente afilado. Talvez tenha o busto achatado. Sempre há alguma</p><p>coisa.</p><p>Com Leigh, no entanto, era beleza pura. Tinha a pele clara e perfeita,</p><p>em geral com um toque de cor perfeitamente natural. Mediria um metro e</p><p>setenta, mais ou menos, alta para uma garota, mas não em excesso, com</p><p>um corpo adorável — seios bonitos e firmes, uma cinturinha que quase se</p><p>poderia contornar com as mãos (pelo menos, dava vontade de tentar),</p><p>quadris bem feitos, pernas bem torneadas. Uma garota bonita, sexy, de belo</p><p>corpo — artisticamente sem graça, imagino, sem o lábio inferior</p><p>demasiado longo, o nariz afilado, uma reentrância ou saliência erradas em</p><p>algum lugar (nem ao menos um gracioso dentinho torto — ela devia ter</p><p>tido um excelente ortodontista, também), mas o caso é que ela nada tinha</p><p>de sem graça, quando a gente a contemplava.</p><p>Alguns caras já tinham dado em cima dela, mas haviam sido</p><p>delicadamente afastados. Imaginava-se que, provavelmente, Leigh Cabot</p><p>estava com dor-de-cotovelo por causa de algum sujeito de Andover,</p><p>Braintrese ou seja lá de onde viera, mas que o tempo a faria recuperar-se.</p><p>Em duas das aulas a que eu assistira com Arnie, ela também estivera</p><p>presente, de maneira que minha idéia era apenas aguardar um pouco, antes</p><p>de tentar uma aproximação.</p><p>Agora, observando os olhares roubados entre os dois, quando Arnie</p><p>procurara o dever e depois, quando ela o anotava cuidadosamente,</p><p>perguntei-me se chegaria a ter chance daquela aproximação. Então, ri para</p><p>mim mesmo. Arnie Cunningham, o próprio e velho Cara de Pizza e Leigh</p><p>Cabot. Era totalmente ridículo. Era...</p><p>O sorriso interior quase secou de repente. Pela terceira vez — a</p><p>definitiva — eu percebia que a pele dele estava se curando sozinha, com</p><p>uma rapidez quase impressionante. As equimoses haviam desaparecido.</p><p>Algumas ainda tinham deixado mínimas cicatrizes reentrantes ao longo</p><p>das faces, é verdade, mas se um cara tem feições fortes, aquelas pequenas</p><p>reentrâncias não parecem significar muito. De uma forma um tanto louca,</p><p>até parecem dar mais caráter.</p><p>Leigh e Arnie estudaram-se disfarçadamente. Também estudei Arnie</p><p>disfarçadamente, perguntando-me quando e como aquele milagre</p><p>acontecera. A luz do sol penetrava com força pelas janelas da sala do Sr.</p><p>Thompson, delineando claramente as linhas do rosto de meu amigo. Ele</p><p>parecia... mais velho. Como se tivesse vencido as equimoses e a acne, não</p><p>somente com lavagens ou aplicações regulares de qualquer creme especial,</p><p>mas conseguindo algum meio de adiantar o relógio por três anos. Também</p><p>estava usando o cabelo de modo diferente — agora era mais curto, e as</p><p>costeletas que cismara de usar, desde que pudera cultivá-las (uns dezoito</p><p>meses atrás), tinham desaparecido.</p><p>Fiquei pensando naquela tarde encoberta, quando tínhamos ido ver o</p><p>filme Kung-fu de Chuck Norris. Fora a primeira vez em que eu notara</p><p>alguma melhora, concluí. Mais ou menos na época em que ele havia</p><p>comprado o carro. Sim, devia ser isso. Adolescentes do mundo, rejubilem-</p><p>se! Resolvam dolorosos problemas de acne para sempre! Comprem um</p><p>carro velho e ele fará com que...</p><p>O sorriso interior, que voltara a aflorar, de repente azedou.</p><p>Comprem um carro velho e ele fará... o quê? Será que ele irá</p><p>modificar suas cabeças, suas maneiras de pensar, desta forma alterando o</p><p>metabolismo? Liberando o eu real? Tive a sensação de ouvir Stukey</p><p>James, nosso antigo professor de Matemática, sussurrando em minha</p><p>cabeça seu insistentemente repetido refrão: Se seguirmos esta linha de</p><p>raciocínio até o amargo fim, senhoras e senhores, aonde isso nos levará?</p><p>Certo — aonde?</p><p>— Obrigada, Arnie — disse Leigh, em sua voz doce e clara.</p><p>Já havia copiado o dever de casa em seu caderno de apontamentos.</p><p>— Tudo bem — disse ele.</p><p>Os olhos dos dois se encontraram — agora entreolhavam-se, em vez</p><p>de se observarem furtivamente —, e até eu pude sentir a fagulha saltar.</p><p>— Vejo você no sexto tempo — disse ela.</p><p>Depois se afastou, os quadris ondulando suavemente sob uma saia</p><p>verde de tricô, os cabelos oscilando contra as costas do suéter.</p><p>— O que tem você a ver com o sexto tempo dela? — perguntei.</p><p>Eu tinha tempo vago naquele período. Estudaria os corredores</p><p>fiscalizados pela terrível Srta. Raypach, a quem todos nós chamávamos de</p><p>Sita. Rat-Pack (Trouxa-de-Ratos), só que nunca em presença dela, como é</p><p>fácil imaginar.</p><p>— Cálculo — respondeu ele, naquela voz sonhadora e melosa, tão</p><p>diferente da que eu conhecia, que me provocou o riso. Arnie olhou para</p><p>mim, de cenho franzido.</p><p>— De que está rindo, Dennis?</p><p>— Cal-Q-luuuu — respondi.</p><p>Revirei os olhos, agitei as mãos como asas e ri mais alto. Ele fingiu</p><p>que ia me esmurrar.</p><p>— É bom tomar cuidado, Guilder — falou.</p><p>— Desgrude, Cara de barata!</p><p>— Eles botam você na universidade e vamos ver o que acontece ao</p><p>fodido time de futebol!</p><p>O Sr. Hodder, que ensina aos calouros os mais primorosos detalhes</p><p>gramaticais (e também como masturbar-se, no dizer de certos</p><p>espirituosos), ia passando por nós nesse exato momento.</p><p>— Cuidado com sua linguagem nos corredores! — disse</p><p>significativamente para Arnie, franzindo o cenho.</p><p>Depois seguiu em frente, com uma pasta em uma das mãos e, na</p><p>outra, um hambúrguer apanhado na fila do almoço. Arnie ficou vermelho</p><p>como uma beterraba; sempre enrubescia se um professor lhe dizia alguma</p><p>coisa (tratava-se de uma reação tão automática que quando estávamos no</p><p>primário acabava castigado por coisas que não fizera,</p><p>apenas porque</p><p>parecia culpado). Suponho que isso tenha algo a ver com a maneira como</p><p>foi criado por Regina e Michael — eu sou legal, você é legal, eu sou uma</p><p>pessoa, você é uma pessoa, nós nos respeitamos profundamente, e quando</p><p>alguém fizer algo errado sentiremos uma reação alérgica de culpa.</p><p>Acredito que isso faça parte da criação liberal de filhos na América.</p><p>— Cuidado com sua linguagem, Cunningham — falei. — Tu tá</p><p>envorvido num monte de probrema. Ele começou a rir também. Descemos</p><p>o corredor reverberante de ruídos. As pessoas caminhavam</p><p>depressa de um lado para outro ou se apoiavam contra seus armários,</p><p>comendo. Não se devia comer pelos corredores, mas muitos não ligavam</p><p>para isso.</p><p>— Trouxe seu almoço? — perguntei.</p><p>— Trouxe. Num saco de papel pardo.</p><p>— Vá pegar. Vamos comer lá fora, nas arquibancadas.</p><p>— A esta altura, ainda não se encheu daquele campo de futebol? —</p><p>perguntou Arnie. — Se ficasse muito mais tempo deitado de barriga, no</p><p>sábado passado, acho que um dos zeladores o plantaria.</p><p>— Não ligo. Vamos à forra essa semana. Além do mais, quero sair</p><p>daqui.</p><p>— Certo. Encontro você lá fora.</p><p>Arnie afastou-se e rumei para meu armário, a fim de pegar meu</p><p>almoço. Havia trazido quatro sanduíches, para começar. Desde que o</p><p>treinador iniciara suas sessões-maratonas de treinamento, eu vivia</p><p>faminto.</p><p>Segui ao longo do corredor, pensando em Leigh Cabot e em como</p><p>muita gente ficaria alvoroçada se aqueles dois começassem a sair juntos.</p><p>Nos colégios, a sociedade é muito conservadora, como todos sabem. Nada</p><p>de grandes repressões, mas é assim. As garotas sempre usam as modas</p><p>mais loucas, os rapazes às vezes deixam o cabelo chegar até o traseiro,</p><p>todos fumam uma maconhazinha ou cheiram um pouco de coca — mas</p><p>tudo não passa de uma camada externa de verniz, a defesa usada enquanto</p><p>fazemos experiências e procuramos imaginar o que acontecerá,</p><p>exatamente, em nossa vida. É como um espelho — usado para refletir de</p><p>volta a luz do sol nos olhos de pais e professores, esperando confundi-los,</p><p>antes que nos tornem ainda mais confusos do que já estamos. No fundo, a</p><p>maioria dos estudantes de ginásio é quase tão careta como um bando de</p><p>banqueiros republicanos em uma reunião social da igreja. Há garotas que</p><p>podem ter todo álbum já produzido do conjunto Black Sabbath, mas se</p><p>Ozzy Osbourne for à escola que elas freqüentam e convidar uma delas para</p><p>sair, essa garota (e todas as suas amigas) seria capaz de arrebentar de rir</p><p>apenas ante tal idéia.</p><p>Agora sem espinhas, Arnie estava legal — de fato, parecia mais do</p><p>que isso. Contudo, nenhuma garota que freqüentasse a escola quando ele</p><p>ainda tinha o rosto em sua pior aparência aceitaria sair com ele, creio eu.</p><p>De fato, não o viam como era agora, mas apenas a lembrança do que Arnie</p><p>havia sido. Com Leigh, no entanto, era diferente. Sendo uma aluna</p><p>transferida, não fazia idéia de como era horrível a aparência dele, em seus</p><p>três primeiros anos no Ginásio de Libertyville. Bem, poderia ter uma</p><p>noção, se folheasse o Libertonian do ano anterior e visse a foto de Arnie</p><p>no clube de xadrez, mas, curiosamente, aquela mesma tendência</p><p>republicana certamente a faria passar por cima do detalhe. O de agora é</p><p>eterno — interrogue qualquer banqueiro republicano e ele lhe dirá que o</p><p>mundo deve ser governado exatamente assim.</p><p>Ginasianos e banqueiros republicanos... Em criança, todos aceitamos</p><p>como fato consumado que tudo se modifica constantemente. Quando</p><p>adulto, o indivíduo acredita seriamente que tudo irá mudar, pouco</p><p>importando o esforço para ser mantido o status quo (os próprios</p><p>banqueiros republicanos sabem disso — podem não gostar, mas sabem).</p><p>Apenas quando se é adolescente é que se fala o tempo todo em modificar,</p><p>mas acreditando, no fundo do coração, que isso nunca acontece realmente.</p><p>Saí com minha gigantesca sacola de lanche na mão e caminhei em</p><p>diagonal pelo pátio de estacionamento, rumando para o edifício em que</p><p>ficavam as oficinas. É uma estrutura alongada, com laterais metálicas</p><p>corrugadas e pintadas de azul — em formato não muito diferente da</p><p>garagem de Will Darnell, porém muito mais limpa. Ali dentro ficam as</p><p>oficinas para trabalhos em madeira, as oficinas para mecânica de motores</p><p>e o departamento de artes gráficas. A área de fumar fica, em princípio, nos</p><p>fundos da edificação, mas nos dias de bom tempo, durante a folga para o</p><p>almoço, em geral se vê alunos das oficinas alinhados em ambos os lados</p><p>do prédio, com suas botas de motoqueiros ou sapatos de biqueira,</p><p>recostados contra a parede, rumando e conversando com as namoradas. Ou</p><p>apalpando-as.</p><p>Nesse dia, não havia uma alma no lado direito das oficinas, e isso</p><p>poderia ter-me alertado sobre algo anormal, mas não foi assim. Eu estava</p><p>concentrado em meus próprios e divertidos pensamentos sobre Arnie e</p><p>Leigh, bem como na psicologia do Estudante Moderno do Ginásio</p><p>Americano.</p><p>A verdadeira área de fumar — a área "designada" para fumar — fica</p><p>em um pequeno beco sem saída, atrás da oficina de mecânica de motores.</p><p>Além das oficinas, a cinqüenta ou sessenta metros de distância, está o</p><p>campo de futebol, dominado pelo grande painel elétrico da marcação de</p><p>pontos, com DURO NELES, TERRIERS, engalanando sua parte superior.</p><p>Havia um grupo de pessoas pouco além da área de fumar, umas vinte</p><p>ou trinta, amontoadas em estreito círculo. Esse tipo de aglomeração</p><p>geralmente significa uma briga ou o que Arnie costuma chamar "puxa-</p><p>empurra" — dois sujeitos, que não estão muito a fim de brigar, ficam</p><p>empurrando um ao outro, esmurrando-se nos ombros com força, com isso</p><p>tentando proteger as respectivas reputações de machos.</p><p>Olhei para lá, mas sem grande interesse. Não queria assistir a uma</p><p>briga, mas sim comer meu almoço e descobrir o que estava acontecendo</p><p>entre Arnie e Leigh Cabot. Se existisse algo entre os dois, por menor que</p><p>fosse, isso talvez o livrasse daquela obsessão por Christine. Uma coisa era</p><p>certa: Leigh Cabot não tinha qualquer ferrugem na lataria.</p><p>Então, uma garota gritou e alguém mais bradou:</p><p>— Ei, assim, não! Largue isso, cara!</p><p>Aquilo não soava muito normal. Mudei de rumo, para ver o que</p><p>havia. Abri caminho por entre o grupo apertado e vi Arnie no círculo, de</p><p>pé, com as mãos ligeiramente estiradas para diante, ao nível do peito.</p><p>Parecia assustado e pálido, mas não em pânico. Um pouco à sua esquerda,</p><p>estava o seu saco de almoço, completamente achatado contra o solo. No</p><p>meio do saco, havia a impressão de uma sola de tênis. Em direção oposta a</p><p>Arnie, de jeans e camiseta justa sobre cada músculo e saliência do tórax,</p><p>estava Buddy Repperton. Tinha um canivete de mola na mão direita e o</p><p>movia lentamente de trás para diante, à frente do rosto, como um mágico</p><p>fazendo passes místicos.</p><p>Buddy era alto e de ombros largos. Tinha cabelos longos e negros.</p><p>Usava-os amarrados atrás da cabeça, em rabo-de-cavalo, com uma tira de</p><p>couro cru. As feições do rosto eram rudes e idiotas, com expressão</p><p>malévola. Sorria de leve. O que senti foi uma mistura covarde de puro</p><p>medo e angústia. Ele não parecia apenas idiota e malévolo, parecia louco.</p><p>— Eu disse que ia pegar você, cara — falou maciamente para Arnie.</p><p>Inclinou o canivete e o esgrimiu de leve no ar, na direção de Arnie,</p><p>fazendo-o encolher-se um pouco. A lâmina retrátil tinha cabo de marfim,</p><p>com um pequeno botão cromado que o fazia saltar para fora ou recolher-se</p><p>no punho. A lâmina parecia ter uns vinte centímetros de comprimento —</p><p>não era um canivete, em absoluto, mas uma maldita baioneta.</p><p>— Vamos, Buddy, marque ele! — gritou Dan Vandenberg</p><p>alegremente.</p><p>Senti a boca seca. Olhei para o garoto perto de mim, algum calouro</p><p>careta, que eu não conhecia. Ele parecia completamente hipnotizado, de</p><p>olhos arregalados.</p><p>— Ei — falei. Como não olhasse para mim, cutuquei-o nas costelas</p><p>com o cotovelo. — Ei! Ele saltou e olhou para mim aterrorizado.</p><p>— Vá chamar o Sr. Casey. Está almoçando na oficina de trabalhos em</p><p>madeira. Vá chamá-lo, agora mesmo!</p><p>Repperton olhou para mim, depois para Arnie.</p><p>— Vamos, Cunningham — desafiou. — O que me diz, não está</p><p>querendo briga?</p><p>— Largue o canivete primeiro, seu bosta</p><p>— disse Arnie.</p><p>A voz era perfeitamente calma. Bosta. Onde é que eu ouvira aquilo</p><p>antes? Não fora dito por George LeBay? Sim, isso. Também ouvira a</p><p>palavra na boca de seu irmão.</p><p>Aparentemente, Repperton não ligou muito. Enrubesceu e</p><p>aproximou-se mais de Arnie. Arnie girou, afastando-se. Pensei que alguma</p><p>coisa estava para acontecer ali, bem depressa — talvez daquelas que</p><p>exigem suturas e deixam cicatriz.</p><p>— Vá chamar Casey, já! — falei para o calouro de jeito careta.</p><p>Ele se foi, mas pensei que, sem dúvida, tudo já teria acontecido antes</p><p>do Sr. Casey chegar... a menos que eu pudesse retardar um pouco as coisas.</p><p>— Largue esse canivete, Repperton — falei. Seus olhos se voltaram</p><p>novamente para mim.</p><p>— Você não sabe de nada — replicou. — O amigo de Cara de Cona.</p><p>Por que não vem tirar ele de mim?</p><p>— Você tem um canivete, mas ele não — falei. — Pelo meu manual,</p><p>isso faz de você uma fodida galinha covarde.</p><p>O vermelho de seu rosto aumentou. Agora, sua concentração se</p><p>rompera. Ele olhou para Arnie, depois para mim. Meu amigo dirigiu-me</p><p>um olhar de pura gratidão — e moveu-se um pouco mais para perto de</p><p>Repperton. Não gostei daquilo.</p><p>— Largue o canivete! — gritou alguém para Repperton.</p><p>Logo depois, alguém mais gritou também: "Largue o canivete!".</p><p>Então, todos começaram a cantar: "Largue o canivete, largue o canivete,</p><p>largue o canivete!".</p><p>Repperton pareceu não gostar. Não se importava de ser o alvo das</p><p>atenções, mas aquele era o tipo errado de atenção. Seu olhar começou a</p><p>saltar nervosamente, primeiro para Arnie, depois para mim, em seguida</p><p>para os outros. Uma mecha de cabelo lhe caiu na testa e ele a jogou para</p><p>trás.</p><p>Quando tornou a olhar para mim, esbocei um movimento como se</p><p>fosse avançar para ele. O canivete girou agora em minha direção e Arnie</p><p>se moveu — moveu-se mais depressa do que eu poderia acreditar. Foi uma</p><p>cutelada com a mão direita, em um golpe de caratê meio fajuto, mas</p><p>eficiente. Atingiu com força o pulso de Repperton e arrancou-lhe o</p><p>canivete da mão, fazendo-o cair com um som metálico no chão sujo.</p><p>Repperton abaixou-se, tentando recuperá-lo. Arnie cronometrou o</p><p>movimento com mortal precisão e, quando a mão de Repperton chegou ao</p><p>asfalto, pisou em cima dela. Com toda a força. Repperton gritou.</p><p>Don Vandenberg entrou rapidamente em cena. Com um tranco brutal,</p><p>atirou Arnie ao chão. Mal pensando no que fazia, entrei no círculo e chutei</p><p>o traseiro de Vandenberg com toda a força que tinha — levantei o pé, em</p><p>vez de arrastá-lo; chutei-o como chutaria uma bola.</p><p>Vandenberg, um cara alto e magro, que naquela época teria uns</p><p>dezenove ou vinte anos, começou a gritar e saltitar, segurando os</p><p>fundilhos. Esqueceu toda sua idéia de socorrer Buddy, deixou de ser um</p><p>fator determinante na situação. Acho espantoso eu não ter aleijado</p><p>Vanderberg com aquele chute. Jamais chutei alguém ou alguma coisa com</p><p>tanta força, e meus amigos, fiquem certos de que me senti ótimo.</p><p>De repente, um braço passou em torno de meu pescoço e havia uma</p><p>mão entre minhas pernas. Percebi o que ia acontecer, apenas um segundo</p><p>tarde demais para poder evitá-lo de todo. Meus colhões foram apertados</p><p>com firmeza e a dor espraiou-se, em um berro de pura agonia, subindo das</p><p>virilhas para o estômago, depois descendo até as pernas, tornando-as tão</p><p>frouxas e vacilantes, que quando o braço largou meu pescoço eu</p><p>simplesmente arriei como um trapo no piso cimentado da área de fumar.</p><p>— Gostou disso, cara de pica? — perguntou-me um sujeito</p><p>atarracado e de dentes estragados. Ele usava um daqueles pequenos e</p><p>delicados óculos com aros de arame, óculos que pareciam</p><p>absurdos em seu rosto grande e pesadão. Era "Penetra" Welch, outro</p><p>amigo de Buddy</p><p>De súbito o círculo de espectadores começou a diluir-se e ouvi uma</p><p>voz de homem gritando:</p><p>— Afastem-se! Afastem-se, imediatamente! Vamos, rapazes,</p><p>andando! Andando, droga, estou mandando!</p><p>Era o Sr. Casey. Finalmente, Sr. Casey.</p><p>Buddy Repperton recolheu seu canivete de mola do chão. Fez a</p><p>lâmina retrair-se e, com um gesto rápido, guardou-o no bolso traseiro da</p><p>calça. Tinha a mão arranhada e sangrando, com todos os sinais de que ia</p><p>inchar. Filho da puta miserável, pensei. Desejei que aquela mão inchasse</p><p>como uma das luvas usadas pelo Pato Donald nas histórias em quadrinhos.</p><p>"Penetra" Welch afastou-se de mim, olhou na direção em que soava a</p><p>voz do Sr. Casey e tocou delicadamente o canto da boca com o polegar.</p><p>— Fica pra mais tarde, cara de pica — disse.</p><p>Don Vandenberg agora dançava mais devagar, mas ainda esfregava a</p><p>parte afetada. Lágrimas de dor escorriam-lhe pelo rosto. Então, Arnie</p><p>estava ao meu lado, passando um braço ao redor de meu corpo, ajudando-</p><p>me a levantar. Sua camisa estava um bocado suja, devido à queda, quando</p><p>Vandenberg o derrubara. Vi tocos de cigarros amassados contra os joelhos</p><p>de sua calça jeans.</p><p>— Você está bem, Dennis? O que foi que ele fez corn você?</p><p>— Deu um apertãozinho em meu saco. Já estou melhor.</p><p>Pelo menos, assim esperava. Se você é homem e já lhe deram um</p><p>bom apertão nos colhões alguma vez (e que homem não passou por isso?),</p><p>sabe o que estou dizendo. Se for mulher, não sabe — não pode saber. A</p><p>agonia inicial é apenas o começo; ela desaparece, substituída por uma</p><p>dorida e latejante sensação de pressão, que se enovela na boca do</p><p>estômago. Uma sensação que diz: Ei, você! É bom estar aqui, rondando a</p><p>boca de seu estômago e fazendo com que você tenha vontade de vomitar o</p><p>almoço e borrar as calças ao mesmo tempo! Acho que vou ficar por aqui</p><p>algum tempo, certo? Que tal uma meia hora ou coisa assim? Grande!</p><p>Levar um apertão nos colhões não é um dos mais excitantes momentos da</p><p>vida.</p><p>O Sr. Casey abriu caminho entre os espectadores que se dispersavam</p><p>e percebeu a situação. Não era um sujeito grande, como o treinador Puffer,</p><p>nem mesmo parecia forte. Era de altura e idade medianas, e começava a</p><p>ficar careca. Os óculos enormes, de armação de chifre, davam um ar</p><p>conservador em seu rosto. Gostava de camisas brancas e simples — sem</p><p>gravata — e usava uma delas agora. Não era um sujeito grande, mas</p><p>impunha respeito. Ninguém o fazia de trouxa, porque ele não tinha medo</p><p>dos rapazes, aquele medo profundo que tantos professores sentem. E os</p><p>rapazes sabiam disso. Buddy e Don sabiam. "Penetra" também. Isso se</p><p>refletia na maneira como baixaram os olhos e moveram os pés</p><p>inquietamente.</p><p>— Dêem o fora — ordenou rispidamente o Sr. Casey, aos poucos</p><p>espectadores restantes. Eles começaram a afastar-se. "Penetra" Welch</p><p>decidiu dar o golpe e acompanhá-los. — Você não, Peter — disse o Sr.</p><p>Casey.</p><p>— Ora, Sr. Casey, eu não fiz nada — disse "Penetra".</p><p>— Nem eu — emendou Don. — Por que está sempre acusando a</p><p>gente? O Sr. Casey aproximou-se de onde eu estava, ainda amparado por</p><p>Arnie.</p><p>— Tudo bem com você, Dennis?</p><p>Finalmente eu estava conseguindo superar a crise — o que não</p><p>aconteceria, se uma de minhas coxas não tivessem bloqueado parcialmente</p><p>a mão de "Penetra". Assenti.</p><p>O Sr. Casey caminhou para onde Buddy Repperton, "Penetra" Welch e</p><p>Don Vandenberg se enfileiravam, zangados e remexendo os pés. Don não</p><p>estivera brincando, falara por todos eles. De fato, sentiam-se acusados.</p><p>— Muito interessante, não? — disse finalmente o Sr. Casey. — Três</p><p>contra dois. É assim que costuma agir, Buddy? A desvantagem não parece</p><p>importar-lhe muito.</p><p>Buddy ergueu o rosto, atirou a Casey um olhar maligno e enfurecido,</p><p>depois tornou a baixá-lo.</p><p>— Foram eles que começaram. Esses dois.</p><p>— Não é verdade... — começou Arnie.</p><p>— Cale a boca, cara de cona — disse Buddy.</p><p>Ia acrescentar algo, mas antes que pudesse o Sr. Casey o agarrou e</p><p>atirou contra a parede dos fundos da oficina. Ali havia um pequeno aviso:</p><p>FUMAR SOMENTE AQUI. O Sr. Casey começou a bater Buddy</p><p>Repperton contra aquele aviso e, a cada vez que o sacudia, o aviso</p><p>balançava, como uma dramática marcação. Sacudia Repperton da maneira</p><p>como eu ou vocês sacudiríamos uma grande boneca de trapo. Acho que</p><p>tinha uma musculatura escondida em algum lugar.</p><p>— Quer fechar sua bocarra? — disse ele, tornando a bater Buddy</p><p>contra o aviso. — Vai calar esse boca ou vou</p><p>ter de limpá-la! Porque não</p><p>vou ouvir coisas assim, ditas por você, Buddy!</p><p>Por fim, ele largou a camisa de Repperton, agora fora da calça,</p><p>mostrando seu estômago branco e sem cor. O Sr. Casey olhou para Arnie.</p><p>— O que estava dizendo? — perguntou.</p><p>— Passei pela área de fumar a caminho das arquibancadas, onde ia</p><p>comer meu almoço — disse Arnie. — Repperton estava aqui, fumando</p><p>com seus amigos. Chegou para mim, arrancou o saco do almoço da minha</p><p>mão e o pisoteou. Esmagou-o. — Ele pareceu prestes a dizer algo mais,</p><p>vacilou e desistiu. — Foi isso que começou a briga.</p><p>Entretanto, eu não ia deixar aquilo assim. Não sou dedo-duro nem</p><p>falador em circunstâncias normais. Repperton, contudo, aparentemente</p><p>decidira ser necessário mais do que uma boa surra para vingar-se por ter</p><p>sido expulso da Darnell's. Poderia ter feito um buraco nos intestinos de</p><p>Arnie, talvez até o matasse.</p><p>— Sr. Casey — falei.</p><p>Ele olhou para mim. Mais atrás, os olhos verdes de Buddy brilharam</p><p>malevolamente em minha direção — era um aviso. Fique de boca fechada,</p><p>isto é entre nós. Até um ano antes, uma distorcida noção de orgulho</p><p>poderia forçar-me a fazer seu jogo e não ir em frente. Agora era diferente.</p><p>— O que é, Dennis?</p><p>— Ele está atrás de Arnie desde o verão. Tem um canivete e parecia</p><p>decidido a usá-lo.</p><p>Arnie olhava para mim, os olhos cinzentos opacos e herméticos.</p><p>Recordei quando ele chamara Repperton de bosta — a palavra de LeBay</p><p>— e senti um arrepio nas costas.</p><p>— Seu fodido mentiroso! — gritou Repperton, dramaticamente. —</p><p>Não tenho canivete nenhum! Casey olhou para ele em silêncio.</p><p>Vandenberg e Welch agora pareciam muito pouco à vontade</p><p>— assustados. Sua possível punição por aquele pequeno tumulto</p><p>progredira para além dos castigos — a que estavam acostumados — e da</p><p>suspensão — que já haviam experimentado — beirando os limites</p><p>extremos da expulsão.</p><p>Bastava eu dizer mais uma palavra. Pensei a respeito. Quase não</p><p>falei. No entanto, Arnie estava envolvido e ele era meu amigo. Além do</p><p>mais, eu não apenas achava que ele podia usar aquele canivete</p><p>— eu sabia. Falei.</p><p>— É um canivete de mola.</p><p>Agora os olhos de Repperton não apenas brilharam, eles fulguraram,</p><p>prometendo o inferno, a danação e um longo período de inatividade,</p><p>fazendo tração para endireitar o corpo machucado.</p><p>— É mentira dele, Sr. Casey — disse em voz rouca. — Ele está</p><p>mentindo, juro por Deus. O Sr. Casey nada disse. Virou-se lentamente para</p><p>Arnie.</p><p>— Cunningham — perguntou —, Repperton puxou um canivete para</p><p>você?</p><p>A princípio, parecia que ele não ia responder. Depois, em uma voz</p><p>tão baixa que mais parecia um suspiro, soltou:</p><p>— Puxou.</p><p>O olhar cáustico de Repperton agora foi para nós dois.</p><p>Casey se virou para "Penetra" Welch e Don Vandenberg. Percebi</p><p>imediatamente uma mudança em seu método de resolver a situação.</p><p>Começara a mover-se lenta e cautelosamente, como se testasse as próprias</p><p>pisadas com cuidado, antes de dar mais um passo. O Sr. Casey já havia</p><p>sentido as conseqüências.</p><p>— Havia um canivete na briga? — perguntou a eles.</p><p>"Penetra" e Vandenberg olharam para os pés e não responderam. Seu</p><p>gesto já era uma resposta suficiente.</p><p>— Vire seus bolsos pelo avesso, Buddy — disse o Sr. Casey.</p><p>— Uma merda que eu vou fazer isso! — exclamou Buddy, em voz</p><p>esganiçada. — Não pode me obrigar!</p><p>— Se está querendo dizer que não tenho autoridade, enganou-se —</p><p>disse o Sr. Casey. — Se está querendo dizer que não posso virar seus</p><p>bolsos pelo avesso eu mesmo, se quiser, também enganou-se. Mas...</p><p>— Muito bem, tente, tente! — gritou Buddy para ele. — Jogo você</p><p>através dessa parede, seu carequinha fodido!</p><p>Meu estômago contorcia-se, impotente. Eu odiava coisas como</p><p>aquela, horríveis cenas de confrontação — e nunca fizera parte de</p><p>nenhuma pior.</p><p>O Sr. Casey, no entanto, tinha a situação sob controle e não se</p><p>desviava de seu curso.</p><p>— Mas, não farei isso — concluiu ele. — Você mesmo é que vai</p><p>virar seus bolsos pelo avesso.</p><p>— Uma merda, se vou obedecer! — disse Buddy.</p><p>Estava de pé contra a parede dos fundos da oficina, de modo que o</p><p>volume no bolso da calça não aparecia. As fraldas da camisa pendiam em</p><p>duas abas amarrotadas sobre a frente do jeans. Seus olhos se moviam para</p><p>todos os lados, como os de um animal acuado.</p><p>O Sr. Casey se virou para "Penetra" e Don Vandenberg.</p><p>— Vocês dois vão para o gabinete e fiquem lá até eu chegar — disse.</p><p>— Não se atrevam a ir para outro lugar, já estão com problemas de sobra,</p><p>para acrescentar mais um.</p><p>Os dois começaram a afastar-se lentamente, muito juntos, como por</p><p>medida de proteção. "Penetra" arriscou um olhar para trás. No prédio</p><p>principal soou o aviso de chamada para as aulas. Todos começaram a</p><p>caminhar para lá, alguns deles envolvendo-nos em olhares curiosos.</p><p>Tínhamos perdido a hora do almoço, mas pouco importava. Eu não sentia</p><p>mais fome.</p><p>O Sr. Casey tornou a concentrar sua atenção em Buddy.</p><p>— Você está dentro do colégio agora — ele disse — e deve agradecer</p><p>a Deus por isso, porque se você está realmente com um canivete e se você</p><p>o sacou, isso é agressão à mão armada. Mandam você para a prisão por</p><p>causa disso.</p><p>— Prove, prove que estou com um canivete — Buddy gritou.</p><p>Suas bochechas chamejavam, a respiração saía em pequenos e</p><p>rápidos arquejos nervosos.</p><p>— Se não virar seus bolsos para fora imediatamente, preencherei</p><p>uma ficha de dispensa para você. Depois vou chamar os tiras e, no minuto</p><p>em que puser os pés fora do portão principal, eles o agarrarão. Percebe em</p><p>que enrascada se meteu? — Olhou severamente para Buddy. —</p><p>Procuramos manter o nome desta casa — continuou —, mas se me forçar a</p><p>preencher uma dispensa, seu traseiro pertencerá a eles, Buddy. Se não tiver</p><p>um canivete em seu poder, é claro que tudo estará certo com você, mas se</p><p>tiver e eles o encontrarem...</p><p>Houve um momento de silêncio. Nós quatro estávamos imóveis.</p><p>Achei que e\e não cederia, preferindo aceitar a dispensa e tentar enterrar o</p><p>canivete, rapidamente, em algum lugar. Então, deve ter percebido que os</p><p>tiras o procurariam e terminariam encontrando, porque o puxou do bolso</p><p>traseiro e o jogou no piso cimentado. O canivete bateu sobre o botão de</p><p>pressão. A lâmina soltou e cintilou malignamente ao sol da tarde: vinte</p><p>centímetros de aço cromado!</p><p>Arnie olhou para ela e passou o dorso da mão sobre a boca.</p><p>— Vá para o gabinete, Buddy — disse tranqüilamente o Sr. Casey —,</p><p>e espere até eu chegar lá.</p><p>— O gabinete que se foda! — gritou Buddy. Sua voz era aguda e</p><p>histérica de raiva. O cabelo tornara a cair sobre a testa e ele o jogou para</p><p>trás. — O que vou fazer é dar o fora desse maldito chiqueiro!</p><p>— Perfeitamente, tudo bem — disse o Sr. Casey.</p><p>A inflexão e excitamento de sua voz seriam os mesmos, se Buddy lhe</p><p>tivesse oferecido uma xícara de café. Compreendi, então, que Buddy</p><p>estava liquidado no Ginásio de Libertyville. Nada de suspensão ou três</p><p>dias de férias: seus pais receberiam pelo correio o rijo formulário azul de</p><p>expulsão, explicando por que ele fora expulso e informando sobre seus</p><p>direitos e opções legais quanto ao assunto.</p><p>Buddy olhou para mim e Arnie. Então sorriu.</p><p>— Vocês me pagam — disse. — Ainda vamos ajustar contas. Vão</p><p>desejar nunca terem nascido, seus merdas.</p><p>Chutou o canivete e ele deslizou, girando e cintilando. Ele parou a</p><p>alguma distância e Buddy afastou-se, as travas nos tacões de suas botas de</p><p>motoqueiro dando estalidos e rangendo. O Sr. Casey se voltou para nós.</p><p>Tinha a expressão triste e fatigada.</p><p>— Sinto muito — disse.</p><p>— Está tudo bem — replicou Arnie.</p><p>— Vocês querem cartões de dispensa? Posso preenchê-los para os</p><p>dois, se acharem melhor ficar em casa o resto do dia.</p><p>Olhei para Arnie, que sacudia a camisa para limpá-la. Ele abanou a</p><p>cabeça.</p><p>— Não é preciso, está tudo bem — falei.</p><p>— Certo. Preencherei então os cartões de atraso.</p><p>Fomos à sala do Sr. Casey e ele preencheu cartões de atrasados para</p><p>nossa aula seguinte, uma das que, por acaso, teríamos juntos — Física</p><p>Avançada. Quando entramos no laboratório de Física, um bocado de gente</p><p>olhou curiosamente para nós e ouvimos alguns cochichos.</p><p>A ficha de ausência da tarde circulou no</p><p>final do sexto período.</p><p>Observei-a e vi os nomes de Repperton, Vandenberg e Welch, cada um</p><p>deles com um (S) após o nome. Pensei que eu e Arnie seríamos chamados</p><p>ao gabinete no fim das aulas, para contarmos o sucedido à Sra. Lothrop, a</p><p>chefe de disciplina. Não fomos.</p><p>Procurei Arnie depois das aulas, pensando que iríamos juntos para</p><p>casa em meu carro, a fim de comentarmos o caso, mas também me</p><p>enganei quanto a isso. Ele já se mandara para a Garagem de Darnell, a fim</p><p>de trabalhar em Christine.</p><p>Christine Outra Vez na Rua</p><p>Tenho um Ford Mustang 66, vermelho-cereja,</p><p>Com uma potência de 380 cavalos,</p><p>Compreenda, ele é potente demais</p><p>Para rastejar em rotas interestaduais.</p><p>— Chuck Berry</p><p>De fato, só tive uma chance de falar com Arnie, depois da partida de</p><p>futebol do sábado seguinte. Também foi aquela a primeira vez que</p><p>Christine saiu para a rua, desde o dia em que ele a comprara.</p><p>O time foi para Hidden Hills, a uns vinte e cinco quilômetros de</p><p>distância, na viagem mais silenciosa que já vi, em nosso ônibus de</p><p>atividades escolares. Era como se rumássemos para a guilhotina e não para</p><p>uma partida de futebol. O próprio fato de a contagem deles (1-2) ser</p><p>ligeiramente melhor do que a nossa, era um fator que não levantava muito</p><p>o moral. Puffer, o treinador, ocupava o banco atrás do motorista, pálido e</p><p>silencioso, como se estivesse de ressaca.</p><p>Em geral, a viagem para uma partida em outro local era uma</p><p>combinação de caravana e circo. Um segundo ônibus, lotado com as chefes</p><p>de torcidas, a banda e todos os estudantes do Ginásio de Libertyville que</p><p>se alistassem como "torcedores" ("torcedores", meu Deus do céu! quem</p><p>acreditaria nisso, se não houvéssemos todos cursado o ginásio?) rodava</p><p>atrás do ônibus do time. Após os dois ônibus, havia uma fila de quinze ou</p><p>vinte carros, em sua maioria repletos de adolescentes, quase todos os</p><p>veículos com DURO NELES, TERRIERS colado nos pára-choques,</p><p>buzinando, de faróis acesos e todos aqueles detalhes que, sem dúvida,</p><p>vocês ainda recordam de seus tempos escolares.</p><p>Naquela viagem, contudo, havia apenas o ônibus das chefes-de-</p><p>torcida/banda (assim mesmo, nem inteiramente lotado quando, em um ano</p><p>vencedor, se você não se alistasse até terça-feira, não tinha chance de ir) e</p><p>três ou quatro carros atrás dele. Os amigos dos bons tempos tinham se</p><p>mandado. Eu ia sentado no ônibus do time, perto de Lenny Barongg,</p><p>perguntando-me sombriamente se não me arrancariam a cueca naquela</p><p>tarde, e ignorando por completo que um dos poucos carros atrás de nós era</p><p>Christine.</p><p>Só a vi quando descemos do ônibus, no pátio de estacionamento do</p><p>Ginásio de Hidden Hills. A banda deles já estava no campo e ouvíamos</p><p>claramente a batida do bombo, amplificada de modo estranho, sob o céu</p><p>anuviado e sombrio. Aquele seria o primeiro sábado realmente bom para</p><p>futebol — frio, de céu fechado e outonal.</p><p>Já foi surpresa suficiente ver Christine estacionada ao lado do ônibus</p><p>da banda, mas quando Arnie saiu por um lado e Leigh Cabot pelo outro,</p><p>fiquei pasmo — e também um pouquinho enciumado. Ela usava calças</p><p>compridas justas de lã marrom e um pulôver branco de malha, os cabelos</p><p>alourados derramando-se maravilhosamente sobre os ombros.</p><p>— Arnie! — chamei. — Ei, cara!</p><p>— Oi, Dennis — respondeu ele, um pouco acanhado.</p><p>Eu percebia que alguns jogadores saindo do ônibus também estavam</p><p>surpresos: ali estava Cunningham Cara de Pizza, com a fascinante</p><p>transferida de Massachusetts. Como, em nome de Deus, aquilo</p><p>acontecera?</p><p>— Como vai?</p><p>— Bem — disse ele. — Conhece Leigh Cabot?</p><p>— Sim, da sala de aulas — falei. — Oi, Leigh.</p><p>— Oi, Dennis. Como é, vão vencer hoje? Baixei a voz para um</p><p>sussurro.</p><p>— Vai ser um jogo combinado. Pode apostar o traseiro.</p><p>Arnie enrubesceu um pouco ao ouvir-me, mas Leigh levou a mão à</p><p>boca e deu uma risadinha.</p><p>— Vamos fazer o possível, mas não sei dizer — continuei.</p><p>— Torceremos por sua vitória — disse Arnie. — Até posso ver nos</p><p>jornais de amanhã: Transportado pelo Ar, Guilder Quebra o Recorde de</p><p>Touchdown da Associação.</p><p>— Guilder Levado para o Hospital com Fratura de Crânio, seria o</p><p>mais provável — repliquei. — Quantos rapazes vieram? Dez? Quinze?</p><p>— Vai sobrar mais lugar nas arquibancadas para os que vieram —</p><p>disse Leigh.</p><p>Ela tomou o braço de Arnie — acho que o surpreendendo e</p><p>agradando. Eu já gostava dela. Ela podia ser uma garota sexualmente</p><p>provocante ou repugnante — em minha opinião, um bando de garotas</p><p>realmente bonitas é uma ou outra coisa —, mas ela não era nada disso.</p><p>— Como vai o rodante? — perguntei, aproximando-me do carro.</p><p>— Nada mau.</p><p>Arnie me seguiu, tentando não rir de forma tão escandalosa. O</p><p>trabalho progredira e já havia muita coisa feita no Fury, de maneira que</p><p>não parecia mais tão absurdo e irremediável. A outra metade da grade</p><p>antiga e enferrujada do radiador fora substituída e desaparecera por</p><p>completo o ninho de rachaduras no pára-brisa.</p><p>— Você trocou o pára-brisa — comentei. Arnie assentiu.</p><p>— E o capô.</p><p>O capô estava límpido, novo em folha, formando um chocante</p><p>contraste com as laterais pontilhadas de ferrugem. Era um vermelho vivo</p><p>de carro de bombeiros. Aparência brilhante. Arnie o tocou</p><p>possessivamente e o toque se transformou em carícia.</p><p>— Hum-hum. Eu mesmo o coloquei.</p><p>Algo daquilo penetrou em mim. Ele havia feito tudo sozinho, não?</p><p>— Você disse que ia transformá-lo em peça de exposição — falei. —</p><p>Acho que estou começando a acreditar.</p><p>Dei a volta, até o lado do motorista. A forração lateral das portas e do</p><p>piso continuava suja e surrada, mas agora o estofamento do banco</p><p>dianteiro fora substituído, bem como o do traseiro.</p><p>— Vai ficar muito bonito — disse Leigh, mas havia uma nota falsa</p><p>em sua voz.</p><p>Seu tom não soara naturalmente brilhante e efervescente, como</p><p>quando estávamos falando sobre o jogo — e isso me fez observá-la. Um</p><p>olhar apenas foi suficiente. Ela não gostava de Christine. Adivinhei de</p><p>maneira tão completa e absoluta, como se houvesse captado uma das</p><p>ondas cerebrais de Leigh no ar. Senti que faria o possível para gostar do</p><p>carro, porque gostava de Arnie. No entanto... ela não iria gostar realmente</p><p>de Christine.</p><p>— Quer dizer que já legalizou o carro para rodar na rua — falei.</p><p>— Bem... — Arnie pareceu pouco à vontade. — Não consegui ainda.</p><p>A legalização completa.</p><p>— O que quer dizer?</p><p>— A buzina não funciona e, às vezes, as lanternas traseiras apagam,</p><p>quando piso no freio. Deve existir um curto em algum lugar, mas até agora</p><p>ainda não descobri onde.</p><p>Olhei para o pára-brisa novo. Havia um adesivo recente de inspeção</p><p>sobre ele. Arnie seguiu meu olhar e conseguiu ficar constrangido e algo</p><p>agressivo ao mesmo tempo.</p><p>— Will me arranjou o adesivo — explicou. — Ele sabe que o carro</p><p>está noventa por cento legal. Além disso, pensei, você conseguiu sair com</p><p>sua garota, certo?</p><p>— Não é perigoso, é? — perguntou Leigh.</p><p>A pergunta foi dirigida a nós dois. Ela franzira o cenho ligeiramente</p><p>— creio que captara a súbita corrente fria entre Arnie e eu.</p><p>— Não — respondi. — Creio que não. Quando estiver com Arnie e</p><p>ele na direção, estará em companhia do próprio anjo da guarda.</p><p>Meu comentário rompeu a estranha tensão que se formara. Do campo</p><p>chegou até nós um esganiçado dissonante de metais, seguido pela voz do</p><p>instrutor da banda, perfeitamente nítida sob o céu carregado:</p><p>— De novo, por favor! Isto é Rodgers e Hammerstein, não rock and</p><p>ro-ool! De novo, por favor! Nós três nos entreolhamos. Eu e Arnie</p><p>começamos a rir e, após um momento, Leigh riu também.</p><p>Ao fitá-la, tornei a sentir aquele ciúme momentâneo. Eu nada mais</p><p>queria senão o melhor para meu amigo Arnie, porém ela era realmente</p><p>alguma coisa — dezessete anos, caminhando para os dezoito, fascinante,</p><p>perfeita, saudável, viva para tudo em seu mundo. Roseanne era bonita à</p><p>sua maneira, porém Leigh a fazia parecer um bicho-preguiça tirando um</p><p>cochilo.</p><p>Foi então que comecei a querê-la? Que comecei a querer a garota de</p><p>meu melhor amigo? Sim, suponho que tenha sido. No entanto, eu lhe juro,</p><p>nunca a teria assediado, se as coisas tivessem acontecido de modo</p><p>diferente. Apenas, eu não imaginava que pudessem</p><p>ser diferentes. Talvez</p><p>fosse tão-somente uma questão de sentimentos.</p><p>— É melhor irmos andando, Arnie, ou não encontraremos um bom</p><p>lugar nas arquibancadas dos visitantes — disse Leigh, com uma entonação</p><p>de grande dama.</p><p>Ele sorriu. Ela ainda lhe segurava o braço de leve, deixando-o</p><p>bastante desajeitado com aquilo. Por que não? Se fosse comigo, se tivesse</p><p>minha primeira experiência com uma garota daquelas, alguém tão bonita</p><p>como Leigh, já estaria três quartos apaixonado por ela. Desejei a ele o</p><p>melhor com ela. Gostaria que vocês acreditassem nisso, mesmo que não</p><p>acreditem em mais nada do que vou contar, daqui por diante. Se alguém</p><p>merecia um pouco de felicidade, era Arnie.</p><p>O resto do time tinha ido para os vestiários dos visitantes, nos fundos</p><p>da ala do ginásio da escola, e agora Puffer mostrava a cabeça.</p><p>— Será que pode nos favorecer com a sua presença, Sr. Guilder? —</p><p>gritou ele. — Sei que é pedir muito, mas espero que me perdoe, se tiver</p><p>algo mais importante a fazer. Se não tiver, poderia trazer seu rabo até este</p><p>vestiário?</p><p>Murmurei para Arnie e Leigh:</p><p>— Isto é Rodgers e Hammerstein, não rock and ro-ool— e corri na</p><p>direção do prédio. Caminhei para os vestiários — Puffer voltara para</p><p>dentro — e Arnie e Leigh afastaram-se para</p><p>as arquibancadas. A meio caminho para as portas, parei e voltei até</p><p>Christine. Aproximei-me dela em um círculo, ainda persistia aquele</p><p>absurdo preconceito contra caminhar à frente do carro.</p><p>Na traseira, vi uma placa de concessionário da Pensilvânia, mantida</p><p>no lugar por uma mola. Virei-a do outro lado e vi uma fita adesiva fosca,</p><p>com os dizeres: ESTA PLACA É DE PROPRIEDADE DA GARAGEM</p><p>DARNELL, LIBERTYVILLE, PA.</p><p>Deixei a placa cair de volta e levantei-me, de cenho franzido. Então,</p><p>Darnell dera a Arnie um adesivo de inspeção, quando o carro ainda estava</p><p>longe de ter condições para trafegar; ele lhe emprestara uma placa de</p><p>concessionário, a fim de poder usar o carro e trazer Leigh ao jogo. Além</p><p>do mais, deixara de ser "Darnell" para Arnie, que pouco antes o chamara</p><p>de "Will". Interessante, mas não muito confortador.</p><p>Perguntei-me se Arnie era idiota o bastante para pensar que os Will</p><p>Darnell do mundo algum dia prestavam favores por pura bondade. Esperei</p><p>que não fosse, mas não tinha certeza. Eu não tinha mais muita certeza</p><p>sobre Arnie. Ele mudara demais nas últimas semanas.</p><p>Nós pintamos o diabo no campo e conseguimos ganhar o jogo —</p><p>como se viu mais tarde, foi um dos únicos dois que ganhamos em toda a</p><p>temporada... embora eu não estivesse mais no time, quando ela terminou.</p><p>Não tínhamos direito algum de vencer: fomos para o campo já nos</p><p>sentindo derrotados e perdemos o lançamento. Os Hilmen Montanheses</p><p>(nome tolo para uma equipe, mas o que há de tão inteligente em ser</p><p>conhecido como os Terriers — cães de toca — se descemos a isto?)</p><p>avançaram quarenta metros em duas primeiras jogadas, penetrando em</p><p>nossa linha de defesa como queijo em goela de pato. Então, em sua</p><p>terceira jogada seguida, o zagueiro deles deixou a bola escapar. Gary</p><p>Tardiff a agarrou e rastejou sessenta metros para o escore, com um enorme</p><p>sorriso aberto no rosto.</p><p>Os Hilmen e seu treinador perderam a pose, protestando que a bola</p><p>estava impedida na linha do centro, mas os árbitros discordaram e</p><p>ganhamos por 6-0. De meu lugar no banco, eu podia olhar até as</p><p>arquibancadas dos visitantes e via que os poucos torcedores do</p><p>Libertyville estavam ficando alucinados. Acho que tinham todo o direito,</p><p>afinal era a primeira vez que levávamos a melhor em uma partida, em toda</p><p>a temporada. Arnie e Leigh sacudiam bandeirolas dos Terriers. Acenei</p><p>para eles. Leigh me viu, acenou de volta e depois cutucou Arnie. Ele</p><p>acenou também. Pareciam estar ficando muito íntimos, lá em cima, o que</p><p>me fez sorrir.</p><p>Quanto ao jogo, não perdemos o entusiasmo, após aquela contagem</p><p>obtida na pura sorte. Havíamos conseguido para nós essa coisa mística, o</p><p>ímpeto — talvez pela última vez do ano. Não quebrei o recorde de</p><p>touchdown da Associação, conforme Arnie previra, mas fiz pontos três</p><p>vezes, uma delas em uma corrida de noventa metros, a mais longa que já</p><p>fizera. Chegado o meio tempo, a contagem era de 17-0 e o treinador se</p><p>tornara um novo homem. Ele entrevia uma grande reviravolta à nossa</p><p>frente, a maior arrancada na história da Associação. Claro está que era um</p><p>sonho louco, como se viu depois, porém ele tinha motivos para ficar</p><p>eufórico naquele dia, e gostei que assim fosse, como gostei do</p><p>aprofundamento da amizade de Arnie e Leigh.</p><p>O segundo tempo não foi tão bom; nossa defesa reassumiu a postura</p><p>cabisbaixa a maior parte do tempo, a mesma postura de nossos três</p><p>primeiros jogos, porém a contagem continuou bem a nosso favor.</p><p>Vencemos por 27-18.</p><p>O último quarto de hora ia pelo meio quando o treinador me mandou</p><p>sair e entrou Brian McNally, que me substituiria no ano seguinte — em</p><p>realidade, ainda mais cedo do que isso, como se viu depois. Tomei uma</p><p>ducha, troquei de roupa e saí, no momento em que soava o aviso para os</p><p>dois últimos minutos de jogo.</p><p>O pátio de estacionamento estava repleto de carros, mas vazio de</p><p>gente. Uma gritaria selvagem vinha do campo, quando a torcida dos</p><p>Hilmen insistia com seu time para que fizesse o impossível, naqueles dois</p><p>últimos minutos da partida. Da distância em que me achava, tudo me</p><p>parecia tão sem importância, como indubitavelmente o era.</p><p>Caminhei em direção a Christine.</p><p>Lá estava ela, com sua lataria lateral pontilhada de ferrugem, o capô</p><p>novo e a traseira parecendo ter mil quilômetros de comprimento. Um</p><p>dinossauro dos soturnos dias do bop dos anos 50, quando todos os</p><p>milionários do petróleo eram do Texas e o dólar ianque tripudiava do iene</p><p>japonês, em vez de ser o contrário. De volta aos tempos em que Carl</p><p>Perkins cantava sobre calças três quartos cor-de-rosa e Johnny Horton</p><p>cantava sobre dançar-se a noite inteira no piso de madeira dura de uma</p><p>espelunca, e o maior ídolo dos adolescentes no país era Edd "Kookie"</p><p>Byrnes.</p><p>Toquei em Christine. Tentei acariciá-la, como Arnie fizera. Queria</p><p>gostar daquele carro por causa de Arnie, como Leigh havia feito.</p><p>Certamente, se alguém fosse capaz de forçar-se a gostar dele, esse alguém</p><p>era eu. Leigh conhecia Arnie a apenas um mês. Eu o conhecera a vida</p><p>inteira.</p><p>Deslizei a mão pela superfície enferrujada, pensando em George</p><p>LeBay, Verônica e Rita LeBay. Em algum ponto de tais pensamentos, a</p><p>mão que supostamente devia acariciar fechou-se em um punho e esmurrei</p><p>subitamente o flanco de Christine, com quanta força pude, com violência</p><p>bastante para me machucar a mão e me fazer dar uma risadinha defensiva,</p><p>perguntando-me que diabo eu pensava estar fazendo.</p><p>Ouvi o som de flocos de ferrugem desprendendo-se da lataria.</p><p>O som de um bombo, vindo do campo de futebol, como gigantesca</p><p>pulsação cardíaca.</p><p>O som de minhas próprias pulsações cardíacas.</p><p>Experimentei a porta da frente.</p><p>Estava trancada.</p><p>Passei a língua pelos lábios e senti que estava assustado.</p><p>Era quase como se — aquilo era engraçado, era hilariante —, era</p><p>quase como se o carro não gostasse de mim, como se desconfiasse que eu</p><p>queria intrometer-me entre ele e Arnie, como se soubesse que eu não</p><p>queria caminhar diante dele porque...</p><p>Tornei a rir, mas então recordei meu sonho e fiquei sério. Aquilo era</p><p>demais, para deixar-me sossegado. Não era Chubby McCarthy clamando</p><p>pelo rádio, claro, não em Hidden Hills, mas o final daquilo provocou uma</p><p>sensação desagradável e fantástica de déjà vu — o som dos gritos da</p><p>torcida, o som do contato de corpos acolchoados, o vento sibilando por</p><p>entre as árvores que pareciam recortadas, sob um céu encoberto.</p><p>O motor dispararia. O carro saltaria para diante, recuando,</p><p>avançando, recuando. E então os pneus chiariam, quando rugissem</p><p>diretamente para mim...</p><p>Afugentei o pensamento. Era tempo de parar de entulhar-me com</p><p>toda aquela merda idiota. Era tempo — mais do que tempo — de controlar</p><p>minha imaginação. Aquilo ali era um carro — não uma "ela" mas um</p><p>"ele", não realmente Christine, mas apenas um Plymouth Fury 1958, que</p><p>saíra de uma linha de montagem em Detroit, juntamente com mais</p><p>uns</p><p>quatrocentos mil outros.</p><p>Isso funcionou... pelo menos temporariamente. Só para demonstrar</p><p>que não estava nem um pouco amedrontado, ajoelhei-me e espiei debaixo</p><p>do carro. O que vi lá era ainda mais louco do que a estranha maneira pela</p><p>qual o Plymouth estava sendo reconstruído no alto. Havia três</p><p>amortecedores novos mas o quarto era uma ruína escura e suja de graxa,</p><p>parecendo ter estado ali desde sempre. O cano de descarga era tão novo</p><p>que ainda reluzia como prata, porém o silencioso tinha uma aparência de</p><p>meia-idade, pelo menos, enquanto que a junção do cano de descarga se</p><p>mostrava em péssimo estado. Ao olhar para este último, pensei nas</p><p>emanações que poderiam passar para dentro do carro e isso me fez</p><p>novamente recordar Verônica LeBay. Porque emanações do cano de</p><p>descarga podem matar.</p><p>Elas...</p><p>— O que está fazendo, Dennis?</p><p>Creio que estava mais inquieto do que imaginava, porque me levantei</p><p>como uma flecha, o coração disparando no peito. Era Arnie. Ele se</p><p>mostrava frio e irritado.</p><p>Porque eu dava uma espiada em seu carro? Por que isso deveria</p><p>deixá-lo tão fora de si? Uma boa pergunta. No entanto, era evidente que o</p><p>deixara furioso.</p><p>— Examinava seu potente motor — falei, tentando aparentar</p><p>naturalidade. — Onde está Leigh?</p><p>— Foi ao toalete — respondeu ele, encerrando este ponto. Os olhos</p><p>cinzentos permaneciam fixos em meu rosto. — Dennis, você é meu</p><p>melhor amigo, o melhor que já tive. Acho que me poupou uma viagem ao</p><p>hospital outro dia, quando Repperton puxou aquela faca para mim, mas</p><p>não gosto do que anda fazendo pelas minhas costas, Dennis. Você nunca</p><p>foi assim.</p><p>Houve um tremendo rugido da torcida no campo — os Hillmen</p><p>tinham acabado de fazer o tento final do jogo, com menos de trinta</p><p>segundos de tempo restando.</p><p>— Não sei de que diabo está falando, Arnie — respondi.</p><p>No entanto, sentia-me culpado. Culpado pela maneira como me</p><p>sentira ao ser apresentado a Leigh, avaliando-a, desejando-a um pouquinho</p><p>— desejando a garota que, tão evidentemente, Arnie queria para si.</p><p>Contudo... fazer algo por trás de suas costas? Era isso que eu estivera</p><p>fazendo?</p><p>Suponho que ele poderia ter encarado assim a questão. Eu estava</p><p>sabendo que seu irracional — interesse, obsessão, seja lá o que for —, sua</p><p>postura irracional sobre o carro era o aposento trancado na casa de nossa</p><p>amizade, o lugar em que eu não poderia penetrar sem atrair todo tipo de</p><p>problemas. E, se ele não me surpreendera tentando arrombar a porta, pelo</p><p>menos me apanhara espiando pelo buraco da fechadura.</p><p>— Acho que sabe muito bem do que estou falando — respondeu ele, e</p><p>não estava apenas irritado, mas enfurecido, conforme pude constatar, com</p><p>certa apreensão. — Você, meu pai, minha mãe, estão todos me espionando</p><p>"para o meu bem", não é assim que se diz? Eles o mandaram à Garagem de</p><p>Darnell para bisbilhotar, não foi?</p><p>— Escute aqui, Arnie, espere um pouco...</p><p>— Cara, não pensou que eu acabaria descobrindo? Não disse nada</p><p>quando soube porque... bem, porque somos amigos. Só que não gosto</p><p>disso, Dennis. Tem que haver um limite e acho que o estou marcando. Por</p><p>que não deixa meu carro em paz e pára de se meter onde não foi chamado?</p><p>— Em primeiro lugar — respondi — não foram seu pai e sua mãe.</p><p>Michael me chamou de lado e pediu que desse uma espiada no que você já</p><p>tinha feito com o carro. Concordei, porque também estava curioso. Seu pai</p><p>sempre foi muito legal comigo. O que mais poderia responder a ele?</p><p>— Devia ter respondido "não".</p><p>— Você não entende, Arnie. Ele está do seu lado. Sua mãe ainda</p><p>espera que tudo isto dê em nada, foi o que percebi, mas Michael tem</p><p>realmente esperança de que você ponha o carro rodando. Ele me disse isso.</p><p>— Claro, era a melhor maneira de convencer você. — Arnie estava</p><p>quase rosnando. — Na verdade, ele está interessado é em ter certeza de</p><p>que continuo atrapalhado com o carro. É só o que interessa a eles. Não</p><p>querem que eu cresça, porque então estariam enfrentando a própria</p><p>velhice.</p><p>— Está sendo muito duro, cara.</p><p>— Talvez você acredite nisso. Talvez o fato de vir de uma família</p><p>mais ou menos normal deixe você de miolo mole, Dennis. Eles me</p><p>ofereceram um carro novo quando eu tirasse o diploma, sabia?</p><p>Tudo o que eu devia fazer era desistir de Christine, tirar A em todas</p><p>as matérias e concordar em matricular-me em Horlicks... onde os dois</p><p>poderiam manter-me sob sua vigilância direta por mais quatro anos.</p><p>Fiquei sem saber o que dizer. Aquilo era pura estupidez, claro.</p><p>— Portanto, fique fora disso, Dennis. É tudo quanto tenho a dizer.</p><p>Será melhor para nós dois.</p><p>— De qualquer modo, não contei nada a ele — repliquei. — Falei</p><p>apenas que você estava consertando umas coisinhas, aqui e ali. Ele pareceu</p><p>ficar aliviado.</p><p>— Oh, aposto que sim!</p><p>— Não fazia a menor idéia de que o carro estivesse quase no ponto</p><p>de poder rodar na rua. Mas falta ainda alguma coisa. Dei uma espiada por</p><p>baixo dele e vi que o cano de juntura da descarga está em terríveis</p><p>condições. Espero que esteja dirigindo com os vidros arriados.</p><p>— Não venha me dizer o que devo fazer! Conheço esse carro muito</p><p>melhor do que você!</p><p>Foi quando comecei a me encher daquilo. Não estava gostando do</p><p>rumo que o caso tomava — não queria discutir com Arnie, especialmente</p><p>agora, quando Leigh chegaria a qualquer momento —, mas pude sentir</p><p>alguém no compartimento cerebral do andar de cima, começando a apertar</p><p>aqueles botões vermelhos, um por um.</p><p>— Talvez seja verdade — repliquei, controlando a voz —, mas não</p><p>estou muito certo sobre até que ponto você conhece as pessoas. Will</p><p>Darnell lhe deu um adesivo de licença inadequado. Se você for apanhado,</p><p>Arnie, poderá perder seu certificado estadual de inspeção. Ele arranjou</p><p>também uma placa de concessionário. Por que Darnell fez isso, Arnie?</p><p>Pela primeira vez, Arnie ficou na defensiva.</p><p>— Eu já lhe disse. Ele sabe que estou trabalhando no carro.</p><p>— Não seja imbecil! Aquele cara não daria uma muleta a um</p><p>caranguejo aleijado se não tirasse nisso algum proveito e você sabe.</p><p>— Pelo amor de Deus, Dennis, quer fazer o favor de ficar fora disso?</p><p>— Escute aqui, cara — falei, dando um passo para ele. — Estou</p><p>pouco me lixando se você tem ou não um carro. Só não quero que se meta</p><p>em enrascadas por causa dele. Sinceramente.</p><p>Ele me fitou com incerteza.</p><p>— E outra coisa: por que estamos aqui aos gritos, um para o outro?</p><p>— acrescentei. — Só porque espiei debaixo de seu carro, para ver como o</p><p>cano de descarga estava preso?</p><p>Enfim, aquilo não era tudo o que eu tinha feito. Não tudo. E penso</p><p>que ambos sabíamos disso.</p><p>No campo de jogo, o tiro final soou com um "bangue" monótono.</p><p>Uma brisa ligeira começara a soprar e estava esfriando. Viramo-nos para o</p><p>som do tiro e avistamos Leigh, caminhando em nossa direção, trazendo</p><p>suas bandeirolas e as de Arnie. Ela acenou. Acenamos em resposta.</p><p>— Posso muito bem cuidar de mim, Dennis — avisou ele.</p><p>— Está legal — respondi simplesmente. — Espero que possa.</p><p>De repente, senti vontade de perguntar-lhe até que ponto ia sua</p><p>amizade com Darnell. Foi uma pergunta que não pude fazer, porque</p><p>originaria uma discussão ainda mais amarga. Seriam ditas coisas que</p><p>talvez nunca mais fossem reparadas.</p><p>— Claro que posso — disse ele.</p><p>Tocou seu carro e a expressão dura dos olhos suavizou-se.</p><p>Experimentei uma mistura de alívio e inquietação — alívio, por afinal não</p><p>acabarmos brigando, pois tínhamos conseguido controlar as palavras que,</p><p>se ditas, seriam o golpe final. Não obstante, tive a sensação de que não</p><p>fora fechado apenas um aposento em nossa amizade, mas toda uma</p><p>maldita ala. Ele rejeitara totalmente o que eu tinha para dizer e deixou</p><p>bem claras as condições para que nossa amizade continuasse: tudo estaria</p><p>bem, desde que eu não me atravessasse em seu caminho.</p><p>Se ele pudesse perceber, essa também era a atitude de seus pais. De</p><p>qualquer modo, Arnie teria que descobrir isso em outra oportunidade.</p><p>Leigh chegou até nós, com gotas de chuva cintilando em seu cabelo.</p><p>Estava corada, os olhos brilhantes de boa saúde e saudável excitamento.</p><p>Exalava uma ingênua e não-testada sexualidade, que me deixou com a</p><p>cabeça ligeiramente</p><p>zonza. Não que eu fosse o objeto principal de sua</p><p>atenção — Arnie é que o era.</p><p>— Como foi que terminou? — perguntou ele.</p><p>— Vinte e sete a dezoito — disse ela, para acrescentar, jovialmente:</p><p>— Nós acabamos com eles. Onde estavam vocês dois?</p><p>— Conversando sobre carros, nada mais — falei.</p><p>Arnie dirigiu-me um olhar divertido — pelo menos, seu senso de</p><p>humor não havia desaparecido, juntamente com o senso comum. Pensei</p><p>que houvesse algum motivo de esperança, na maneira como olhava para</p><p>ela. Estava gamado por Leigh, da cabeça aos pés. No momento, ainda era</p><p>uma queda lenta, mas certamente a velocidade aumentaria, com eles dois</p><p>saindo juntos. A pele de Arnie limpara completamente e sua aparência era</p><p>muito boa, apesar de um tanto intelectual, por causa dos óculos que usava.</p><p>Não era o tipo de pessoa que se esperaria fosse do agrado de alguém como</p><p>Leigh Cabot; o que qualquer um imaginaria, era vê-la pendurada ao braço</p><p>da versão ginasial americana de Apolo.</p><p>As pessoas agora cruzavam o campo correndo, nossos jogadores e os</p><p>adversários, nossa torcida e a deles.</p><p>— Apenas conversando sobre carros — repetiu Leigh, zombeteira.</p><p>Ergueu o rosto para Arnie e sorriu. Ele sorriu também, um sorriso</p><p>enternecido e satisfeito, que encheu meu coração de alegria. Bastava olhar</p><p>para ele e eu poderia dizer que quando Leigh lhe sorria daquele jeito,</p><p>Christine era o assunto mais remoto em sua mente, ficava relegada ao seu</p><p>lugar exato, isto é, um meio de transporte.</p><p>Achei aquilo ótimo.</p><p>Nas Arquibancadas</p><p>Ó Senhor, quer me comprar um Mercedes-Benz?</p><p>Todos os meus amigos dirigem Porsches,</p><p>Preciso ser compensado...</p><p>— Janis Joplin</p><p>Nas primeiras duas semanas de outubro, vi Arnie e Leigh um bocado</p><p>de vezes pelos corredores, primeiro recostados contra seus armários</p><p>pessoais, o dele ou o dela, conversando antes do toque de ida para casa;</p><p>depois de mãos dadas; em seguida, saindo da escola enlaçados pelos</p><p>ombros. Tinha acontecido. No jargão escolar, eles estavam "saindo</p><p>juntos". Pensei que era bem mais do que isso. Pensei em como estavam</p><p>apaixonados.</p><p>Eu não vira mais Christine desde o dia em que derrotamos o time de</p><p>Hidden Hills. Aparentemente, ela retornara à Darnell's para novos reparos</p><p>— talvez isso fizesse parte do acordo entre Arnie e Darnell, quando este</p><p>lhe emprestara a placa de concessionário e o adesivo ilegal aquele dia. Não</p><p>vi o Fury, mas vi Leigh e Arnie muitas vezes... e também ouvi muito a</p><p>respeito dos dois. Eram um assunto quente, nas fofocas da escola. As</p><p>garotas queriam saber o que Leigh vira nele, afinal; os rapazes, sempre</p><p>mais práticos e vulgares, queriam apenas saber se meu amigo tampinha já</p><p>conseguira ir "até o fim do caminho" com sua garota. Eu não me</p><p>preocupava com nenhuma das duas coisas, mas de tempos em tempos me</p><p>perguntava o que pensariam Regina e Michael sobre o caso extremo de</p><p>primeiro amor de seu filho.</p><p>Em certa segunda-feira de meados de outubro, eu e Arnie almoçamos</p><p>juntos nas arquibancadas, perto do campo de futebol, como havíamos</p><p>planejado fazer naquele dia em que Buddy Repperton exibira sua faca.</p><p>Aliás, Repperton fora realmente expulso por causa daquilo. "Penetra" e</p><p>Don saíram-se com três dias de suspensão. No momento, comportavam-se</p><p>como bons meninos. E, nesse ínterim não-tão-doce, o time de futebol</p><p>sofrera mais duas derrotas. Nossa contagem agora era de 1-5 e o treinador</p><p>recaíra em rabugento silêncio.</p><p>Meu saco de almoço não estava tão bem abastecido como no dia de</p><p>Repperton e da faca; o único ponto positivo que eu via em nossa contagem</p><p>de 1-5 era que agora nos mantínhamos tão atrás dos Ursos de Ridge Rock</p><p>(cuja contagem era de 5-0-1) que somente se o ônibus da equipe deles</p><p>despencasse por um abismo conseguiríamos fazer alguma coisa na</p><p>Associação.</p><p>Estávamos sentados ao brando sol de outubro — não faltava muito</p><p>tempo para os fantasmas feitos de lençóis, as máscaras de borracha e</p><p>fantasias compradas no Woolworth —, mastigando e falando pouco. Arnie</p><p>tinha um ovo grelhado com temperos picantes e o trocou por um de meus</p><p>sanduíches de carne fria. Os pais pouco sabem sobre as vidas secretas dos</p><p>filhos, penso eu. Desde o primeiro grau, todas as segundas-feiras Regina</p><p>Cunningham colocava um ovo-grelhado-picante na lancheira de Arnie, e</p><p>todos os dias, depois de havermos jantado carne assada (em geral na ceia</p><p>dos domingos), eu tinha uma fatia daquela carne em meu sanduíche.</p><p>Acontece que sempre detestei carne assada fria e Arnie sempre detestou</p><p>aqueles ovos picantes, embora eu nunca o tivesse visto rejeitar um ovo</p><p>preparado de outro modo. Muitas e muitas vezes me perguntei o que</p><p>pensariam nossas mães se soubessem que parte ínfima das centenas de</p><p>ovos picantes e dúzias de sanduíches de carne assada fria, postos em</p><p>nossas respectivas lancheiras, tinham sido realmente comidos por aqueles</p><p>a quem eram destinados.</p><p>Comi meus biscoitos e Arnie seus doces de figo em barra. Ele me</p><p>olhou para certificar-se de que eu espiava e então enfiou todas as seis</p><p>barras de doce de figo na boca, ao mesmo tempo, começando a mastigá-</p><p>las. Suas bochechas se incharam grotescamente.</p><p>— Que falta de educação, raios! — exclamei.</p><p>— Ung-un-guut-ung — replicou Arnie.</p><p>Comecei a espetar meus dedos em suas costelas, onde ele sempre</p><p>sentira muita cócega, gritando:</p><p>— Vou tocar piano em suas costelas! Ouviu bem, Arnie? Vou tocar</p><p>piano em suas costelas! Ele começou a rir, expelindo pequenos punhados</p><p>de massa de doce meio mastigada. Sei o quanto isto pode parecer</p><p>detestável, mas era bastante divertido.</p><p>— Pare, Dennis! — disse ele, com a boca ainda cheia de doce.</p><p>— Como disse? Não consigo entender o que diz, seu filho da mãe!</p><p>Eu continuava a fazer-lhe cócegas, no estilo que denominávamos</p><p>"tocar piano" quando éramos crianças (por algum motivo hoje perdido nas</p><p>areias do tempo), enquanto ele ficava se torcendo, retorcendo e rindo.</p><p>Engoliu tudo o que tinha na boca e depois arrotou.</p><p>— Nossa! Você é muito mal-educado, Cunningham! — exclamei.</p><p>— E eu não sei?</p><p>Ele parecia realmente satisfeito com aquilo. Talvez estivesse mesmo;</p><p>que eu soubesse, nunca fizera aquele truque das seis barras de doce</p><p>enfiadas na boca ao mesmo tempo, diante de mais ninguém. Se cometesse</p><p>tal atrocidade em presença dos pais, acho que Regina pariria um gatinho e</p><p>Michael possivelmente teria uma trombose cerebral.</p><p>— Quantas você já conseguiu enfiar na boca? — perguntei.</p><p>— Uma vez já botei doze ao mesmo tempo — disse ele —, mas</p><p>pensei que fosse sufocar. Eu ri com vontade.</p><p>— Já fez a demonstração para Leigh?</p><p>— Estou reservando para a festa de fim de ano — disse. — Espero</p><p>também poder tocar piano nas costelas dela.</p><p>Rimos à beça com isso e percebi o quanto às vezes sentia falta de</p><p>Arnie — e eu tinha o futebol, o conselho de estudantes, uma nova</p><p>namorada que (assim esperava) consentiria em masturbar-me, antes que</p><p>terminasse a temporada do drive-in. Minhas esperanças de que ela fosse</p><p>além disso eram mínimas: a garota parecia encantada demais consigo</p><p>mesma. De qualquer modo, seria uma experiência divertida.</p><p>Mesmo com tanta coisa acontecendo, eu ainda sentia falta de Arnie.</p><p>Primeiro havia sido Christine, agora eram Leigh e Christine. Nesta ordem,</p><p>era o que esperava.</p><p>— Onde está ela hoje? — perguntei.</p><p>— Indisposta — informou ele. — Ficou menstruada e parece que não</p><p>passa muito bem com suas regras.</p><p>Ergui as sobrancelhas mentalmente. Se ela discutia seus problemas</p><p>femininos com ele, é porque já estavam ficando muito íntimos.</p><p>— Como foi que pediu a ela para ir ao jogo de futebol aquele dia?</p><p>Quando jogamos em Hidden Hills?</p><p>Ele riu.</p><p>— O único jogo de futebol a que já fui, desde calouro. Demos sorte a</p><p>você, Dennis.</p><p>— Foi só telefonar para ela e convidá-la?</p><p>— Quase não tive coragem. Foi o primeiro encontro que tive. — Ele</p><p>me fitou com acanhamento.</p><p>— Na véspera, acho que só dormi umas duas horas. Depois que</p><p>telefonei, e ela disse que iria comigo, fiquei em pânico, achando que tinha</p><p>feito um papel idiota ou que Buddy Repperton ia aparecer e querer brigar.</p><p>Pensei que ia acontecer qualquer coisa terrível.</p><p>— Você parecia ter tudo sob controle.</p><p>— É mesmo?</p><p>— Ele ficou satisfeito. — Hum, é bom ouvir isso, mas</p><p>a verdade é que estava apavorado. Ela já tinha conversado comigo nos</p><p>corredores, sabe como é, me perguntava sobre os deveres de casa e coisas</p><p>assim. Entrou para o clube de xadrez, mesmo não sendo muito boa...</p><p>Agora está ficando melhor. Estou ensinando como se joga.</p><p>Aposto que sim, vivaldino, pensei, não ousando dizer em voz alta.</p><p>Ainda recordava a maneira como Arnie se voltara contra mim, naquele dia</p><p>do jogo em Hidden Hills. Por outro lado, eu queria ouvir aquilo, estava</p><p>morrendo de curiosidade. Conquistar uma garota fascinante como Leigh</p><p>Cabot devia ter sido uma dureza.</p><p>— Então, depois de algum tempo, comecei a pensar que ela poderia</p><p>estar interessada em mim — prosseguiu Arnie. — Talvez eu demorasse</p><p>mais a me convencer do que qualquer outro cara... estou falando de caras</p><p>como você, Dennis.</p><p>— Lógico, sou uma fera — respondi. — Aquilo a que James Brown</p><p>costumava chamar de máquina sexual.</p><p>— Bem, você não é nenhuma máquina sexual, mas entende de</p><p>garotas — disse Arnie, muito sério. — Você as compreende. Sempre tive</p><p>medo delas e nunca sabia o que dizer. E ainda não sei, acho. Leigh é</p><p>diferente.</p><p>— Eu tinha receio de convidá-la para sair. — Ele continuou e pareceu</p><p>considerar a questão. — Quero dizer, Leigh é uma garota bonita, muito</p><p>bonita mesmo. Você não acha, Dennis?</p><p>— Acho. Que me conste, é a mais bonita da escola. Ele sorriu</p><p>satisfeito.</p><p>— Eu também acho... mas pensei que só achasse porque a amo.</p><p>Olhei para meu amigo, esperando que não se envolvesse em</p><p>problemas maiores do que poderia controlar. A esta altura, naturalmente,</p><p>eu não tinha idéia do significado da palavra problema.</p><p>— Além do mais, ouvi dois caras conversando um dia, no laboratório</p><p>de química, Lenny Barongg e Ned Stroughman. Ned contava a Lenny que a</p><p>convidava para sair e que ela se recusara, de maneira delicada... como se</p><p>talvez aceitasse um segundo convite. Quando imaginei que ela poderia</p><p>estar firme com Ned na primavera, comecei a ficar com um ciúme dos</p><p>diabos. Você entende o que quero dizer?</p><p>Sorri e assenti. Lá fora, no campo, as chefes de torcida ensaiavam</p><p>novas rotinas. Não achei que fossem de grande ajuda para o nosso time,</p><p>mas era gostoso espiá-las. Suas sombras acumulavam-se em torno dos pés</p><p>sobre a grama verde, à luz brilhante do meio-dia.</p><p>— Outra coisa que me tocou, foi ver que Ned não parecia chateado...</p><p>nem tampouco envergonhado ou... rejeitado. Nada assim. Ele a convidou,</p><p>levou um fora e foi tudo. Decidi que também podia fazer aquilo. Mas</p><p>então, quando liguei para a casa dela, suava pelo corpo todo. Cara, foi o</p><p>diabo! Fiquei imaginando Leigh rindo de mim e dizendo qualquer coisa</p><p>como "Eu, sair com você, seu asqueroso? Deve estar sonhando! Ainda não</p><p>estou desesperada!".</p><p>— É — concordei. — Não sei como ela não disse isso. Ele me</p><p>esmurrou o estômago.</p><p>— Vou tocar piano em suas tripas, Dennis! Vou fazer você vomitar!</p><p>— Pare com isso — falei. — E depois? Arnie deu de ombros.</p><p>— Não há muito mais para contar. A mãe dela atendeu, quando liguei</p><p>para lá, e disse que ia chamá-la. Ouvi o barulho do fone sendo colocado</p><p>em cima da mesa e quase desliguei. — Arnie exibiu dois dedos, afastados</p><p>entre si por menos de um centímetro. — Faltou isto para que eu</p><p>desligasse. Sem brincadeira!</p><p>— Conheço a sensação — falei, e conhecia mesmo.</p><p>A gente se preocupa com as zombadas, o desprezo em qualquer dose,</p><p>pouco importando se jogamos futebol ou somos um nanico com espinhas e</p><p>de óculos, mas não creio que vocês possam avaliar o grau em que Arnie</p><p>deve ter sentido isso. Seu gesto exigira uma coragem fenomenal. Convidar</p><p>uma garota para sair é algo insignificante, mas em nossa sociedade</p><p>existem todos os tipos de forças negativas, girando atrás de tão simples</p><p>conceito — quero dizer, há caras que cursam todo o ginásio e nunca</p><p>reúnem coragem bastante para convidar uma garota a um encontro. Nem</p><p>uma só vez, em todos os quatro anos. E isto não acontece apenas com um</p><p>ou dois caras, mas com bandos deles. Como também há bandos de garotas</p><p>tristonhas que nunca foram convidadas. É uma merda de maneira de</p><p>dirigir as coisas, quando se pára para refletir a respeito. Muita gente se</p><p>machuca. Eu podia imaginar perfeitamente o terror de Arnie, esperando</p><p>que Leigh viesse atender o telefone; a sensação de mortal espanto à idéia</p><p>de que não pretendia convidar uma garota qualquer, porém a garota mais</p><p>bonita da escola.</p><p>— Ela atendeu — continuou Arnie. — Disse: "Alô?" e, cara, eu não</p><p>conseguia falar nada! Tentei, mas nada saía da garganta além de ar</p><p>resfolegado. Então ela insistiu: "Alô, quem está falando?", como se fosse</p><p>uma espécie de trote, sabe como é. Fiquei pensando: isto é ridículo! Se</p><p>pude conversar com ela no corredor, devia ser capaz de falar com ela pelo</p><p>maldito telefone. Tudo que Leigh pode dizer é não, quero dizer, não vai</p><p>me matar, nada disso, se a convidar para sair. Então, falei: "oi, aqui é Arnie</p><p>Cunningham". Ela respondeu: "oi", e blablablá, conversa mole, conversa</p><p>mole, conversa mole, até eu perceber que nem mesmo, droga, sabia para</p><p>onde convidá-la. E logo ficaríamos sem assunto, ela ia desligar... Foi</p><p>quando lhe disse a primeira coisa que me passou pela cabeça, perguntei se</p><p>queria ir comigo ao jogo de futebol no sábado. Ela disse que adoraria ir,</p><p>foi bem assim, como se só estivesse esperando que eu a convidasse, você</p><p>saca?</p><p>— Vai ver, ela estava mesmo esperando que você a convidasse.</p><p>— Hum... Talvez sim.</p><p>Arnie meditou na questão, bestificado. O sinal tocou, significando</p><p>cinco minutos para o quinto tempo. Eu e Arnie nos levantamos. As chefes</p><p>de torcida correram para fora do campo, com seus saiotes agitando-se</p><p>provocativamente.</p><p>Descemos as arquibancadas, jogamos os sacos vazios do almoço em</p><p>um dos barris de lixo, pintados com as cores da escola — laranja e preto,</p><p>falando-se do Dia das Bruxas — e caminhamos para a escola.</p><p>Arnie ainda sorria, recordando a maneira como tudo havia</p><p>acontecido, naquela primeira vez com Leigh.</p><p>— Convidá-la para ir ao jogo foi puro desespero.</p><p>— Muito obrigado — repliquei. — É isso o que mereço por ter</p><p>botado os bofes pra fora a tarde toda do sábado, hein?</p><p>— Você entende o que eu quero dizer. Então, depois que ela</p><p>concordou em ir comigo, tive aquela idéia horrível e liguei para você</p><p>lembra-se?</p><p>Lembrei-me de repente. Ele ligara para saber se íamos jogar em casa</p><p>ou fora, tendo parecido absurdamente arrasado, quando lhe falei que seria</p><p>em Hidden Hills.</p><p>— Pois lá estava eu, prestes a sair com a garota mais bonita da</p><p>escola, doidão por ela, e fico sabendo que o jogo ia ser fora daqui. E com</p><p>meu carro emperrado na garagem de Will.</p><p>— Podiam ter ido no ônibus.</p><p>— Eu sei, mas na hora nem pensei nisso. O ônibus sempre costumava</p><p>estar lotado, uma semana antes do jogo. Não podia imaginar que tanta</p><p>gente fosse deixando de assistir às partidas, com o time perdendo.</p><p>— Não me lembre isso — pedi.</p><p>— Então, apelei para Will. Sabia que Christine agüentaria a viagem,</p><p>mas ainda não tinha a papelada legal para a rua. Resumindo, eu estava</p><p>desesperado.</p><p>Desesperado, como?— perguntei-me, fria e repentinamente.</p><p>— Ele foi muito legal comigo. Disse que compreendia o quanto</p><p>aquilo era importante e, se... — Arnie fez uma pausa, parecendo</p><p>considerar. — Bem, era a tal história do grande encontro — terminou,</p><p>desajeitadamente.</p><p>E se...</p><p>Bem, não era da minha conta.</p><p>Olhe por ele, meu pai tinha dito.</p><p>Recusei também este pensamento.</p><p>Passávamos agora pela área de fumar, deserta, exceto por três caras e</p><p>duas garotas, fumando apressadamente o que restava de um baseado.</p><p>Usavam o artifício de uma carteirinha de fósforos, dobrada como clipe</p><p>para segurar a minúscula guimba. O odor evocativo da maconha, tão</p><p>similar ao aroma das folhas de outono queimadas lentamente, deslizou por</p><p>minhas narinas.</p><p>— Tem visto Buddy Repperton? — perguntei.</p><p>— Não e nem quero — respondeu ele. — E você?</p><p>Eu o vira apenas uma vez, quando ele aparecera no posto de gasolina</p><p>Happy Gas, de Vandenberg, na Rota 22, em Monroeville. O posto tinha</p><p>uma bomba apenas, pertencia ao pai de Vandenberg e vivia à beira da</p><p>falência,</p><p>desde o embargo do petróleo árabe, em 73. Buddy não me vira —</p><p>eu estava apenas passando por perto.</p><p>— Não cheguei a falar com ele.</p><p>— Acha que ele falaria? — perguntou Arnie, com um sarcasmo que</p><p>não lhe era costumeiro. — O grande bosta!</p><p>Sobressaltei-me. Aquela palavra novamente. Pensei a respeito, disse</p><p>a mim mesmo, que diabo, e então perguntei-lhe onde ouvira aquele termo</p><p>tão específico.</p><p>— Lembra-se do dia em que comprei o carro? — perguntou. — Não</p><p>o dia em que dei o dinheiro de entrada, mas aquele em que paguei o</p><p>restante.</p><p>— Claro que me lembro.</p><p>— Entrei com LeBay em sua casa, enquanto você ficava do lado de</p><p>fora. Havia uma cozinha minúscula, com uma toalha de xadrez vermelho</p><p>na mesa. Sentamo-nos e ele me ofereceu uma cerveja. Achei que devia</p><p>aceitar. Eu queria o carro e não pretendia ofendê-lo de modo algum,</p><p>entende? Assim, cada um bebeu uma cerveja, enquanto ele começava com</p><p>aquela interminável divagação... como a chamaria? Acho que arenga.</p><p>Aquela arenga sobre todos os bostas estarem contra ele. Era o nome que</p><p>empregava, Dennis. Os bostas. Disse serem os bostas que o forçavam a</p><p>vender o carro.</p><p>— O que queria dizer com isso?</p><p>— Sem dúvida, queria dar a entender que era velho demais para</p><p>dirigir, mas não se expressou em palavras. Era tudo culpa deles. Dos</p><p>bostas. Os bostas queriam que ele fizesse exame de estrada para motorista</p><p>a cada dois anos e um exame de vista todo ano. Era este último que o</p><p>preocupava. Alegou que não o queriam na rua, que ninguém o queria</p><p>dirigindo. Então, alguém atirou uma pedrada em seu carro.</p><p>"Sinceramente, eu compreendia tudo aquilo. Mas não compreendo</p><p>como ele pôde... — Arnie fez uma pausa rente à porta, esquecendo que já</p><p>estávamos atrasados para a aula. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos</p><p>traseiros do jeans e franzia o cenho. — Não compreendo como ele pôde</p><p>deixar Christine ficar parada, arruinando-se daquela maneira, Dennis. Do</p><p>jeito como estava, quando a comprei. Principalmente, se falava sobre ela</p><p>como se realmente a amasse... você talvez vá pensar que isso fazia parte</p><p>da conversa fiada para me vender o carro, mas não era. Então, já no fim,</p><p>quando ele contava o dinheiro, deu uma espécie de resmungo: 'Esse carro</p><p>de merda! Que me foda, se sei por que o quer, garoto. É o ás de espadas.'</p><p>Respondi qualquer coisa, alegando achar que eu poderia pôr Christine em</p><p>excelente estado. Ele respondeu: 'Tudo isso e ainda mais. Se os bostas</p><p>permitirem"'</p><p>Entramos. O Sr. Lehereux, professor de Francês, rumava</p><p>apressadamente para algum lugar, a cabeça calva luzindo sob as luzes</p><p>fluorescentes.</p><p>— Estão atrasados, garotos — disse ele, em uma voz ofegante, que</p><p>me fez lembrar o coelho branco de Alice no País das Maravilhas.</p><p>Ele caminhou mais depressa, até ficar fora de vista. Então, nós dois</p><p>voltamos a caminhar devagar.</p><p>— Quando Buddy Repperton foi atrás de mim daquele jeito — disse</p><p>Arnie —, confesso que fiquei com medo de verdade. — Ele baixou a voz,</p><p>sorrindo, mas sério. — Quase borrei as calças, se quer saber. Enfim, acho</p><p>que usei a palavra de LeBay sem sentir. Não acha que se aplica ao caso de</p><p>Repperton?</p><p>— Tem razão.</p><p>— Preciso ir agora — disse Arnie. — Cálculos primeiro, depois</p><p>Mecânica de Motores III. De qualquer modo, acho que fiz todo o curso</p><p>trabalhando em Christine.</p><p>Arnie apressou-se e fiquei no corredor, parado por coisa de um</p><p>minuto, vendo-o afastar-se. Havia um período vago em meu horário, sob a</p><p>orientação da Srta. Trouxa-de-Ratos. Era o sexto período das segundas-</p><p>feiras, e achei que podia esgueirar-me para os fundos, sem ser visto. Já</p><p>havia feito isso antes. Por outro lado, os alunos do último ano sempre</p><p>levavam a melhor em muitas coisas, como eu ia rapidamente aprendendo.</p><p>Fiquei ali, tentando afastar uma sensação de medo, que nunca fora</p><p>tão amorfa, tão pouco concreta. Havia algo errado, qualquer coisa fora do</p><p>lugar, não combinado. Senti um calafrio, que nem todo o brilhante sol de</p><p>outubro, penetrando por todas as janelas do ginásio, conseguia desfazer. As</p><p>coisas eram as mesmas de sempre, mas estavam se dispondo para uma</p><p>mudança — eu podia pressentir isso perfeitamente.</p><p>Fiquei ali, tentando pôr-me em movimento, dizer a mim mesmo que</p><p>o calafrio não passava de temores sobre meu próprio futuro, sendo essa a</p><p>mudança que me inquietava. Talvez o medo fizesse parte disso.</p><p>Possivelmente, mas não todo ele. Esse carro de merda! Que me foda, se</p><p>sei por que o quer, garoto. É o ás de espadas. Avistei o Sr. Lehereux, que</p><p>voltava do gabinete, e comecei a mover-me.</p><p>Penso que todos nós temos uma espécie de enxada atrás da cabeça,</p><p>que, em momentos de tensão ou problemas, pode ser movimentada e</p><p>simplesmente introduzir tudo que nos preocupa em uma grande fenda no</p><p>solo de nossa mente consciente. Livrando-se de tudo. Enterrando-o. No</p><p>entanto, a tal fenda penetra no subconsciente e, às vezes, em sonhos, os</p><p>corpos despertam e caminham. Tornei a sonhar com Christine naquela</p><p>noite. Desta vez, Arnie estava ao volante e o cadáver em decomposição de</p><p>Roland D. LeBay oscilava obscenamente no banco do passageiro, enquanto</p><p>o carro rugia para fora da garagem e vinha contra mim, espetando-me com</p><p>os círculos selvagens de seus faróis.</p><p>Acordei com o travesseiro apertado contra a boca, para sufocar os</p><p>gritos.</p><p>O Acidente</p><p>Mais depressa, mais depressa,</p><p>Amigão, ninguém te deixa pra trás.</p><p>— The Beach Boys</p><p>Até o Dia de Ação de Graças, aquela foi a última vez que conversei</p><p>com Arnie — que conversei realmente com ele —, porque fui posto fora</p><p>de circulação no sábado seguinte. Era o dia em que tornávamos a enfrentar</p><p>os Ursos de Ridge Rock e, desta feita, perdemos pela contagem</p><p>verdadeiramente espetacular de 46—3. Entretanto, eu não estaria mais lá,</p><p>quando o jogo terminou. Já teria transcorrido uns sete minutos do terceiro</p><p>quarto de tempo, quando vi o campo livre, agarrei um passe e me dispunha</p><p>a correr, no exato momento em que fui atingido simultaneamente pelos</p><p>três jogadores da linha de defesa dos Ursos. Houve um instante de dor</p><p>horrenda, um clarão ofuscante como se eu houvesse sido apanhado na área</p><p>zero de uma explosão nuclear... e depois a escuridão. Uma escuridão total.</p><p>Tudo permaneceu escuro por um período razoavelmente longo,</p><p>embora eu não tivesse qualquer noção do fato. Fiquei inconsciente por</p><p>cerca de cinqüenta horas, e ao acordar no final da tarde de segunda-feira,</p><p>23 de outubro, estava no Hospital Comunitário de Libertyville. Vi papai e</p><p>mamãe por perto. Também Ellie, parecendo pálida e cansada. Havia</p><p>olheiras escuras em torno de seus olhos e fiquei absurdamente comovido;</p><p>minha irmã ainda tinha forças para chorar por mim, apesar das guloseimas</p><p>que eu roubava da caixa de pão, depois que ela ia dormir, apesar da</p><p>caixinha de pílulas de vitaminas que lhe dera, quando ela estava com doze</p><p>anos e havia passado uma semana observando-se de perfil no espelho,</p><p>vestindo sua camiseta mais apertada, para ver se seus peitinhos estavam</p><p>mais crescidos (Ellie prorrompera em lágrimas e mamãe ficara irritada</p><p>comigo por quase duas semanas) e apesar das irritantes brincadeirinhas</p><p>fraternas de eu sou melhor do que você.</p><p>Arnie não estava lá quando acordei, mas apareceu pouco depois e se</p><p>juntou à minha família; ele e Leigh tinham ficado na sala de espera.</p><p>Naquela noite, meu tio e minha tia de Albany deram as caras e, pelo</p><p>restante da semana, houve um fixo desfilar de parentes e amigos — toda a</p><p>equipe de futebol esteve no hospital para visitar-me, incluindo-se o</p><p>treinador Puffer, que parecia ter envelhecido vinte anos. Talvez tivesse</p><p>descoberto que existem coisas piores do que uma temporada de derrotas.</p><p>Foi o treinador que me deu a notícia de que eu nunca mais poderia voltar</p><p>ao futebol. A julgar pela expressão grave e tensa de seu rosto, não sei o</p><p>que ele esperava — que eu explodisse em choro ou tivesse um acesso de</p><p>histeria. Entretanto, quase não esbocei qualquer reação, interna ou</p><p>externamente. Já bastava a alegria de saber-me vivo e que, eventualmente,</p><p>tornaria a andar.</p><p>Se eu houvesse sido atingido apenas uma vez, sem dúvida escaparia</p><p>bem e pronto para outra. O corpo humano, no entanto, não foi feito</p><p>— repetiu Arnie. — Gostei. E você, Dennis?</p><p>Agora ele falava em batizar a maldita coisa. Aquilo estava passando</p><p>dos limites.</p><p>— O que acha, Dennis, você gostou?</p><p>— Não — respondi. — Se tem que dar um nome a isso, Arnie, por</p><p>que não o chama de Problema? Ele pareceu magoar-se com isso, mas eu</p><p>pouco me importava. Voltei para meu carro, a fim de esperá-lo, desejando</p><p>que antes houvesse tomado um caminho diferente, na volta para casa.</p><p>A Primeira Discussão</p><p>Diga apenas aos seus amigos marginais lá fora,</p><p>Que você não tem tempo para dar um passeio!</p><p>(Conversa mole!)</p><p>Não responda!</p><p>— The Coasters</p><p>Levei Arnie de carro até sua casa e entrei com ele para um pedaço de</p><p>bolo e um copo de leite, antes de seguir para a minha. Foi uma decisão da</p><p>qual me arrependi prontamente.</p><p>Arnie morava na Laurel Street, situada em uma tranqüila zona</p><p>residencial, no lado oeste de Libertyville. Em geral, Libertyville é quase</p><p>que integralmente tranqüila e residencial. Nada de grande estilo, como o</p><p>subúrbio vizinho de Fox Chapei (onde a maioria das residências se</p><p>compõe de propriedades como aquelas que costumamos ver todas as</p><p>semanas em Columbo), mas também não é como Monroeville, com seus</p><p>quilômetros de ruas comerciais, depósitos de pneus vendidos com</p><p>desconto e sujos empórios de livros. Por aqui não temos nenhuma</p><p>indústria pesada; trata-se, principalmente, de uma comunidade-dormitório</p><p>para a vizinha Universidade. Sem suntuosidade, mas pelo menos uma</p><p>espécie de concentração de cérebros.</p><p>Arnie estivera calado e pensativo, durante toda a caminhada para</p><p>casa; tentei distraí-lo, mas ele não se deixou distrair. Perguntei-lhe o que</p><p>pretendia fazer com o carro.</p><p>— Ajeitá-lo — respondeu, em voz ausente, tornando a ficar em</p><p>silêncio.</p><p>Bem, ele tinha jeito para isso; eu não questionava o assunto. Era bom</p><p>com ferramentas, podia ouvir e concentrar-se. Suas mãos eram sensíveis e</p><p>ágeis com mecanismos; somente quando estava perto de outras pessoas,</p><p>em especial garotas, é que elas ficavam desajeitadas e inquietas,</p><p>procurando estalar os nós dos dedos ou enfiar-se nos bolsos, quando não</p><p>(pior do que tudo) se encaminhavam para o rosto e deslizavam pela</p><p>acidentada paisagem das bochechas, queixo e testa, chamando a atenção</p><p>para esses pontos.</p><p>Ele podia ajeitar o carro, mas o dinheiro que ganhara nesse verão era</p><p>reservado para a Universidade. Nunca tivera um carro antes e pensei que</p><p>talvez não imaginasse a maneira sinistra como carros velhos podem sugar</p><p>dinheiro. Eles o sugam, como se imagina que um vampiro suga o sangue.</p><p>Arnie evitaria os custos da mão-de-obra na maioria dos casos, fazendo o</p><p>trabalho ele mesmo, porém só o conserto das peças isoladas quase o</p><p>mataria, antes de chegar ao fim.</p><p>Disse-lhe algumas dessas coisas, mas ele preferiu ignorar-me. Tinha</p><p>o olhar ainda distante e sonhador. Eu não saberia dizer em que pensava.</p><p>Michael e Regina Cunningham estavam em casa — ela decifrava</p><p>uma daquelas séries intermináveis de quebra-cabeças idiotas (este era a</p><p>respeito de seis mil rodas denteadas e engrenagens diferentes, sobre um</p><p>fundo absolutamente branco — e me deixaria arrancando os cabelos em</p><p>quinze minutos) e ele ouvia música na sala.</p><p>Não demorou muito, comecei a desejar que tivesse desistido do bolo</p><p>e do leite. Arnie contou a eles o que fizera, mostrou o recibo e os dois</p><p>imediatamente subiram pelas paredes.</p><p>Compreendam, Michael e Regina eram criaturas da Universidade até</p><p>o âmago. Procuravam ser bem-sucedidos e, para eles, isto significava</p><p>protestar. Haviam protestado em favor da integração, no início dos anos</p><p>60, passaram para o Vietnã e, quando desistiram, havia Nixon, questões de</p><p>equilíbrio racial nas escolas (podiam citar capítulo e versículos do caso</p><p>Alan Bakke, até pegarmos no sono), violência policial e brutalidade</p><p>paternal. Depois, foram os discursos — toda aquela discurseira. Estavam</p><p>quase tão envolvidos nisso, como nos protestos. Pareciam sempre</p><p>dispostos a tomar parte em sessões pela noite inteira, tratando das mais</p><p>variadas questões, desde o programa espacial a conferências estudantis em</p><p>desafio às autoridades acadêmicas, ou mesmo de um seminário sobre</p><p>possíveis alternativas de combustíveis fósseis. Só Deus sabe como</p><p>conseguiam tempo para tantas "linhas quentes" — números de telefone</p><p>para estuprados, drogados, para crianças fujonas que queriam conversar</p><p>com um amigo, bem como o bom, o velho DISQUE-AJUDA, para onde os</p><p>suicidas podiam ligar e ouvir uma voz compreensiva dizendo não faça</p><p>isso, chapa, você tem um compromisso social com a Espaçonave Terra.</p><p>Com vinte ou trinta anos lecionando em uma Universidade, o sujeito está</p><p>pronto para a discussão, da mesma forma que os cães de Pavlov estavam</p><p>prontos para sair quando ele tocava a campainha. Acredito que até se</p><p>chegue a gostar disso.</p><p>Regina (eles insistiam em que eu os chamasse por seus primeiros</p><p>nomes) tinha quarenta e cinco anos e era simpática, atraente de uma forma</p><p>um tanto fria e semi-aristocrática — isto é, conseguia parecer</p><p>aristocrática, mesmo usando jeans, o que fazia a maior parte do tempo.</p><p>Sua área era Inglês mas, naturalmente, quando se atinge um nível</p><p>universitário, isso nunca é bastante: é como dizer "América" se alguém lhe</p><p>pergunta de onde você é. Ela se refinara nisso e estava calibrada, como o</p><p>"blip" de uma tela de radar. Especializara-se em poetas primitivos</p><p>ingleses, tendo apresentado tese sobre Robert Herrick.</p><p>O negócio de Michael era História. Tinha uma aparência tão lutuosa</p><p>e melancólica, como a música que saía de sua flauta, embora luto e</p><p>melancolia não fossem uma parte normal de sua estrutura. Por vezes, ele</p><p>me fazia pensar no que Ringo Star supostamente havia dito, quando os</p><p>Beatles vieram à América pela primeira vez, e certo repórter, em uma</p><p>entrevista à imprensa, perguntou-lhe se ele era realmente tão triste quanto</p><p>parecia. "Não", replicou Ringo, "é só o meu rosto." Michael era assim.</p><p>Além do mais, seu rosto fino e os óculos grossos que usava combinavam</p><p>para emprestar-lhe uma leve aparência de caricatura de professor, em uma</p><p>inamistosa charge editorial. Seu cabelo começava a diminuir e ele usava</p><p>um pequeno cavanhaque anelado.</p><p>— Oi, Arnie — disse Regina, quando entramos. — Olá, Dennis.,</p><p>Naquela tarde, foi essa a última coisa cordial que ela disse para nós</p><p>dois. Respondemos "Oi" e passamos ao nosso bolo com leite. Sentamos no</p><p>canto reservado ao café da manhã. O jantar estava em andamento no forno</p><p>e, lamento dizer, o cheiro era francamente repelente. Regina e Michael</p><p>tinham andado flertando com o vegetarianismo durante algum tempo e,</p><p>naquela noite, o aroma dava a impressão de que ela preparava uma boa e</p><p>velha torta de algas ou coisa assim. Esperei que não me convidassem para</p><p>ficar.</p><p>A música da flauta cessou e Michael veio para a cozinha. Usava</p><p>bermudas, recortadas de uma calça jeans e tinha um ar de quem acaba de</p><p>receber a notícia da morte de seu melhor amigo.</p><p>— Estão atrasados, rapazes — disse. — Algo errado?</p><p>Abriu a geladeira e começou a vistoriar seu interior. Talvez a torta de</p><p>algas também não lhe fosse tão agradável ao olfato.</p><p>— Comprei um carro — disse Arnie, cortando outro pedaço de bolo.</p><p>— Você fez o quê? — exclamou sua mãe no outro aposento,</p><p>imediatamente.</p><p>Ela se levantou depressa demais e houve uma batida seca, quando</p><p>suas coxas colidiram solidamente contra a beira da mesa de jogo, onde</p><p>resolvia seus quebra-cabeças. O baque foi seguido pelo ruído cascateado</p><p>de peças caindo ao chão. Foi quando comecei a pensar que seria melhor ter</p><p>ido direto para casa.</p><p>Michael Cunningham se voltara da geladeira para fitar o filho,</p><p>segurando uma maçã em uma das mãos e uma embalagem de papelão com</p><p>iogurte natural na outra.</p><p>— Você está brincando — disse, e por alguma absurda razão, pela</p><p>primeira vez notei que seu cavanhaque, usado desde mais ou menos 1970,</p><p>estava ficando um bocado grisalho. — Arnie, você está brincando, não?</p><p>Diga que é uma brincadeira.</p><p>Regina entrou, alta e semi-aristocrática, além de infernalmente</p><p>furiosa. Esquadrinhou de perto o rosto de Arnie e soube que ele não estava</p><p>brincando.</p><p>— Você não pode comprar um carro — falou.</p><p>para</p><p>ser comprimido de três ângulos diferentes, ao mesmo tempo. Eu estava</p><p>com as duas pernas quebradas, a esquerda em dois lugares. Meu braço</p><p>direito havia sido puxado para trás, quando caí, de maneira que ostentava</p><p>uma feia fratura parcial no antebraço. Entretanto, tudo isso era apenas o</p><p>enfeite do bolo. Também tive o crânio fraturado, e mais o que o médico</p><p>incumbido de meu caso persistia em qualificar como "um acidente na</p><p>porção inferior da coluna", com isto querendo dizer que, por fração de</p><p>centímetro, eu escapava de ficar paralisado da cintura para baixo, pelo</p><p>resto da vida.</p><p>Recebi montes de visitas, montes de flores, montes de cartões. De</p><p>certo modo, tudo isso era muito agradável — como estar vivo para ajudar</p><p>a comemorar a própria ressurreição.</p><p>Entretanto, houve também um bocado de dores e um bocado de</p><p>noites em que não podia dormir; um de meus braços ficou suspenso acima</p><p>do corpo através de pesos e roldanas, o mesmo acontecendo a uma das</p><p>pernas (ambas comichavam o tempo todo, por sob o gesso) e houve</p><p>também mais uma carapaça de gesso temporária — conhecida como</p><p>"molde compressor" — em torno da parte inferior do torso. Além do mais,</p><p>havia a perspectiva de uma longa permanência no hospital e viagens</p><p>intermináveis de cadeira de rodas àquela câmara de horrores tão</p><p>inocentemente intitulada Ala de Terapia.</p><p>Oh, havia mais uma coisa — eu tinha um bocado de tempo.</p><p>Eu lia o jornal. Fazia perguntas aos que me visitavam. E por diversas</p><p>vezes, quando as coisas prosseguiram e minhas suspeitas começaram a</p><p>tomar proporções exageradas, interroguei-me sobre se não poderia estar</p><p>perdendo a razão.</p><p>Fiquei no hospital até o Natal, e ao voltar para casa aquelas suspeitas</p><p>já quase haviam adquirido sua moldagem final. A cada vez me era mais</p><p>difícil negar essa monstruosa configuração e eu sabia muitíssimo bem que</p><p>não estava perdendo o juízo. Em certos sentidos, teria sido até melhor —</p><p>mais confortador — se pudesse ter acreditado nisso. Àquela altura, no</p><p>entanto, além de estar terrivelmente assustado, estava também quase</p><p>apaixonado pela garota de meu melhor amigo.</p><p>Havia tempo para pensar... tempo demais.</p><p>Tempo para xingar cem vezes a mim mesmo, pelo que vinha</p><p>pensando sobre Leigh. Tempo para contemplar o forro de meu quarto e</p><p>desejar jamais ter ouvido falar de Arnie Cunningham... de Leigh Cabot...</p><p>ou de Christine.</p><p>Arnie — Canções adolescentes sobre amor</p><p>A SEGUNDA DISCUSSÃO</p><p>O vendedor chegou pra mim e disse:</p><p>"Dê seu Ford de entrada,</p><p>E lhe arranjo um carro que comerá a estrada!</p><p>Basta me dizer o que deseja e assinar nesta linha,</p><p>Que lhe entregarei o carro novo dentro de uma hora.</p><p>Vou ficar com um carrão</p><p>E disparar estrada abaixo;</p><p>Então, adeus preocupações</p><p>Com aquele Ford caindo aos pedaços.</p><p>— Chuck Berry</p><p>O Plymouth 1958, de Arnie Cunningham, foi licenciado para trafegar</p><p>nas ruas, na tarde de 19 de novembro de 1978. Ali se encerrava o processo</p><p>— realmente iniciado na noite em que ele e Dennis Guilder trocaram</p><p>aquele primeiro pneu arriado —, com o pagamento de uma taxa de licença</p><p>no valor de 8,50 dólares, uma taxa rodoviária municipal de 2 dólares (que</p><p>também incluía a permissão de estacionamento grátis nos parquímetros do</p><p>centro da cidade) e 15 dólares por uma placa de matrícula. No</p><p>Departamento de Veículos a Motor, em Monroeville, Arnie recebeu a</p><p>chapa da Pensilvânia HY-6241-J.</p><p>Ele voltou do DVM para Libertyville em um carro que Will Darnell</p><p>lhe emprestara e saiu da Garagem Faça-Você-Mesmo de Darnell atrás do</p><p>volante de Christine. Levou-a para casa.</p><p>Seu pai e sua mãe chegaram juntos da Universidade Horlicks, cerca</p><p>de uma hora mais tarde. A briga teve início quase imediatamente.</p><p>— Vocês o viram? — perguntou Arnie, dirigindo-se aos dois, porém</p><p>principalmente ao pai. — Acabei de registrá-lo esta tarde.</p><p>Sentia-se orgulhoso e tinha motivos. Christine acabara de ser lavada</p><p>e polida, reluzia à última claridade do sol da tarde de outono. Ainda tinha</p><p>um bocado de ferrugem, mas parecia mil vezes melhor do que naquele dia</p><p>em que Arnie a trouxera. Os estofos das portas, como o capô e as traseiras</p><p>estavam novos em folha. O interior se apresentava impecável,</p><p>imaculadamente limpo. Os vidros e cromados cintilavam.</p><p>— Sim, eu... — começou Michael.</p><p>— É claro que o vimos! — explodiu Regina. Preparava um drinque,</p><p>que mexia com um misturador de coquetel em um copo de cristal,</p><p>formando furiosos círculos no sentido contrário ao movimento de um</p><p>relógio. — Quase o atropelamos. Não o quero estacionado aqui. A casa vai</p><p>parecer um depósito de carros usados!</p><p>— Mamãe! — exclamou Arnie, ofendido e espantado.</p><p>Olhou para o pai, mas Michael se afastara para preparar um drinque</p><p>— talvez decidindo que ia precisar de um.</p><p>— Muito bem — disse Regina Cunningham. Seu rosto estava</p><p>ligeiramente mais pálido que de costume. O ruge nas faces salientava-se,</p><p>quase como a pintura de um palhaço. Engoliu metade de seu gim com</p><p>tônica, fazendo uma careta como quem sente o gosto de um remédio</p><p>amargo. — Leve-o de volta para onde esteve. Não o quero aqui e não vou</p><p>admiti-lo aqui, Arnie. É a palavra final.</p><p>— Levá-lo de volta? — disse Arnie, agora não só ofendido, como</p><p>também irritado. — Formidável, não? Lá ele me sai a vinte pratas por</p><p>semana!</p><p>— Está lhe saindo a muito mais do que isso — replicou Regina.</p><p>Terminou de beber seu drinque e largou o copo. Virou-se e o encarou. —</p><p>Estive dando uma espiada em seu talão de cheques outro dia...</p><p>— Você fez o quê?— exclamou Arnie, com olhos arregalados.</p><p>Ela enrubesceu ligeiramente, mas não baixou os olhos. Michael se</p><p>aproximou e parou junto à porta, olhando pesaroso da mulher para o filho.</p><p>— Eu queria saber quanto você andou gastando nesse maldito carro</p><p>— disse ela. — Será alguma coisa demais? Você tem que ir para a</p><p>universidade o ano que vem. Que me conste, na Pensilvânia não estão</p><p>dando estudo de graça nas universidades.</p><p>— Então você apenas entrou em meu quarto e revirou tudo, até</p><p>encontrar meu talão de cheques, não foi? — disse Arnie. Seus olhos</p><p>cinzentos estavam frios de ódio. — Talvez estivesse procurando por</p><p>maconha também. Ou revistas pornográficas. Quem sabe, manchas de</p><p>esperma nos lençóis?</p><p>Regina ficou boquiaberta. É possível que esperasse dele uma reação</p><p>de mágoa ou raiva, mas não aquela fúria total e descontrolada.</p><p>— Arnie! — rugiu Michael.</p><p>— E daí, por que não? — gritou Arnie, em resposta. — Pensei que o</p><p>assunto fosse coisa minha! Deus é testemunha do quanto vocês ficaram</p><p>dizendo que era minha responsabilidade!</p><p>— Estou muito decepcionada por sua atitude, Arnold — disse</p><p>Regina. — Decepcionada e magoada. Você está se portando como...</p><p>— Não venha me dizer como me porto! Como acha que me sinto?</p><p>Trabalhei como o diabo para conseguir licenciar o carro, trabalhei nele</p><p>mais de dois meses e meio, mas quando o trago para casa, a primeira coisa</p><p>que ouço de você é para tirá-lo da entrada. Como é que deveria me sentir?</p><p>Feliz?</p><p>— Não é motivo para usar esse tom com sua mãe — disse Michael.</p><p>A despeito das palavras, o tom era desajeitadamente conciliatório. — Ou</p><p>para empregar esse tipo de linguagem.</p><p>Regina estendeu o copo para o marido.</p><p>— Prepare-me outro drinque. Há uma garrafa fechada de gim na</p><p>despensa.</p><p>— Fique aqui, papai — disse Arnie. — Por favor. Vamos resolver</p><p>isto!</p><p>Michael Cunningham olhou para a esposa, depois para o filho e em</p><p>seguida novamente para ela. Ambos pareciam como que de pedra. Ele</p><p>recuou para a cozinha, apertando o copo de Regina.</p><p>Regina se virou implacável para o filho. A cunha estivera em sua</p><p>porta desde finais do último verão e talvez ela percebesse ser aquela sua</p><p>última chance para chutá-la novamente.</p><p>— Em julho, você tinha quase quatro mil dólares no banco — disse.</p><p>— Cerca de três quartos de todo o dinheiro que conseguiu nos últimos</p><p>anos, mais os juros...</p><p>— Oh, você esteve de olho o tempo todo, não? — disse Arnie.</p><p>Sentou-se de repente, encarando a mãe. Seu tom era de desgostosa</p><p>surpresa. — Mamãe, por que não retirou o maldito dinheiro e colocou em</p><p>uma conta em seu nome?</p><p>— Porque até recentemente — disse ela — você parecia</p><p>compreender qual era a finalidade</p><p>— De que está falando,</p><p>afinal? Só tem dezessete anos!</p><p>Arnie olhou lentamente, do pai junto à geladeira, para a mãe parada à</p><p>porta que levava à sala de estar. Havia uma expressão teimosa e decidida</p><p>em seu rosto, algo que eu nunca vira antes, que me lembrasse. Pensei que,</p><p>se usasse aquela expressão com mais freqüência na escola, os colegas da</p><p>cantina não se mostrariam tão ávidos em massacrá-lo.</p><p>— A verdade é que se enganam — respondeu ele. — Posso comprar</p><p>um carro sem qualquer problema. Claro, à prestação seria impossível, mas</p><p>uma compra em dinheiro não oferece problema algum. Naturalmente,</p><p>registrar um carro aos dezessete anos é uma questão totalmente diferente.</p><p>Para isso, eu precisaria de sua permissão.</p><p>Os dois o fitavam com surpresa, inquietação e crescente raiva.</p><p>Quando percebi a última, experimentei uma profunda sensação de dor no</p><p>estômago. Apesar de todas as suas idéias liberais e comprometimentos</p><p>com os trabalhadores das fazendas, as esposas maltratadas, mães solteiras</p><p>e o resto, eles manipulavam Arnie completamente. E Arnie se deixava</p><p>dirigir.</p><p>— Não me parece legal, falar com sua mãe dessa maneira — disse</p><p>Michael. Recolocou o iogurte no lugar, conservou a maçã e fechou</p><p>lentamente a porta da geladeira. — Você é muito novo para ter um carro.</p><p>— Dennis tem um — disse Arnie prontamente.</p><p>— Bem, puxa! Como está ficando tarde! — falei. — Eu já devia estar</p><p>chegando em. casa! Devia estar chegando neste momento! Eu...-</p><p>— O que os pais de Dennis fazem e o que nós fazemos são coisas</p><p>muito diferentes — disse Regina Cunningham. Eu jamais ouvira sua voz</p><p>soar tão fria. Nunca. — E você não tem o direito de fazer semelhante coisa</p><p>sem consultar seu pai e a mim sobre...</p><p>— Consultar vocês?— rugiu Arnie, de repente.</p><p>Derramou o leite. Havia enormes veias em seu pescoço, estiradas</p><p>como cordas. Regina recuou um passo, boquiaberta. Eu podia apostar que</p><p>o filho-patinho-feio nunca lhe rugira daquela forma, em toda a sua vida.</p><p>Michael ficara estupidificado. Estavam tendo um gostinho do que eu já</p><p>provara — por motivos que só ele saberia explicar, Arnie finalmente</p><p>conseguira ter algo que realmente desejava. E que Deus se apiedasse de</p><p>quem ficasse em seu caminho.</p><p>— Consultar vocês? Eu sempre consultei vocês em cada maldita</p><p>coisa que já fiz! Em tudo havia uma reunião para discutir e quando era</p><p>algo que não me interessava fazer, vocês venciam por dois contra um! Só</p><p>que agora não estamos em nenhuma reunião para discutir o assunto.</p><p>Comprei um carro... e está acabado!</p><p>— Pois eu não acho que esteja acabado — disse Regina.</p><p>Seus lábios se tinham afilado e, curiosamente (ou talvez não), ela</p><p>deixara de parecer tão semi-aristocrática; era agora como a Rainha da</p><p>Inglaterra ou de algum lugar, com jeans e tudo. Michael estava fora da</p><p>situação, dali por diante. Parecia tão surpreso e desgostoso como eu e, por</p><p>um instante, senti uma bruta pena do homem. Ele nem ao menos podia ir</p><p>para casa jantar e se ver livre daquilo: já estava em casa. Ali se</p><p>desenrolava uma crua luta pelo poder, entre a velha guarda e a jovem</p><p>guarda. Tudo acabaria sendo decidido da mesma forma de antes, com uma</p><p>monstruosa exibição de amargura e aspereza. Aparentemente, Regina</p><p>estava disposta àquilo, mesmo que não fosse este o caso de Michael. Eu,</p><p>no entanto, não queria tomar parte em nada. Levantei-me e caminhei para</p><p>a porta.</p><p>— Você deixou que ele fizesse isto? — perguntou Regina. Olhou para</p><p>mim com arrogância, como se nunca tivéssemos rido juntos, feito bolos</p><p>juntos ou participado juntos de acampamentos familiares. — Dennis, estou</p><p>surpresa com você.</p><p>Aquilo me atingiu. Eu sempre gostara da mãe de Arnie, porém nunca</p><p>chegara a confiar inteiramente nela, pelo menos desde que acontecera</p><p>algo, quando eu tinha uns oito anos.</p><p>Eu e Arnie tínhamos ido de bicicleta até o centro da cidade, para uma</p><p>matinê no sábado. Quando voltávamos, ele caíra da bicicleta, em uma</p><p>manobra para evitar um cachorro, e machucara bastante a perna. Levei-o</p><p>para casa de carona em minha bicicleta, e Regina foi com ele ao pronto-</p><p>socorro, onde o médico deu meia dúzia de pontos. Então, por algum</p><p>motivo, depois que tudo terminou e se soube que Arnie ia ficar</p><p>perfeitamente bom, Regina se voltou contra mim e desandou com sua</p><p>língua afiada. Pregou-me um sermão como se fosse sargento-chefe. Ao</p><p>terminar, eu tremia dos pés à cabeça e estava a ponto de chorar — que</p><p>diabo, tinha apenas oito anos e havia um bocado de sangue. Não posso</p><p>recordar capítulo e versículos de todo o falatório, mas a sensação</p><p>generalizada que ficou comigo era perturbadora. Que me lembre, ela</p><p>começou por acusar-me de não ter tomado conta dele direito — como se</p><p>Arnie fosse muito mais novo e não quase da minha idade — e terminou</p><p>dizendo (ou parecendo dizer) que aquilo devia ter acontecido era comigo.</p><p>Agora, a situação parecia repetir-se — Dennis, você não tomou conta</p><p>dele direito — e aquilo me irritou. Minha desconfiança quanto a Regina</p><p>talvez fosse apenas parte da coisa e, para ser inteiramente sincero, talvez</p><p>apenas a menor parte. Quando somos crianças (e, afinal de contas,</p><p>dezessete anos não são apenas o limite extremo da infância?), tendemos a</p><p>ficar ao lado de outras crianças. Um forte e infalível instinto nos diz que,</p><p>se não derrubarmos alguns muros e arrombarmos alguns portões, nossos</p><p>pais — com a melhor das intenções — ficariam satisfeitos nos mantendo</p><p>para sempre no cercado para bebês.</p><p>Fiquei zangado, mas disfarcei o melhor que pude.</p><p>— Eu não o deixei coisa nenhuma — respondi. — Ele quis comprar e</p><p>comprou. — Antes, eu podia ter contado que Arnie apenas dera um sinal,</p><p>mas não faria mais isso. Agora, eu empinava as costas. — A verdade é que</p><p>tentei convencê-lo a não comprar.</p><p>— Duvido que tenha tentado com insistência — atacou Regina.</p><p>Ela bem poderia ter encerrado a frase, dizendo: Você não me engana,</p><p>Dennis. Sei que os dois estavam de combinação nisto. Havia manchas</p><p>vermelhas nas maçãs de seu rosto e os olhos dela atiravam faíscas. Estava</p><p>procurando fazer com que me sentisse novamente um garoto de oito anos e</p><p>não se saía mal na história. No entanto, mantive minha posição.</p><p>— Ora, pensando bem, afinal não foi uma coisa tão terrível assim.</p><p>Ele comprou o carro por duzentos e cinqüenta dólares e...</p><p>— Duzentos e cinqüenta dólares? — explodiu Michael. — Que</p><p>espécie de carro se consegue por duzentos e cinqüenta dólares?</p><p>Seu anterior e incômodo desligamento — se é que existira, e não o</p><p>simples choque, ao som da tranqüila voz de seu filho, erguida em protesto</p><p>— desaparecera. O preço do carro é que o despertara. E ele olhou para</p><p>Arnie com tão aberto desdém que me senti mal. Eu gostaria de ter filhos</p><p>um dia e, se os tiver, espero poder deixar fora de meu repertório aquela</p><p>particular expressão.</p><p>Fiquei dizendo para mim mesmo que não me alterasse, que aquilo</p><p>não era da minha conta, que não havia motivos para me irritar... porém o</p><p>bolo que comera se grudara no meio de meu estômago, em uma grande</p><p>bola pegajosa, e sentia a pele fervendo. Os Cunningham tinham sido</p><p>minha segunda família, desde que eu era garotinho, e podia sentir dentro</p><p>de mim todos os aborrecidos sintomas físicos de uma disputa familiar.</p><p>— Podemos aprender muito sobre carros, quando consertamos um já</p><p>velho — argumentei. De repente, soava para mim mesmo como uma</p><p>imitação maluca de LeBay. — E é preciso um bocado de trabalho, antes</p><p>mesmo que fique bom para rodar na rua. (Se chegar a ficar, pensei.) Pode-</p><p>se encarar isso como... como um hobby.</p><p>— Eu encaro como loucura — disse Regina.</p><p>De súbito, eu só queria ir embora. Creio que, se as vibrações</p><p>emocionais ali dentro não estivessem tão pesadas, até acharia graça</p><p>naquilo. De certa forma, passara a defender o carro de Arnie, quando</p><p>decidi que era um despropósito seguir em frente.</p><p>— Pensem o que quiserem — murmurei —, mas me deixem fora</p><p>disto. Vou para casa.</p><p>— Ótimo! — exclamou Regina, com aspereza.</p><p>— Muito bem — disse Arnie, em voz inexpressiva. Levantou-se. —</p><p>Vou dar o fora desta merda. Regina engoliu em seco e Michael piscou,</p><p>como se tivesse sido esbofeteado.</p><p>— O que foi que disse?— bufou Regina. — O que</p><p>foi que... ?</p><p>— Não sei por que estão tão irritados — respondeu Arnie, em uma</p><p>voz distante, controlada —, mas não vou ficar aqui sentado ouvindo um</p><p>monte de besteiras de cada um. Você quis que eu fizesse os cursos do</p><p>colégio. Estou fazendo. — Ele olhou para a mãe. — Quis que eu entrasse</p><p>para o clube de xadrez, em vez de ficar na banda da escola: muito bem,</p><p>estou lá também. Consegui atravessar dezessete anos sem envergonhá-la</p><p>no clube de bridge ou ir parar na cadeia.</p><p>Os dois estavam olhando para ele, de olhos esbugalhados, como se</p><p>uma das paredes da cozinha tivesse ganho lábios subitamente e começasse</p><p>a falar.</p><p>Arnie os encarou, seus olhos eram estranhos, brancos e perigosos.</p><p>— Estou dizendo a vocês que vou ter esse carro. É só isso.</p><p>— Arnie, o seguro... — começou Michael.</p><p>— Pare com isso! — gritou Regina.</p><p>Ela não queria começar a falar sobre os problemas específicos,</p><p>porque esse seria o primeiro passo no caminho para uma possível</p><p>aceitação. Sua única idéia era esmagar a rebelião sob o calcanhar, rápida e</p><p>completamente. Há momentos em que os adultos nos aborrecem de tal</p><p>forma, que eles jamais compreenderão; creio que vocês sabem disso. Eu</p><p>vivia um desses momentos e isso só fez com que me sentisse pior. Quando</p><p>Regina gritou com o marido, pude vê-la vulgar e assustada, ao mesmo</p><p>tempo. E, como gostava dela, desejaria nunca tê-la visto de um jeito ou de</p><p>outro.</p><p>Ainda assim, permaneci parado à porta, querendo ir embora, mas</p><p>doentiamente fascinado pelo que acontecia — a primeira discussão em</p><p>grande escala que já presenciara na família Cunningham, talvez a única.</p><p>Sem dúvida, aquilo era uma caretice, marcando no mínimo dez, na escala</p><p>Richter.</p><p>— É melhor você ir, Dennis, enquanto resolvemos isto — disse</p><p>Regina, carrancuda.</p><p>— Certo — falei —, mas acho que estão fazendo tempestade num</p><p>copo d'água. Esse carro... Regina... Michael... se vocês o vissem... talvez</p><p>vá de zero a trinta em vinte minutos, se chegar a se mover...</p><p>— Dennis! Vá embora! Eu fui.</p><p>Quando entrava em meu Duster, Arnie saía pela porta dos fundos,</p><p>aparentemente afirmando sua intenção de ir embora. Os pais o seguiram,</p><p>agora parecendo preocupados e também infelizes. Eu podia entender um</p><p>pouco o que eles sentiam. Fora tudo tão repentino como um ciclone,</p><p>descendo de um claro céu azul.</p><p>Liguei o motor e dei marcha à ré, até a rua sossegada.</p><p>Evidentemente, muita coisa acontecera, desde que nós dois havíamos</p><p>saído do trabalho às quatro, duas horas atrás. Então, eu estava faminto a</p><p>ponto de comer quase qualquer coisa (exceto torta de algas). Agora, meu</p><p>estômago estava tão embrulhado que por pouco não devolvia tudo quanto</p><p>fora engolido.</p><p>Quando parti, eles três estavam parados na entrada para carros, em</p><p>frente de sua garagem para dois automóveis (o Porsche de Michael e a</p><p>camionete Volvo de Regina estavam enfiados lá dentro — eles têm seus</p><p>carros, pensei, com certa maldade; estão pouco ligando), ainda discutindo.</p><p>É isso aí, pensei, um tanto triste e aborrecido. Eles o derrotarão,</p><p>LeBay embolsará os vinte e cinco dólares de Arnie e aquele Plymouth 58</p><p>ficará em seu gramado por outros mil anos. Os pais de Arnie já tinham</p><p>feito coisas semelhantes com ele. Porque Arnie era um perdedor. Até</p><p>Regina e Michael sabiam disso. Ele era inteligente, e quando se conseguia</p><p>varar seu exterior tímido e desconfiado, ficava divertido, amável e... dócil,</p><p>acho eu. Dócil, exatamente o termo que faltava. Dócil, mas um perdedor.</p><p>Seus pais sabiam disso, tão bem como os soquetes-brancas da</p><p>cantina, que implicavam com ele aos gritos pelos corredores e esfregavam</p><p>polegares em seus óculos. Eles sabiam que Arnie era um perdedor e o</p><p>derrotariam. Foi o que pensei. Só que, desta vez, estava enganado.</p><p>A Manhã Seguinte</p><p>Meu velho disse "Filho,</p><p>Me dê uma carona para eu ir beber,</p><p>Se você ainda dirige aquele</p><p>Lincoln envenenado. "</p><p>— Charlie Ryan</p><p>Na manhã seguinte, passei pela casa de Arnie às 6:30 e apenas parei</p><p>junto ao meio-fio, não querendo entrar, mesmo imaginando que seus pais</p><p>ainda estariam na cama — na noite anterior houvera demasiadas vibrações</p><p>negativas flutuando naquela cozinha, para que me sentisse tentado pelo</p><p>costumeiro café com biscoitos, antes de ir trabalhar.</p><p>Arnie demorou quase cinco minutos para sair e comecei a pensar se</p><p>ele não cumprira a ameaça de ir realmente embora. Então a porta dos</p><p>fundos se abriu e ele veio descendo pela entrada de carros, a marmita do</p><p>almoço balançando contra sua perna.</p><p>Ele entrou no carro, bateu a porta e disse:</p><p>— Vamos rodando, Jeeves.</p><p>Este era um dos chistes padronizados de Arnie, quando estava de</p><p>bom humor.</p><p>Comecei a rodar e olhei para ele cautelosamente, quase decidido a</p><p>falar alguma coisa, mas em seguida decidindo ser melhor esperar que ele</p><p>começasse... se é que tinha alguma coisa para dizer.</p><p>Durante bastante tempo, pareceu que ele não tinha. Fizemos a maior</p><p>parte do caminho para o trabalho sem qualquer conversa entre nós, a não</p><p>ser o som da WMDY, a estação local de rock e soul. Arnie marcava o</p><p>compasso distraidamente, batendo na perna.</p><p>Por fim, ele disse:</p><p>— Lamento que você tenha se envolvido naquilo a noite passada,</p><p>cara.</p><p>— Está tudo certo, Arnie.</p><p>— Nunca lhe ocorreu — disse ele, abruptamente — que os pais não</p><p>passam de crianças desenvolvidas, até que os filhos os empurrem para que</p><p>se tornem adultos? Geralmente esperneando e chorando?</p><p>Sacudi a cabeça.</p><p>— Vou lhe dizer o que penso — continuou ele. Estávamos agora</p><p>chegando ao local da construção; o trailer da Garson Brothers ficava a</p><p>apenas duas rampas além. Naquela manhã, o trânsito era leve e sonolento.</p><p>O céu tinha uma suave cor de pêssego. — Acho que uma das funções de</p><p>ser pai é destruir os filhos.</p><p>— Parece bastante racional — respondi. — Os meus estão sempre</p><p>querendo destruir-me. Esta noite, mamãe esgueirou-se com um travesseiro</p><p>e o segurou contra meu rosto. Na véspera, foi papai, correndo atrás de mim</p><p>e de minha irmã com uma chave de fenda.</p><p>Eu estava brincando, mas me perguntei o que Michael e Regina</p><p>diriam, se pudessem ouvir nossa conversa.</p><p>— A princípio, sei que parece um tanto louco — disse Arnie,</p><p>imperturbável —, mas muita coisa é esquisita, antes de começarmos a</p><p>considerá-las. Complexo de pênis. Conflitos edipianos. O sudário de</p><p>Turim.</p><p>— Para mim, é tudo besteira — respondi. — Você teve uma</p><p>discussão com seus pais, só isso.</p><p>— Acredito nisso, realmente — disse Arnie, com ar pensativo. —</p><p>Não que eles soubessem o que faziam; não acredito nisso. E sabe por quê?</p><p>— Diga.</p><p>— Porque assim que se tem um filho, a gente tem certeza de que irá</p><p>morrer. Quando temos um filho, vemos nossa própria sepultura.</p><p>— Sabe de uma coisa, Arnie?</p><p>— O quê?</p><p>— Acho que isso é uma merda de macabro. Nós dois explodimos em</p><p>gargalhadas.</p><p>— Não falei nesse sentido — replicou ele.</p><p>Paramos no local de estacionamento e desliguei o motor. Ficamos ali,</p><p>ainda por um momento.</p><p>— Eu disse a eles que não seguiria mais os cursos do colégio —</p><p>declarou Arnie. — Disse que me matricularia em T.V. Do começo ao fim.</p><p>T.V. era treinamento vocacional. A mesma espécie de coisa feita</p><p>pelos garotos dos reformatórios para menores, exceto, naturalmente, que</p><p>eles não voltam para casa à noite. Seguem o que se poderia chamar de</p><p>programa compulsório de internato.</p><p>— Arnie... — comecei, sem saber bem como continuar. A forma</p><p>como aquilo brotara do nada me dava a impressão de um capricho. —</p><p>Você ainda é menor, Arnie. Eles têm que assinar o seu programa...</p><p>— Claro, eu sei disso — respondeu Arnie. Sorriu para mim sem</p><p>humor e, àquela claridade fria da manhã, pareceu ao mesmo tempo mais</p><p>velho e muito, muito mais jovem... algo assim como uma criança cínica.</p><p>— Eles têm o poder de cancelar todo o meu programa para o outro ano, se</p><p>quiserem, trocando-o por um de sua preferência. Querendo, podem</p><p>matricular-me em Economia Doméstica e Mundo da Moda. A lei diz que</p><p>podem. Entretanto, não há nenhuma lei dizendo que podem me obrigar a</p><p>fazer o que quiserem.</p><p>Aquilo me abriu os olhos — quero dizer, mostrou a que distância ele</p><p>fora. Como era possível que um calhambeque caindo aos pedaços chegara</p><p>a significar</p><p>tanto para ele e tão depressa? Nos dias seguintes, essa</p><p>pergunta ficou insistindo comigo de maneiras diferentes, como eu sempre</p><p>imaginara que seria um desgosto recente. Quando Arnie disse a Michael e</p><p>Regina que ia ficar com o carro, falava sério. Ele seguira diretamente para</p><p>aquele lugar onde eram mais fortes as suas expectativas e avançara com</p><p>uma impiedosa diligência que me surpreendia. Não creio que táticas</p><p>menores funcionassem com Regina, mas a verdade é que Arnie conseguira</p><p>surpreender-me. De fato, ele me surpreendera um bocado. O que fervia por</p><p>baixo daquilo era que, se Arnie passasse seu último ano em T.V., a</p><p>universidade seria jogada pela janela. E, para Michael e Regina, isso era</p><p>uma impossibilidade.</p><p>— Quer dizer que... então eles desistiram?</p><p>Era quase como extorquir-lhe as respostas, porém eu não podia</p><p>deixar as coisas assim, enquanto não soubesse tudo.</p><p>— Não dessa maneira. Eu disse que encontraria um lugar para</p><p>guardar o carro e que não tentaria submetê-lo a uma vistoria ou registro</p><p>sem a aprovação deles.</p><p>— Acha mesmo que vai levar a melhor nisto?</p><p>Ele esboçou um breve e soturno sorriso, ao mesmo tempo confiante e</p><p>amedrontado. Era o sorriso de um operador de escavadeira, baixando a</p><p>lâmina de um Cat D-9, diante de um barranco especialmente difícil.</p><p>— Levarei — respondeu Arnie. — Quando quero, eu levo a melhor. E</p><p>sabem de uma coisa? Acreditei que ele levaria mesmo.</p><p>Arnie Se Casa</p><p>Recordo o dia</p><p>Quando o escolhi entre todo aquele ferro-velho,</p><p>Eu podia dizer que ele era ouro,</p><p>Debaixo daquela camada de ferrugem,</p><p>E sem batidas...</p><p>— The Beach Boys</p><p>Podíamos ter duas horas de trabalho extra naquela noite de sexta-</p><p>feira, mas não quisemos. Recolhemos nossos cheques no escritório,</p><p>descemos até a filial de Libertyville do Banco de Empréstimos e Poupança</p><p>de Pittsburgh e os descontamos. Depositei a maior parte do meu em uma</p><p>conta de poupança, deixei cinqüenta na conta corrente (ter uma conta</p><p>corrente fazia com que me sentisse inquietantemente adulto — imagino</p><p>que a sensação se apague com o tempo) e fiquei com vinte em dinheiro.</p><p>Arnie retirou todo o seu cheque em dinheiro vivo.</p><p>— Tome — disse ele, estendendo-me uma nota de dez.</p><p>— Não — respondi. — Fique com ela, cara. Vai precisar de cada</p><p>centavo, antes de terminar aquela lanternagem.</p><p>— Aceite — insistiu ele. — Eu pago minhas dívidas, Dennis.</p><p>— Guarde o dinheiro. Sinceramente.</p><p>— Aceite.</p><p>Ele estendia a nota, inexoravelmente. Apanhei-a, mas o obriguei a</p><p>ficar com o dólar que sobrava. Arnie não queria aceitar.</p><p>Ao cruzarmos a cidade em direção ao terreno da casa de LeBay,</p><p>Arnie ficou mais agitado, tocando o rádio alto demais, marcando um</p><p>improvisado compasso primeiro batendo nas coxas, depois no painel de</p><p>instrumentos. Foreigner começou a cantar "Dirty White Boy".</p><p>— É a história da minha vida, Arnie meu chapa — falei.</p><p>Ele riu, muito alto e por muito tempo. Agia como homem esperando</p><p>que a mulher tenha um bebê. Por fim, percebi que estava assustado,</p><p>temendo que LeBay houvesse vendido o carro, fora do combinado.</p><p>— Fique calmo, Arnie — falei. — Ele está lá.</p><p>— Estou calmo, estou calmo — disse, oferecendo-me um largo,</p><p>brilhante e falso sorriso. Naquele dia, sua pele estava pior do que nunca, e</p><p>me perguntei (não pela primeira, nem pela última vez) como se sentiria</p><p>sendo Arnie Cunningham, encurralado atrás daquele rosto gotejante, de</p><p>segundo a segundo, minuto a minuto e...</p><p>— Ora, pare de suar! Está agitado como se tivesse borrado as calças,</p><p>antes mesmo de chegarmos lá!</p><p>— Não estou suando — disse ele.</p><p>Batucou outro nervoso compasso no painel de instrumentos,</p><p>justamente para me provar que não estava nervoso. "Dirty White Boy", de</p><p>Foreigner, foi substituído por "Jukebox Heroes", também cantado por ele.</p><p>Era um anoitecer de sexta-feira e o Block Party Weekend já começara, em</p><p>FM-104. Quando recordo aquele ano, meu último ano escolar, tenho a</p><p>sensação de que poderia medi-lo em quarteirões de rock... e uma</p><p>ascendente, uma fantástica sensação de terror.</p><p>— O que significa isso exatamente? — perguntei. — O que há de</p><p>mais nesse carro?</p><p>Ele ficou olhando para Libertyville Avenue sem dizer nada, durante</p><p>um tempão. Depois desligou o rádio com um gesto rápido, cortando o vôo</p><p>de Foreigner pelo meio.</p><p>— Não sei ao certo — respondeu. — Talvez seja porque, pela</p><p>primeira vez, desde que fiz onze anos e comecei a ficar com espinhas,</p><p>tenha visto uma coisa ainda mais feia do que eu. Não é o que queria que eu</p><p>dissesse? Isto não o deixa em uma categoriazinha elegante?</p><p>— Ei, Arnie, o que há? — falei. — Este aqui é o Dennis, lembra-se</p><p>de mim?</p><p>— Claro que me lembro — replicou ele. — E ainda somos amigos,</p><p>certo?</p><p>— Certo, pela última vez que chequei. Mas o que tem isso a ver</p><p>com...</p><p>— Significa que não precisamos mentir um para o outro. Pelo menos,</p><p>é o que penso. Portanto, quero lhe dizer, talvez nem tudo seja legal. Sei o</p><p>que sou. Sou feio. Não faço amigos com facilidade. De certa forma...</p><p>afugento as pessoas. Não é minha intenção, mas acontece. Você entende?</p><p>Assenti com certa relutância, Como ele dissera, éramos amigos e isso</p><p>significava que as mentiras e tolices deviam ser reduzidas ao mínimo.</p><p>Ele assentiu de volta, com naturalidade.</p><p>— Outras pessoas — disse, para então acrescentar, cautelosamente</p><p>—, você por exemplo Dennis, nem sempre entendem o que isto significa.</p><p>Quando a gente é feio e os outros riem de nós, a maneira como vemos o</p><p>mundo se modifica. E muito difícil manter o senso de humor. É uma coisa</p><p>que se gruda por dentro. Às vezes, até é difícil permanecer lúcido.</p><p>— Bem, eu posso entender isso, mas...</p><p>— Não — disse ele, calmo. — Você não pode entender. Pensa que</p><p>pode, mas não pode. Não mesmo! Mas você gosta de mim, Dennis...</p><p>— Eu adoro você, cara — falei. — Sabe muito bem disso.</p><p>— Talvez — respondeu ele —, e fico satisfeito. Se gosta de mim, é</p><p>porque sabe que existe algo mais... qualquer coisa por baixo das espinhas e</p><p>de meu rosto imbecil...</p><p>— Seu rosto não é imbecil, Arnie — discordei. — Pode ser esquisito,</p><p>mas não imbecil.</p><p>— Foda-se — disse ele, sorrindo.</p><p>— Foda-se também o pangaré que vai montar, Cavaleiro da</p><p>Montanha.</p><p>— De qualquer modo, aquele carro é assim. Há qualquer coisa por</p><p>baixo dele. Algo mais. Algo melhor. Eu sinto, é só isso.</p><p>— Sente?</p><p>— Exato, Dennis — disse ele, tranqüilo. — Eu sinto.</p><p>Dobrei para Main Street. Estávamos chegando à casa de LeBay. De</p><p>repente, tive uma idéia absolutamente idiota. E se o pai de Arnie tivesse</p><p>convocado alguns de seus amigos ou alunos para irem à casa de LeBay e</p><p>comprar aquele carro, tirando-o de seu filho? Poder-se-ia dizer que seria</p><p>um toque maquiavélico, só que a mente de Michael Cunningham era mais</p><p>do que ligeiramente tortuosa. Sua especialidade era História Militar.</p><p>— Eu vi aquele carro e senti tal atração por ele... Nem mesmo para</p><p>mim sei explicar bem como foi, mas...</p><p>A voz se extinguiu, aqueles olhos cinzentos e sonhadores pareciam</p><p>ver o futuro.</p><p>— Eu vi que poderia melhorá-lo — concluiu.</p><p>— Consertá-lo, quer dizer, não é?</p><p>— Sim... bem, não. Assim, seria muito impessoal. A gente conserta</p><p>mesas, cadeiras, essas coisas. O cortador de grama, quando não quer</p><p>funcionar. E carros comuns.</p><p>Talvez ele tivesse visto minhas sobrancelhas erguidas. De qualquer</p><p>modo, deu uma risada — uma risadinha defensiva.</p><p>— Certo, percebo como a coisa soa — disse. — Nem mesmo gostaria</p><p>de colocar em palavras, porque sei como soa, mas você é um amigo,</p><p>Dennis. E isto significa um mínimo de conversa fiada. Não acredito que</p><p>aquele seja um carro comum. Não sei por que penso assim, mas... é o que</p><p>penso.</p><p>Abri a boca para dizer algo que mais tarde poderia lamentar, algo</p><p>sobre tentar olhar as coisas de outra forma ou mesmo evitar um</p><p>comportamento obsessivo. Entretanto, naquele exato momento, dobramos</p><p>a esquina e entramos na rua de LeBay.</p><p>Arnie encheu os pulmões de ar, em uma inspiração rude e dolorida.</p><p>No gramado de LeBay, havia um retângulo ainda mais amarelado,</p><p>mais pelado e feio do que o resto do terreno. Perto de uma extremidade do</p><p>retângulo, havia uma mancha de óleo com aparência doentia, que</p><p>mergulhara</p><p>no solo, matando tudo que ali crescera antes. Aquele pedaço</p><p>retangular de terreno era tão infernalmente extenso que, acho, quem</p><p>olhasse para ele por muito tempo ficaria cego.</p><p>Era ali que estivera o Plymouth 58, no dia anterior.</p><p>O chão continuava lá, mas o Plymouth se fora.</p><p>— Arnie — falei, quando encostei o carro no meio fio —, vá com</p><p>calma. Não se descontrole, pelo amor de Deus!</p><p>Ele não me deu a menor atenção e até duvido que me tivesse ouvido.</p><p>Seu rosto ficara lívido. As equimoses que o cobriam tornaram-se</p><p>purpúreas, ganhando relevo. Antes mesmo que eu freasse, ele já</p><p>escancarava a porta de meu Duster, no lado do passageiro, e mergulhava</p><p>para fora.</p><p>— Arnie...</p><p>— Foi meu pai — disse ele, com raiva e desgosto. — Posso farejar</p><p>aquele filho da mãe em tudo isto!</p><p>Disparou em seguida, correndo pelo gramado até a porta de LeBay.</p><p>Saí do carro e corri atrás dele, refletindo que aquela merda nunca</p><p>mais teria fim. Mal podia acreditar que acabara de ouvir Arnie</p><p>Cunningham chamar Michael de filho da mãe.</p><p>Arnie erguia o punho para martelar a porta, quando ela se abriu.</p><p>Roland D. LeBay, em pessoa, surgiu à vista. Agora usava uma camisa</p><p>sobre o colete para as costas. Olhou para o rosto enfurecido de Arnie com</p><p>um sorriso benignamente cobiçoso.</p><p>— Olá, filho — disse.</p><p>— Onde está ele? — perguntou Arnie, fora de si. — Nós fizemos um</p><p>negócio! Droga, fizemos um negócio! Entregou-me um recibo!</p><p>— Baixe a fervura — disse LeBay. Então me viu, parado junto ao</p><p>último degrau, com as mãos enfiadas nos bolsos. — O que há de errado</p><p>com seu amigo, filho?</p><p>— O carro sumiu — falei. — É o que há de errado com ele.</p><p>— Quem o comprou? — gritou Arnie.</p><p>Eu nunca o vira tão enfurecido. Se tivesse uma arma naquele</p><p>momento, creio que a teria encostado à têmpora de LeBay. Fiquei</p><p>fascinado, mesmo sem querer. Aquilo era como se um coelho tivesse</p><p>ficado subitamente carnívoro. Que Deus me perdoe, mas cheguei a pensar,</p><p>em um relance, se Arnie não teria um tumor no cérebro.</p><p>— Quem o comprou? — repetiu LeBay brandamente. — Até agora,</p><p>ninguém, filho. Bem, você deu um sinal pelo carro. Eu o levei para a</p><p>garagem, eis tudo. Coloquei o pneu sobressalente e troquei o óleo.</p><p>O velho empertigou-se e então ofereceu-nos um sorriso</p><p>absurdamente magnânimo.</p><p>— Você é um grande sujeito — falei.</p><p>Arnie o fitou com incerteza, depois girou bruscamente a cabeça para</p><p>a porta fechada da modesta garagem para um carro, anexada à casa por um</p><p>corredor coberto. Um corredor que, como tudo o mais na propriedade de</p><p>LeBay, já vira melhores dias.</p><p>— Por outro lado, não quis deixá-lo aqui fora, já que você tinha dado</p><p>um sinal de compra — disse ele. — Um ou dois caras desta rua podiam</p><p>criar problemas. Certa noite, um garoto atirou uma pedra em meu carro.</p><p>Oh, claro, tenho alguns vizinhos saídos diretamente da B.E.P.</p><p>— O que é isso? — perguntei.</p><p>— É a Brigada dos Espíritos de Porco, filho.</p><p>Ele varreu o lado oposto da rua com um maligno olhar de caçador à</p><p>espreita, abrangendo os carros simples e econômicos que agora tinham</p><p>retomado do trabalho para casa, as crianças brincando de pique e pulando</p><p>corda, as pessoas sentadas à porta de casa e bebericando, à primeira brisa</p><p>da noite fria.</p><p>— Eu gostaria de saber quem jogou aquela pedra — disse ele, em voz</p><p>branda. — Sim, senhor, eu gostaria de saber quem foi.</p><p>Arnie pigarreou.</p><p>— Sinto muito ter-lhe falado daquela maneira.</p><p>— Não tem importância — respondeu LeBay vivamente. — Gosto de</p><p>ver um sujeito exigir o que é seu... ou quase seu. Trouxe o dinheiro,</p><p>garoto?</p><p>— Sim, trouxe.</p><p>— Muito bem, entrem. Você e seu amigo também. Vou passar um</p><p>recibo de compra em seu nome e tomaremos um copo de cerveja para</p><p>comemorar.</p><p>— Não, obrigado — falei. — Eu fico aqui fora, se não se importa.</p><p>— Isso é com você, filho — disse LeBay... e me piscou o olho.</p><p>Até hoje não sei bem o que significaria aquela piscadela. Os dois</p><p>entraram e a porta bateu, fechando-se atrás deles. O peixe caíra na rede e</p><p>agora ia ser escamado.</p><p>Sentindo-me deprimido, caminhei pelo corredor coberto até a</p><p>garagem e tentei abrir a porta. Ela deslizou para cima com facilidade e</p><p>aspirei os mesmos odores já sentidos, quando abrira a porta do Plymouth,</p><p>na véspera: óleo, estofamento antigo, o calor acumulado de um longo</p><p>verão.</p><p>Ancinhos e alguns velhos apetrechos de jardim alinhavam-se ao</p><p>longo de uma parede. Na outra, uma mangueira velhíssima, uma bomba de</p><p>bicicleta e um antigo saco de golfe, cheio de tacos enferrujados. No meio</p><p>da garagem, com a proa virada para a saída, estava Christine, o carro de</p><p>Arnie, parecendo ter um quilômetro de comprimento naquela época, em</p><p>que os próprios Cadillacs davam uma idéia de comprimidos e semelhantes</p><p>a caixotes. A confusa teia de aranha de rachaduras a um lado do pára-brisa</p><p>captou a claridade, transformando-a em um prateado sujo. Um garoto com</p><p>uma pedra — tinha dito LeBay —, ou talvez um ligeiro acidente, ao voltar</p><p>para casa, vindo de uma reunião com os VFW (os veteranos de guerras no</p><p>estrangeiro), após uma noite bebendo uísque misturado a cerveja e</p><p>contando histórias sobre a Batalha do Bulge ou de Pork Chop Hill. Os bons</p><p>e velhos tempos, quando um homem podia ver a Europa, o Pacífico e o</p><p>misterioso Oriente de trás da mira de uma bazuca. Quem podia saber... e o</p><p>que importava? De qualquer modo, não ia ser fácil encontrar um pára-</p><p>brisa para reposição tão grande como aquele.</p><p>E nem ia ser barato.</p><p>Oh, Arnie! pensei. Cara, você está indo muito fundo.</p><p>O pneu que LeBay trocara descansava contra a parede. Agachei-me</p><p>sobre as mãos e os joelhos, para uma espiada debaixo do carro. Uma</p><p>recente mancha de óleo começava a formar-se ali, negra contra o fantasma</p><p>acastanhado de outra mais antiga e mais larga, que se infiltrara no</p><p>cimento, durante um período de anos. Aquilo não diminuiu minha</p><p>depressão. Sem dúvida, o bloco do motor devia estar rachado.</p><p>Dei a volta até o lado do motorista e, ao segurar o volante, avistei</p><p>uma lata de lixo no canto mais distante da garagem. Por sobre a borda,</p><p>assomava uma enorme garrafa de plástico. As letras SAPPH eram visíveis</p><p>acima da borda.</p><p>Grunhi. Muito bem, ele trocou o óleo. Quanta gentileza. Retirara o</p><p>velho — o que quer que houvesse sobrado dele — e despejara alguns</p><p>quartos de Sapphire Motor Oil. É o troço que se consegue a 3 dólares e</p><p>cinqüenta em Mammoth Mart, por lata de cinco galões reciclados. Roland</p><p>D. LeBay era um verdadeiro príncipe, sem dúvida. Roland D. LeBay era</p><p>um sujeito formidável.</p><p>Abri a porta do carro e deslizei para trás do volante. Agora, o cheiro</p><p>na garagem não parecia tão pesado ou tão carregado com impressões de</p><p>desuso e fracasso. O volante era amplo e vermelho — um volante de</p><p>confiança. Tornei a olhar para aquele espantoso velocímetro, aquele</p><p>velocímetro calibrado, não para 70 ou 80, mas todo o caminho até 120</p><p>milhas por hora. Não havia a marcação por quilômetro, em pequenos</p><p>números vermelhos, abaixo das milhas; quando aquele bebê rodara para</p><p>fora da linha de montagem, a idéia do sistema métrico ainda não ocorrera</p><p>a ninguém em Washington. Tão pouco vi qualquer grande 55 em vermelho</p><p>no velocímetro. Naquele tempo, a gasolina saía por 29,9 o galão, talvez</p><p>menos, se em sua cidade estivesse em prática o preço de guerra. Os</p><p>embargos ao petróleo árabe e as penalidades quanto ao limite de</p><p>velocidade, ainda estavam a quinze anos de distância.</p><p>Os bons e velhos tempos, pensei, e tive que sorrir um pouco. Remexi</p><p>no lado esquerdo do assento, embaixo, e encontrei o pequeno console com</p><p>o botão que movia o banco para diante e para trás, para cima e para baixo</p><p>(se ainda funcionava, claro). Mais poder para você, como se diz por aí.</p><p>Havia um condicionador de ar (com toda certeza, aquilo não funcionava),</p><p>controle para velocidade de cruzeiro e um enorme rádio com botões de</p><p>apertar e montanhas de cromados — AM apenas, é claro. Em 1958, a FM</p><p>era principalmente um deserto vazio.</p><p>Segurei o volante com as duas mãos e algo aconteceu.</p><p>Mesmo hoje, depois de muito refletir, não imagino exatamente o que</p><p>fosse. Uma visão, talvez — mas se fosse, talvez não tivesse grande</p><p>importância. Acontece que, por um momento,</p>
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